Intervenção de Armando Farias, Ex-dirigente Sindical, Sessão Pública «Salário, preço e lucro – Uma questão actual»

Marx e a atualidade - Travar a batalha ideológica, cumprir o papel histórico da classe operária

Ver vídeo

''

Camaradas e amigos,

Quanto às bases da teoria da mais-valia desenvolvida por Marx, como ela se decompõe e como se estabelece a relação geral de lucros, salários e preços, já outros camaradas intervieram hoje neste debate. 

Neste ponto quero apenas sublinhar que a situação que hoje estamos a viver mostra como são atuais as questões essenciais examinadas e explicadas por Marx, sobretudo a demonstração de que é a produção da mais-valia que impulsiona a continuação do modo de produção capitalista e que é este modo de produção, esta relação económica entre capital e trabalho assalariado, que constitui a base material da luta política na sociedade capitalista.  

Tal como há 150 anos atrás, também hoje o capital, representado em sucessivos governos pelos partidos da política de recuperação capitalista - PS, PSD e CDS - acusa o aumento dos salários pela subida da inflação, justifica os baixos salários pela baixa produtividade do trabalho, alega a falta de competitividade da nossa economia para sustentar a defesa da precariedade, da desregulamentação do trabalho, da desregulação e aumento dos horários, da intensificação dos ritmos de trabalho.         

O Governo culpa a pandemia, a guerra e as sanções pela subida da inflação e o aumento do custo de vida e, no mesmo passo, usa essa justificação para impor a redução dos salários reais. Porém, a verdade é que os lucros das grandes empresas e do sistema financeiro foram brutais em 2021, quando a inflação média desse ano se situou em 1,3%, e continuaram a aumentar em 2022, quando a inflação galopou para os 9,6% no final desse ano, a maior taxa de inflação dos últimos 30 anos. 

Confirma-se, portanto, a tese de Marx: esteja a inflação em queda ou em ascensão, o patrão não quer abdicar das elevadas taxas de lucro para seu proveito exclusivo e, por isso, impõe que sejam sacrificados os trabalhadores, seja na diminuição real dos salários, seja pela redução do emprego, seja pelo abaixamento das condições de trabalho.   

Outra falsidade do Governo é justificar os baixos salários porque é baixa a produtividade quando comparada com outros países. A mentira consiste, por um lado, em querer fazer crer que para aumentar a produtividade as únicas variáveis a manejar são os salários, baixando-os; a duração do tempo de trabalho, aumentando-a; e o emprego, despedindo trabalhadores e, por outro lado, em negar que o aumento da produtividade é inseparável de progressos técnicos nos processos de produção e nas competências profissionais dos trabalhadores, de forma a diminuir o tempo de trabalho socialmente necessário. 

Ao invés das opções dos sucessivos Governos da política de direita que também invocam o défice de competitividade da economia portuguesa para atacar os direitos dos trabalhadores, desregular os horários de trabalho e manter o regime da caducidade da contratação colectiva, é o aumento dos salários que é determinante para combater a pobreza, dinamizar a procura e, em conjugação com o investimento tecnológico e o aumento da produção, constituir-se no fator essencial de melhoria da competitividade da economia. 

Hoje, como ontem, não há lugar à passividade e à resignação diante da exploração do capital. Hoje, como ontem, é necessário prosseguir e intensificar a luta pelo aumento dos salários, integrando na luta económica a luta pela redução do tempo de trabalho e por melhores condições de vida e de trabalho.  

Camaradas e amigos,

De entre os muitos e notáveis contributos teóricos que Marx nos deixou para a compreensão crítica dos mecanismos de funcionamento e dominação capitalista, de como é gerada a contradição fundamental entre o carácter social da produção e a apropriação privada dos meios de produção, Marx também analisou a função da ideologia na sociedade capitalista, travou intensas lutas ideológicas no combate a teses reformistas e oportunistas que minavam a unidade do movimento operário, evidenciou o papel histórico da classe operária e da sua acção revolucionária, no quadro da luta de classes.

