Intervenção de

Lei de Segurança Interna e Lei de Organização da Investigação Criminal - Intervenção de António Filipe na AR

Declaração política, insurgindo-se contra as alterações à Lei de Segurança Interna e à Lei de Organização da Investigação Criminal levadas a cabo pelo Governo, o que se considera uma operação legislativa visando assegurar um controlo político do aparelho policial

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

Na passada quinta-feira, à tarde, o Sr. Ministro da Administração Interna, secundado pelo Sr. Ministro da Justiça, apresentou, oralmente, aos partidos da oposição, aquelas que seriam as linhas gerais das alterações a propor pelo Governo à Lei de Segurança Interna e à Lei de Organização da Investigação Criminal.

Nessa reunião, o Sr. Ministro garantiu que não existiam ainda propostas concretas em suporte escrito que pudessem ser fornecidas, dado que algumas questões ainda estavam em aberto, mas, na manhã seguinte, o Conselho de Ministros aprovou, na generalidade, as respectivas propostas de lei.

Este comportamento do Governo em relação aos partidos da oposição é inaceitável. As reuniões feitas ao abrigo do Estatuto da Oposição não passaram - já aqui o dissemos, e repetimo-lo - de uma encenação mentirosa, que põe em causa a relação de lealdade institucional que deve existir entre o Governo e os partidos parlamentares.

Ficamos a saber que não podemos confiar na palavra do Sr. Ministro da Administração Interna. Se mentiu a propósito destas propostas de lei, também é capaz de mentir noutras coisas.

O problema pior, porém, não está na forma, mas no conteúdo. Se a Resolução do Conselho de Ministros de 1 de Março, que decidiu a criação do Sistema Integrado de Segurança Interna (SISI) e do respectivo Secretário-Geral, já revelava os traços de uma politização preocupante do sistema de segurança interna e da investigação criminal, estas propostas de lei vão claramente mais além nesse propósito e contrariam mesmo a própria resolução.

O que o Conselho de Ministros decidiu, em 1 de Março, foi criar o SISI, em substituição do Gabinete Coordenador de Segurança, considerando que as competências deste eram limitadas por não ter capacidade para determinar soluções operacionais. Extinguir-se-ia, assim, o Gabinete Coordenador de Segurança e criarse- ia o SISI, com um secretário-geral nomeado pelo Primeiro-Ministro, dotado de meios efectivos de articulação e, até, de direcção, comando e controlo em situações devidamente tipificadas.

Ainda na passada quinta-feira, perante as nossas críticas à criação deste superpolícia, directamente dependente do Primeiro-Ministro, o Ministro da Administração Interna desmentia essa preocupação, afirmando que o SISI não era mais do que um upgrade (passe o anglicismo) do Gabinete Coordenador de Segurança, sendo até o Secretário-Geral nomeado nos mesmos termos em que já o era o Secretário-Geral do Gabinete Coordenador de Segurança.

Ora, o que se passa é que, ao contrário do que consta da Resolução do Conselho de Ministros, a proposta de lei não extingue o Gabinete Coordenador de Segurança. Reforça-o, em meios e em competências. Cria o Sistema Integrado de Segurança Interna, e fica com os dois.

Mais: não substitui o Secretário-Geral do Gabinete Coordenador de Segurança pelo Secretário-Geral do SISI, como era suposto. Não! Cria o cargo de Secretário-Geral do SISI, que passa a dirigir os dois Gabinetes, e cria também o cargo de Secretário-Geral Adjunto do SISI, que também é nomeado pelo Primeiro-Ministro, sob proposta do Secretário-Geral. Isto quer dizer que não teremos um superpolícia, teremos dois: um superpolícia e o seu adjunto.

Foi dito também, e consta, aliás, da Resolução do Conselho de Ministros, que as funções de comando do Secretário-Geral seriam excepcionais e devidamente tipificadas. Também não é verdade!

A proposta de lei atribui ao Secretário-Geral do SISI vastas competências de coordenação da acção das forças e serviços de segurança. Atribui-lhe também vastas competências de direcção, de organização e de gestão administrativa, logística e operacional dos serviços, sistemas, meios tecnológicos e outros recursos comuns das forças e serviços de segurança. Atribui-lhe, ainda, vastas competências de controlo, de direcção e articulação das forças e serviços de segurança no desempenho de missões ou tarefas específicas dessas forças e serviços. E atribui-lhe mais o comando operacional dessas forças em situações excepcionais.

E quem é que determina a excepcionalidade das situações? É o Primeiro-Ministro!

Estamos, pois, perante uma operação legislativa que visa assegurar um controlo político do aparelho policial que não tem precedentes em democracia.

O objectivo não é pôr mais polícias na rua, que tanta falta fazem aos cidadãos. Não! Quanto a isso, as admissões estão congeladas até 2009.

O objectivo também não é melhorar as condições de trabalho e de vida dos profissionais de polícia. Não!

Quanto a esses, o Governo quer mantê-los ao longe, para que o brilho da Presidência portuguesa não seja ofuscado pelos protestos das forças policiais.

O objectivo é criar um super-aparelho de controlo policial nas mãos do Primeiro-Ministro, com possibilidade de delegação no Dr. Rui Pereira.

