Intervenção de

Liberdade no sistema de ensino público - Intervenção de Miguel Tiago na AR

 

Declaração política sobre as limitações à liberdade no sistema de ensino público

 

Senhor Presidente,
Senhores Deputados,

O Sistema de Ensino Público cumpre um papel essencial no seio da sociedade portuguesa. Milhares de crianças entram anualmente no sistema de ensino e nele continuarão durante boa parte das suas vidas, percorrendo um caminho de aprendizagens e experiências que deve visar a sua formação enquanto indivíduo, enquanto ser social, capaz de utilizar o seu raciocínio e a sua capacidade criativa numa vivência humana e socialmente produtiva.

É aparentemente unânime a consideração de que ao Sistema de Ensino não cabe apenas a tarefa de formar com instrumentos básicos de trabalho. A sua missão central é a de criar um espaço de aprendizagem dialéctico, onde todos os factores devem contribuir para a formação integral do indivíduo, enquanto homem e mulher, enquanto cidadãos, capazes de questionar, criticar ou valorizar, capazes de transformar no rumo do progresso a sociedade em que se inserem, capazes de criativamente intervir no meio social.

É sob esta perspectiva que facilmente reuniremos consenso nesta Assembleia. Mas quando chega a hora de confrontar cada um com a sua prática, o caso muda de figura.

(Basta olhar o passado, basta analisar as políticas educativas dos sucessivos Governos, ora PS, ora PSD, com ou sem o CDS como muleta e facilmente se verifica a tendência de contrariar a escola pública, democrática, gratuita e de qualidade que por palavras vão apregoando).

Este governo PS não é excepção, bem pelo contrário, é uma expressão da mais aguerrida tendência destrutiva da escola enquanto meio de liberdade, de aprendizagem e de partilha do conhecimento. Este Governo acentua a linha de sub-financiamento, de ofensiva aos direitos dos professores, de insensibilidade perante a degradação dos edifícios e materiais escolares, de políticas de avaliação do estudante que mais não são senão barreiras no seu percurso escolar.

O actual Governo acentua a tendência competitiva do Ensino, a transformação do estudante num algarismo, incapaz de aprender, apenas capaz de executar.

É um Governo que coloca a gestão do próprio parque escolar nas mãos de uma empresa, como se a gestão deste património se tratasse de um negócio.

É assim que se vão contrariando os princípios da universalidade e democraticidade do Ensino, da gratuidade da frequência do ensino em qualquer um dos seus graus; é assim que se vão degradando as condições materiais e humanas da escola num panorama social cada vez mais complicado. É assim que se vai elitizando o percurso escolar na medida do poder económico das famílias. É assim que, passados 20 anos sobre a aprovação da Lei de Bases do Sistema Educativo, nos encontramos a cada dia mais distantes do cumprimento dos princípios socialmente igualitários que a norteiam.

Uma passagem pelas escolas do Ensino Básico e Secundário do País denuncia bem o estado a que os Governos permitiram que chegasse o Parque Escolar, não sem garantir todas as condições a um conjunto de escolas de elite, onde a triagem social se evidencia.

É desta forma que, passo a passo, os Governos foram criando as condições propícias para a privatização do Ensino, quer pela via da criação do negócio do apoio escolar, quer pela via da sua desresponsabilização perante a educação garantindo a proliferação de escolas privadas.

Nas escolas sente-se o abandono. Quer seja pelo soalho molhado pela chuva caiu dentro da sala de aula, pela ausência de pavilhão desportivo, pelo microscópio que não existe, pelo professor que não é compensado pelo trabalho, pelo estudante que não pode pedir mais dinheiro aos pais para explicações para passar no exame. Nas escolas não vinga o discurso do "tudo está bem" do Governo. Nas escolas não há Portugal moderno e sofisticado.

O Governo aposta forte no desmembrar das capacidades do Sistema Educativo, do seu potencial, atribuindo-lhe o papel de formador de mão-de-obra, criando cada vez mais clivagens nos percursos escolares, cada vez descontinuidades. Descontinuidades para os que, não podendo pagar as explicações, a Internet, o computador, os livros, as deslocações em transportes, as actividades extra-curriculares, vão ficando pelo caminho, ingressando no mercado de trabalho para suprir necessidades das suas famílias.