Hoje, tal como ontem, a ideologia das classes dominantes constitui-se como um elemento essencial da dominação económica, política, cultural e social. Para preservar esse domínio, o capital não só dispõe dos lucros colossais que obtém da exploração do trabalho, como se apodera de meios poderosos do Estado para financiar ou investir diretamente em aparelhos ideológicos, cuja função consiste em negar o conflito entre as classes sociais, esconder e afastar da compreensão dos trabalhadores a real natureza do capitalismo, as leis que o incorporam e como funcionam os mecanismos da exploração, dissimular as contradições inerentes ao próprio sistema, encobrir as causas do desemprego e da precariedade, do empobrecimento e das desigualdades sociais.

É disso exemplo, a campanha ideológica que o capital desde sempre introduziu no debate, ou na falta dele, sobre as novas tecnologias, campanha que assenta em teses fraudulentas que impõe sejam desmascaradas e combatidas.

É certo que as mudanças tecnológicas são um importante motor de crescimento e desenvolvimento. Contudo, o modo como são utilizadas depende do modo de produção da sociedade, uma vez que os progressos da ciência e da técnica tanto podem ser aproveitados para melhorar as condições de vida dos trabalhadores e dos povos, como podem ser apropriados e usados pelo capital que a pretexto do aumento da produtividade e da competitividade intensifica a exploração da força de trabalho e o empobrecimento dos povos.

A tese da «inevitabilidade do desemprego em massa», que seria consequência do uso acelerado da robótica e de outros processos de trabalho, é uma dessas teses do capital, tão velha quanto a sua própria invenção. Desde que surgiu o modo de produção capitalista como organização socioeconómica, cujas relações de produção assentam na exploração da força de trabalho, os capitalistas, para manter o funcionamento do sistema e garantir o processo de acumulação de riqueza, investem em inovações tecnológicas, de forma a adquirirem uma vantagem temporária sobre os seus concorrentes. 

Independentemente da natureza e intensidade das aplicações tecnológicas, os capitalistas agem no sentido de que parte significativa da população activa esteja permanente desempregada e que a parte que trabalha esteja em permanente instabilidade, pois a existência de um exército de reserva de força de trabalho, aliado à precariedade, actuam como inibidores das reivindicações, contribuindo para o abaixamento dos salários, o aumento dos horários e intensificação dos ritmos de trabalho.

Ora, em cada etapa da evolução tecnológica sempre se confirmou que as máquinas precisam do trabalho humano para poderem funcionar, pois só é possível produzir mercadorias através da alienação do trabalho. É certo que desapareceram determinadas profissões, mas surgiram outros grupos profissionais. O emprego cresceu em muitos sectores e actividades, também por via da proletarização de outras camadas sociais.

Por outro lado, os trabalhadores portugueses estão sujeitos a horários de trabalho longos e elevados ritmos de trabalho. Bastava que se verificasse a redução do horário de trabalho para as 35 horas semanais para todos os trabalhadores, para ser necessário criar mais algumas centenas de milhar de postos de trabalho. Este exemplo evidencia como é possível aos trabalhadores e ao país beneficiarem da tecnologia - criava-se emprego, seriam cumpridas as mesmas horas de trabalho anuais, aumentava a produtividade e cada trabalhador teria uma redução da duração do seu trabalho (neste caso, menos 240 horas por ano).

Também é falsa a tese que defende que os avanços tecnológicos são o fator determinante para aumentar os lucros e, ao mesmo tempo, aumentar os salários e reduzir os horários e as desigualdades. Tal tese seria verdadeira noutro sistema em que o poder estivesse nas mãos dos trabalhadores. Mas hoje, como no passado, não são as tecnologias que determinam a estrutura social e enquanto existirem relações de produção que assentem na exploração da força de trabalho, só é possível criar riqueza e haver lucros para os patrões à custa da mais-valia obtida pela venda dessa mesma força de trabalho. A  finalidade da invenção da maquinaria não é aliviar a labuta do trabalhador, mas antes aumentar a produtividade, medida pelo grau em que ela substitui a força de trabalho humano, ou seja, agregar trabalho não pago, embaratecer o custo das mercadorias, aumentar o lucro dos capitalistas. 

