"Luta de classes no coração da Ásia"

Entrevista com Sitaram Yechury, do Partido Comunista da Índia (Marxista) [PCI(M)], e Bhalchandra, do Partido Comunista da Índia (PCI)
Avante Edição N.º 1624, 13-01-2005

Mais de meio século após a independência face ao colonialismo britânico, a Índia permanece como uma das nações onde o povo está sujeito a condições de vida de maior dureza. A percentagem da população que subsiste abaixo do limiar da pobreza destapa misérias agravadas por anos de políticas sujeitas aos interesses do capital e das grandes multinacionais. Os sucessos alcançados pelos comunistas nos governos provinciais, o seu abnegado empenho na luta de massas traduziram-se recentemente na derrota do governo de direita e na eleição de um executivo suportado pelos comunistas.

Em conversa com Sitaram Yechury, do Partido Comunista da Índia (Marxista) [PCI(M)], e Bhalchandra, do Partido Comunista da Índia (PCI), procurámos compreender a realidade do segundo país mais populoso do mundo, as razões da luta crescente de um povo e o quotidiano imediato dos comunistas que, no conjunto dos dois partidos, contam com quase um milhão de militantes.
De passagem, abordámos algumas questões candentes da política internacional e confirmámos que entre camaradas nem os quilómetros separam o que as razões aproximam.
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Avante!: Quais são as principais linhas de acção dos comunistas na Índia?

Sitaram Yechury: Sensivelmente a meio do ano passado, foi eleito um governo que se encontra dependente do apoio da esquerda. Os comunistas e as forças de esquerda ocupam 61 lugares no parlamento, dos quais 45 são deputados do PCI(M), o que não só configura para nós uma situação totalmente nova como permite dizer que sem a nossa força o actual executivo não existiria.
Neste quadro, há um papel fundamental a desempenhar pelos comunistas, em que se destacam dois objectivos primários no desenvolvimento das tarefas.
A vastidão territorial do país e a diversidade linguística, étnica e religiosa, obrigam a manter a unidade social e territorial, dimensões abaladas pela direita que, no poder nos últimos seis anos, governou em prol de um grupo particular.
Essa luta de classes entre o povo e os interesses neoliberais continua, pois. Ainda há matérias que nos separam do governo e que motivam o segundo grande objectivo que temos que dinamizar.
Travar a privatização dos serviços públicos; matérias ligadas ao investimento de capitais estrangeiros ou a imposições da Organização Mundial do Comércio são frentes em que assumimos a dianteira.
Embora estejam acordadas orientações mínimas quanto a medidas que podem melhorar as condições de vida populares, sabemos que temos que forçar o governo a adoptá-las.

Bhalchandra Kango: Mesmo considerando que na Índia existem muitos partidos de esquerda, foi possível unir a maioria dessas forças numa frente parlamentar comum que trabalha coordenada, o que constitui uma mudança positiva. Mas os problemas de fundo ainda se mantêm. Insiste-se em orientações de privatização, liberalização do mercado e aposta-se nas exportações em vez de se apostar no crescimento e no desenvolvimento interno, por exemplo, factos que para o PCI, para o povo e para o país constituem um desafio: obrigá-los a adoptarem práticas favoráveis aos interesses populares.
Estamos igualmente empenhados nas lutas antiglobalização, na afronta aos poderes imperialistas como o Banco Mundial ou Fundo Monetário Internacional e as suas raízes neoliberais.

De que forma é que as experiências de participação dos comunistas em governos provinciais ajudam a enfrentar os desafios colocados à esquerda indiana?

B.K. : A situação que se viveu nos últimos anos foi fundamentalmente dominada pelo centro e a direita. Isto constitui uma grande experiência no que a governos de partidos de centro diz respeito.
Por outro lado, não participamos directamente no executivo, apoiamo-lo só no parlamento com base num programa mínimo comum que deve ser a força motriz da implementação das políticas concretas.
Entre os principais pontos temos questões que visam resolver os flagelos que afectam as condições de vida do povo indiano, tais como o desemprego, a universalização dos serviços públicos, a extensão das ajudas à agricultura familiar e de subsistência.
A nível regional, em Bengala Ocidental e Kerala, os comunistas e aliados estão no governo provincial desde há 27 anos, facto que tem fornecido um enorme traquejo executivo na transformação da realidade.
Tem decorrido um grande debate no seio dos comunistas sobre a possibilidade de ampliarmos as coligações a nível regional. Felizmente, esta questão é agora mais pacífica, o que ajudou a esclarecer o nosso papel na sustentação de um governo nacional, mesmo que apenas do ponto de vista parlamentar e de acordo com as linhas do programa previamente assinado.