A escola está cada vez mais distante de cumprir o seu papel amplo e social. Na verdade, em todos os planos, as políticas de direita vão destruindo as conquistas de Abril, vão afastando o Sistema Educativo do progresso de que tanto carece. O desinvestimento acumulado e crónico faz com que o actual financiamento seja inferior ao verificado no ano de 2002. A Educação Sexual, lei desde 1984, continua por cumprir, tal como todos os seus pressupostos. Aqui, onde tanto se poderia avançar, o Governo atrasa, avança e recua, e o certo é que os estudantes continuam sem educação sexual nas escolas

A escola torna-se, gradualmente, num local onde cada vez mais os princípios da cooperação, do humanismo, do empenho, da fraternidade e do respeito são substituídos pelo individualismo, competição e facilitismo.

E como não bastam as políticas educativas desastrosas, o actual governo vai mesmo mais longe e vai permitindo e estimulando comportamentos que se opõem radicalmente à educação para a vivência colectiva num estado democrático. Ao invés de as escolas serem um espaço dedicado à cultura da democracia, da tolerância, da aprendizagem pela experiência e pelo conhecimento, vão crescendo os números de casos de ambientes securitários e autoritários, de vigilância quase policial, de limitação das liberdades dos estudantes, de perseguição a estudantes pela sua análise política dos problemas.

A escola pública é um espaço de aprendizagem também para a cidadania, para a vida democrática. Um Estado Democrático não pode permitir a ausência de democracia nos seus estabelecimentos, não pode permitir que regulamentos internos de estabelecimentos de ensino se sobreponham à lei e à Constituição da República.

O mais grave, no entanto, é que este Governo, ao invés de controlar a crescente tendência para a escola autoritária, estimula os ambientes persecutórios, as medidas repressivas e de controlo. A escola que queremos está em causa quando uma Direcção Regional de Educação emite uma circular obrigando funcionários, professores, estudantes e mesmo pais a apresentar queixa uns contra os outros por crime de coacção, sempre que alguém tente, ainda que verbalmente, dissuadir alguém de entrar numas instalações. Obrigar os professores, funcionários e estudantes e pais a apresentar queixas, identificar e listar os identificados à Direcção Regional, mesmo que não se sintam lesados, é uma prática persecutória e delatória que lembra outros tempos.

Por todo o país, nos são trazidos casos de desproporcionado autoritarismo, de atropelos à lei, nomeadamente à lei do associativismo jovem.

Escolas, cujos Conselhos Executivos proíbem as Reuniões Gerais de Alunos, proíbem as eleições para as Associações de Estudantes, proíbem a colagem de cartazes associativos em espaços de lazer, ameaçam estudantes, como um Conselho Executivo que ameaçou com um processo disciplinar todos os estudantes que aderissem à greve.         

Há inclusivamente Conselhos Executivos que orientam funcionários do estabelecimento de ensino correspondente para fazer piquetes aos portões das escolas para desmobilizar quaisquer manifestações ou concentrações estudantis de protesto.

Por todo o país, estudantes têm sido recorrentemente identificados pelas forças policiais por se encontrarem nas linhas da frente de uma manifestação, mesmo quando Governos Civis e Câmaras Municipais são devidamente notificados pelas Associações de Estudantes.

Por todo o país se vão conhecendo casos de má conduta por parte dos Conselhos Executivos de Escolas a que o Governo dedica apenas displicência, como se até viessem a calhar. Claro que o reflexo mais directo deste tipo de ambiente escolar é o do desencorajamento às práticas associativas de expressão ou reivindicação democráticas, é a imposição de um modelo de sociedade contrário ao que queremos criar, radicalmente diverso dos anseios do nosso povo e dos princípios do nosso Estado.

A limitação das liberdades afecta o próprio espaço onde deveríamos aprendê-las e ensiná-las. Estes são alguns sintomas de uma orientação política que marginaliza toda a actividade política que não seja meramente institucional, que visa a discriminação e condenação de formas legítimas de exercício da democracia, tão vitais para o seu funcionamento como o voto ou as instituições.

É esta tentativa de criar jovens prontos para o trabalho mas cada vez mais arredados da participação, da discussão e confronto democráticos que urge travar e é sobre ela que não se pode permitir qualquer tipo de comportamento apaziguador do Governo. A lei e a democracia são postas em causa nos estabelecimentos públicos, por agentes do sistema de ensino que é filho da democracia - é tempo de esta Assembleia saber, já é tempo de o Governo agir!

Disse.

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