Esta é a contradição fundamental entre trabalho e capital que, como elucidou Marx, só é superável com uma nova sociedade, sem classes, pois enquanto existir o sistema capitalista manter-se-á a exploração do homem pelo homem. 

Basta analisar os relatórios da OIT sobre os salários no mundo para verificar que apesar da produtividade e criação de riqueza terem crescido continuadamente desde a revolução industrial, é um facto que na maioria dos países os salários reais crescem a um ritmo inferior ao da produtividade, o que determina a baixa da parte salarial, com milhões de trabalhadores e suas famílias a viverem miseravelmente. É uma evidência tão presente que alguns autores identificam o capitalismo como a «civilização das desigualdades».

Outra tese do capital, refere-se à «necessidade de flexibilizar ainda mais os horários e desregulamentar as relações de trabalho», chavão velho, que invoca a acelerada robotização e automatização dos processos de trabalho para defender a “modernização” das leis laborais, justificar a precarização dos vínculos contratuais e impor a destruição de direitos.

Também aqui não há nada de novo. O capital sempre procurou que novos processos de trabalho fossem acompanhados da intensificação das velhas e novas formas e métodos de exploração da força de trabalho, com prioridade ao aumento do tempo de trabalho e dos ritmos de laboração, desregulação dos horários e desregulamentação das condições em que o trabalho é prestado.

Camaradas e amigos,

No quadro da ofensiva antilaboral e na campanha ideológica que suporta o ataque aos direitos dos trabalhadores, o capital também usa a chamada “concertação social” e o divisionismo sindical, dois instrumentos que se complementam e que foram concebidos no bojo da social-democracia (PS e PSD) logo no início da contra-revolução, com a finalidade de promover, avalizar e sustentar a aplicação das políticas de exploração e de retrocesso social.

A “concertação”, de matriz neocorporativa, tem a função de integrar os sindicatos no sistema de exploração; dar suporte ao poder discricionário do grande patronato; caucionar as políticas e medidas governamentais, desde o desmantelamento do sistema de relações profissionais saído da revolução de Abril, ao agravamento geral das condições de vida e de trabalho; ocultar a luta dos trabalhadores, procurando deslocar o centro da acção sindical e reivindicativa dos locais de trabalho para um nível superior, afastando os trabalhadores da participação directa dos seus problemas; esvaziar a contratação colectiva como instituto de direitos laborais e espaço de participação colectiva; de corresponsabilizar os sindicatos pelas políticas realizadas ao serviço da restauração dos grupos económicos e financeiros;

 

O divisionismo, nos locais de trabalho ou instalado em organizações fantoches e sem representatividade, assumindo o papel essencial que o capital lhe conferiu de ser agente e promotor de manobras de diversão e acções provocatórias, tem a finalidade de procurar minar a unidade dos trabalhadores e paralisar a acção reivindicativa e a luta de massas. É imenso o seu historial de conluios com o patronato, sendo que nessa acção permanente de branqueamento do capital e de comprometimento ativo com a política de direita, são também constantes as provocações aos trabalhadores e ao movimento operário. 

Um e outro instrumento são peças da máquina repressiva e exploradora do capital. Não esquecemos o imenso rol das malfeitorias inscritas nos acordos feitos com os governos do capital, as confederações patronais e a organização divisionista. Acordos que caucionaram a imposição de tectos salariais, incluindo actualizações insuficientes do salário mínimo nacional, que causaram a diminuição do poder de compra dos salários, enquanto aumentou a parte do capital na distribuição do rendimento nacional; que consentiram na manutenção do desemprego e na diminuição do subsídio de desemprego e dos prazos de atribuição; que legitimaram a precariedade, que passou a ser generalizada a todos os sectores da actividade; que apoiaram a imposição de pacotes laborais e a revisão da legislação laboral, substituindo-a por um código do trabalho que diminui a protecção dos trabalhadores e consagra a caducidade da contratação colectiva; que anuíram na aprovação de legislação para legalizar a liberalização dos despedimentos e a redução das indemnizações, desregular os horários de trabalho, aumentar a idade de reforma e alterar a fórmula de calcular as pensões, diminuindo o valor das mesmas, assim como reduzir o valor de várias prestações do âmbito da protecção social. 