S. Y. : O PCI(M) é governo em Kerala e Bengala Ocidental, mas o nosso sistema político limita a acção e influência dos executivos provinciais na condução das políticas centrais. Mesmo assim, onde somos poder fornecemos apoio às populações, sobretudo aos agricultores atingidos pela política neoliberal, ora através da canalização de fundos da província, ora reclamando-os ao governo central. No entanto, mesmo aqui há barreiras, pelo que procuramos integrar com coerência a nossa acção institucional no parlamento nacional, junto do povo e das organizações de massas e nos governos regionais. É uma trabalho simultâneo que se complementa.

E a par deste trabalho institucional existem linhas de acção que apontam para o trabalho de massas junto do povo e das suas lutas?

S. Y. : Para a maioria da população indiana a globalização capitalista foi um desastre.
Sob imposições da Organização Mundial do Comércio e em favor das grandes multinacionais, a Índia foi obrigada a retirar apoios à produção agrícola nacional e acabar com tarifas sobre os bens importados. Em consequência, tornou-se um mercado que despreza o cultivo local, o que motivou dez mil suicídios de camponeses nos últimos seis anos e vagas de fome como não se viam há mais de meio século.
Nesta área concentra-se uma parte do nosso trabalho: a reclamação da nossa capacidade produtiva e trabalho para o nosso povo.

B.K. : Procuramos influenciar em organizações de cariz sindical, de estudantes e juvenis, de mulheres, de agricultores, de intelectuais, nas quais o partido procura consciencializar as pessoas e, ao mesmo tempo, fomentar a unidade.
Temos a sensação que a nossa influência social e cultural na sociedade é muito maior que a nossa expressão eleitoral, sobretudo devido à longa tradição de combate do PCI, dos seus dirigentes históricos muitas vezes presos ou executados.

Actualmente qual é a relação entre os vossos dois partidos? Tentam trabalhar em comum?

B.K.: Desde 1980 que as relações são muito boas e têm vindo mesmo a melhorar. Aliás, foi recorrente a discussão da formação de uma frente comum de trabalho entre os dois partidos, o que actualmente acontece. Neste contexto, as relações podem considerar-se exemplares.
No campo do trabalho unitário falamos quase a uma só voz, o que permitiu também aprofundar o conhecimento da realidade para combater a direita e as forças imperialistas.
Antes dividiam-nos muitas discordâncias ideológicas, mas as condições obrigaram a uma aproximação, ao amadurecimento do debate e ao estabelecimento de linhas políticas e de trabalho comuns.

Que experiência é que vos trouxe a realização do Fórum Social Mundial (FSM) em Bombaim?

B.K. : É interessante verificar que, de acordo com os nossos objectivos, podemos retirar duas ou três notas sobre o FSM de Bombaim.
Destacámos a questão do socialismo como de fundamental actualidade. O slogan do FSM é que «Um outro mundo é possível». Nós procuramos reafirmar que não só é possível como tem que ser socialista.
Parte das organizações de massas, nas quais temos influência, estiveram empenhadas no sucesso do Fórum; ambos os partidos, o PCI e o PCI(M), lideraram conjuntamente debates e eventos; estruturas juvenis, sindicais, de agricultores, de mulheres deram o seu contributo no sentido por nós apontado.
Embora não tenha estado presente em Porto Alegre, os ecos que tenho recebido confirmam que em Bombaim a esquerda teve muito maior peso e influência.

S. Y. : É para nós uma experiência com duas vertentes.
Reforçou a ideia que temos da necessária unidade em torno das lutas antiglobalização, mas, porque se trata de uma plataforma, fez-nos reflectir com clareza nas tendências que a compõem.
A questão das ONG’s que se manifestam contra a globalização capitalista mas são subsídio-dependentes dos governos encerram uma contradição em si: funcionam como válvulas de escape. Como numa máquina, permitem a fuga do excesso de vapor para que o funcionamento do sistema se mantenha.
Nós, comunistas, somos quem apresenta uma solução ao capitalismo: a alternativa socialista. Com base neste apuramento, fazemos um balanço positivo do FSM de Bombaim.

Quais foram as principais razões para essa afirmação das ideias socialistas?