Camaradas e amigos,

A participação institucional do movimento operário afirma-se pela valorização dos seus princípios, da natureza de classe, do seu carácter unitário, democrático, independente e de massas.

É necessário que os trabalhadores, o movimento operário e sindical, combatam quaisquer tentativas de fomentar ilusões, resignação ou atentismos que mais não visam que paralisar a acção e a resposta aos problemas. 

Cabe aqui dizer, ainda, que é esse o objectivo do Governo do PS ao apresentar a proposta de alteração da legislação laboral, no âmbito da chamada Agenda do Trabalho Digno. Tal como as dezenas de outras iniciativas anteriores, anunciadas como a última novidade e prometidas para dar resposta aos problemas dos trabalhadores – dar dignidade ao trabalho, digamos assim -, também esta “Agenda”, apresentada como todas as anteriores iniciativas do género com muita pompa e circunstância, não conduz à resolução dos problemas mais prementes dos trabalhadores. 

Para que não se diga que são apressadas as considerações sobre esta “Agenda” do trabalho, importa lembrar os inúmeros estudos, relatórios, debates e outras iniciativas que ao longo das últimas décadas foram apresentadas como reflexões, propostas e medidas, todas elas a prometer um futuro esperançoso e digno para o mundo do trabalho, futuro esse que continua sempre adiado, porque o presente é de retrocesso e não de progresso.   

Lembremos apenas a Carta dos Direitos Fundamentais ou o Pilar Europeu dos Direitos Sociais, ou ainda iniciativas mais recentes, como as chamadas Europa Verde ou Digital, ou a Cimeira Social Europeia. AH! Tivemos também o Livro Verde sobre o futuro do trabalho, pretensa análise da situação em Portugal, mas que não aprofundou a análise do quadro das relações sociais, tão-pouco as causas e consequências dos problemas que afetam a vida dos trabalhadores portugueses.

O que resultou então de tudo isto? Muita parra e pouca uva! 

Olha-se agora para esta “Agenda” do Governo PS e o que se vê é mais do mesmo. É uma “Agenda” que não dá resposta aos problemas estruturais do mundo do trabalho no plano dos salários, do emprego e da precariedade, do tempo de trabalho e da desregulação dos horários, da contratação colectiva; que mantém o regime da caducidade das convenções e não reintroduz o princípio do tratamento mais favorável ao trabalhador.    

São opções que, vindas donde veem, pode dizer-se que não surpreendem. São opções dos sucessivos governos, inscritas no livro negro do capitalismo.

Camaradas e amigos,

É vasto o legado de Karl Marx, um legado que transporta para a atualidade a pertinência da análise não dogmática dos seus textos, do debate que é condição necessária à compreensão do seu pensamento sobre o funcionamento do sistema capitalista, mas também condição indispensável para perspetivar, a partir do aprofundamento desse conhecimento, linhas de acção e intervenção, de reforço da luta em defesa dessa aspiração milenar da humanidade que é acabar com a exploração do homem pelo homem.   

Apesar das dificuldades que tem de enfrentar, o movimento operário e sindical assume o papel insubstituível de ser a força motora para a emancipação dos trabalhadores e a transformação da sociedade. 

É esta, a luta do nosso tempo!

É imperioso intensificar a acção nos locais de trabalho, afirmar as reivindicações e mobilizar os trabalhadores para a luta em sua defesa e concretização, desenvolver a luta de massas.

Vivam os trabalhadores!  Viva o Partido Comunista Português!

  • Economia e Aparelho Produtivo