B.K. : Algumas das Organizações Não Governamentais (ONG’s) pareciam querer arredar as questões políticas do lugar central. Mas a força do povo e o empenho das massas obrigaram-nas a aceitar que a menos que desafiem politicamente o imperialismo não é possível encontrar soluções consistentes.
È esta realidade que obriga os partidos comunistas a manterem-se com as massas e a reforçarem o peso da esquerda na acção e coordenação unitárias, facto que ficou bem expresso em Bombaim e, julgamos, pode contribuir para reforçar o Fórum.
A nossa experiência reflecte que em Bombaim as organizações dos países do terceiro mundo não marcaram só presença. Definiram o debate e marcaram uma agenda justa.

A experiência das organizações indianas, desde as décadas de 70 e 80, na luta pela democratização da terra e contra as políticas agrícolas neoliberais pesou na condução do Fórum?

B.K. : A Índia é um país onde a população ainda é fundamentalmente agrícola, mas, ao mesmo tempo, é uma potência capaz de produzir, de dominar mercados, o que acirra a acção das multinacionais.
Os comunistas foram os primeiros a avisar que as políticas prosseguidas com o nome de «reformas» visavam dominar agricolamente a Índia. Dissemo-lo já em 1984 e hoje verifica-se que os pequenos produtores, a agricultura familiar, saíram fortemente prejudicados.
Este factor foi importante para o crescimento da influência dos comunistas, da sua credibilidade, o que permitiu mobilizar contra o governo de direita ao nível central mas também regional, onde é claro o poder dos grandes agrários. Foi com esta dinâmica que muitas organizações acolheram o FSM.

Que papel pode assumir a Índia na afirmação da paz e da convivência pacífica entre os povos numa época de imposição do militarismo neoliberal?

Um papel de desequilíbrio com uma postura independente.
O derrotado governo da direita traçou um caminho de subserviência aos interesses dos EUA, linha que estamos a tentar inverter através da pressão sobre o actual governo.
Ao nível de política externa, o que pretendemos é manter relações de amizade com todos os povos, incluindo os norte-americanos. Agora, em questões de guerra, de intervenção estrangeira, não admitimos que o país se envolva para defender interesses dos EUA. O parlamento aprovou uma resolução que condena o ataque ao Iraque, mas ainda podemos investir mais esforços em cativar a opinião pública mundial contra o belicismo imperialista e as suas consequências políticas e económicas.

Qual é a vossa leitura do conflito em Caxemira, que divide a Índia e o Paquistão?

B. K. : Caxemira é uma matéria que deve ser solucionada de forma pacífica entre os povos de Caxemira, Índia e Paquistão. Devido às intervenções do imperialismo a situação complicou-se, os países tornaram-se potências nucleares. Acreditamos que os povos pretendem a paz, até porque isso tem todo o interesse para os restantes povos do terceiro mundo.

S. Y. : Caxemira é parte de um legado histórico. Quando o território foi dividido entre Índia e Paquistão, Caxemira escolheu juntar-se à União Indiana, mas o Paquistão alegou que como a maioria da população era muçulmana e, logo, o território deveria ser administrado por eles. Do ponto de vista da legalidade internacional, a razão histórica está do lado da Índia, mas o facto é que existe um conflito que se arrasta e que não apresenta justificação para uma escalada da violência.
Este governo procura estabelecer laços de entendimento, de paz, mas os EUA têm interesses geoestratégicos muito fortes naquela área. Caxemira tem fronteiras com a Índia, Paquistão, Afeganistão, China, é o portão de entrada para a Ásia Central e por isso entendem que deve viver sobre o domínio imperialista. Quem controlar Caxemira tem acesso a quatro países nucleares na região.
Por isso os EUA auxiliam o aliado paquistanês, que retribui com apoio às invasões do Afeganistão e do Iraque.
Temos relações com alguns partidos de esquerda no Paquistão e contamos, este ano, realizar uma visita para fortalecer os laços entre as lutas dos dois povos.

Com que impressão ficaram do nosso Congresso?

S. Y. : Muito boa, até porque em matéria de política internacional e de análise de experiências temos posições muito próximas.
Nota-se que a discussão aqui concentrada é fruto do trabalho democrático de muitos meses, o que estimula as ideias e reforça a unidade.

B.K. : Fiquei surpreendido com a actividade que demonstram em questões que também para nós são linhas de acção permanentes, tais como a privatização dos serviços públicos ou a educação.
Em relação ao processo de integração europeia e à luta de classes que tal envolve é mesmo muito interessante verificar as diferenças de análise dos diversos partidos comunistas da Europa.
No terceiro mundo estamos acostumados a olhar para a Europa como uma força capaz de se opor ao imperialismo norte-americano, mas vir ao vosso Congresso permitiu perceber a perspectiva dos trabalhadores. Foi importante compreender que os povos da Europa também se confrontam com linhas de orientação neoliberais.

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