Ou seja, este super-aparelho de controlo, que abrange todas as forças de segurança do Ministério da Administração Interna e do Ministério da Justiça e que envolve ainda os Serviços de Informações e, o que é inédito, as próprias Formas Armadas, pode ficar delegado, pelo Primeiro-Ministro, no Dr. Rui Pereira, que, após ter sido Director do SIS, Secretário de Estado da Administração Interna, Chefe da Unidade de Missão para a Reforma Penal, depois de ter visto goradas as suas activas e pouco secretas esperanças de ser Procurador-Geral da República, e depois de uma curta passagem de um mês e meio pela função, decerto pouco aventurosa, de juiz do Tribunal Constitucional, chega por fim a um cargo mais próximo das suas aspirações.

Não temos nada de pessoal contra este membro do Governo, nem contra qualquer outro. Não nos movem animosidades pessoais.

O que nos preocupa é a deriva securitária que transparece claramente destas intenções governamentais e que é também ilustrada, de uma forma muito elucidativa, pelo conteúdo da proposta de lei de Organização e Investigação Criminal, também aprovada no Conselho de Ministros da passada sexta-feira.

Basta olhar para a vastidão das medidas especiais de polícia que aí estão previstas, que passam por buscas, apreensões, acções de fiscalização, vistorias, encerramento de estabelecimentos, revogação de autorizações, cessação de actividade de organizações ou associações, corte de comunicações ou encerramento de espaços públicos - tudo sem controlo judicial prévio -, para perceber que estamos perante uma deriva securitária que não pode deixar de preocupar todos aqueles que prezam a democracia e as liberdades.

Já alguém disse que quem aceita sacrificar a liberdade em nome da segurança não merece ter uma nem outra. Nós achamos que Portugal e o Povo Português merecem ambas e não aceitamos que os valores democráticos que os portugueses tão duramente conquistaram sejam sacrificados para dar lugar a um Estado policial que, paulatinamente, se vai impondo por entre juras de fidelidade à democracia.

(...)

Sr. Presidente,
Sr.ª Deputada Sónia Sanfona,

O parecer que a Comissão Nacional de Protecção de Dados elaborou para esta Assembleia sobre uma matéria que, recentemente, esteve aqui em discussão, a lei de bases do ADN, contém uma afirmação muito elucidativa, que é esta: todas as medidas securitárias que têm sido tomadas nos últimos anos, têm-no sido com as melhores intenções. De facto, não há nada que se faça em matéria de segurança interna que não seja fundamentado e apresentado publicamente como sendo algo justificado, dada a sofisticação da criminalidade - e, na falta de um outro argumento, invoca-se o do combate ao terrorismo.

Com esse argumento, estão a passar, desde há vários anos, medidas securitárias que não têm rigorosamente nada a ver com o combate ao terrorismo e que não são minimamente justificadas pelo combate ao terrorismo.

O que está a acontecer é que o combate ao terrorismo passou a ser o «biombo» para tudo e mais alguma coisa. E, passo a passo, tem vindo a ser construído o Estado securitário.

Os Srs. Deputados do Partido Socialista dizem sempre que não recebem lições de ninguém em matéria de democracia. O problema é que fazem estas medidas! E os democratas não se medem apenas pelo que dizem mas também pelo que fazem. Tem de haver uma atitude de coerência.

Quem se diz defensor da democracia e das liberdades, deve ter uma conduta coincidente com isso.

De nada serve «bater no peito» em defesa da democracia e, depois, fazer aprovar medidas que de democráticas rigorosamente nada têm. Essa é que é a questão.

Sr.ª Deputada, há aqui questões que o Partido Socialista e o Governo têm de clarificar. Como é que a Resolução do Conselho de Ministros do dia 1 de Março diz que o Gabinete Coordenador de Segurança vai ser extinto e substituído pelo Gabinete do Secretário-Geral do sistema integrado e, agora, a proposta de lei mantém os dois? Ou seja, mantém o Gabinete Coordenador de Segurança, reforça-o de meios, nomeia para lá um Secretário-Geral Adjunto e, entretanto, cria, à parte, o Gabinete do Secretário-Geral do sistema de informações. Têm de se entender! Têm de se entender, pois o que foi aprovado na Resolução do Conselho de Ministros não é o que consta desta proposta de lei - e os senhores, quanto a isso, nada dizem.

A Sr.ª Deputada diz que o Secretário-Geral tem funções de coordenação absolutamente necessárias. Não tem, Sr.ª Deputada! Tem funções de coordenação, de direcção, de controlo e de comando operacional e quem decide quando é que ele exerce funções de comando operacional é o Primeiro-Ministro, com delegação no Ministro da Administração Interna.

Quanto ao mais, a Sr.ª Deputada disse-nos que o Dr. Rui Pereira é Ministro da Administração Interna.

Também já tínhamos reparado, Sr.ª Deputada.

(...)

Sr. Presidente,
Sr.ª Deputada Ana Drago,

Agradeço-lhe a questão colocada, que tem toda a importância e em relação à qual, concordando com as preocupações que manifestou, me permito dizer algo mais.

De facto, a este Secretário-Geral do sistema integrado de segurança interna já houve quem chamasse o «Pina Manique do século XXI», e provavelmente com alguma razão, porque está aqui em causa uma concentração de poderes policiais que, em democracia, não tem precedentes.

E a Sr.ª Deputada fez bem em chamar a atenção para um outro facto: o de começarmos a duvidar da eficácia destas medidas em sede de coordenação. Basta pensarmos que, no conjunto destas duas propostas de lei, temos um gabinete do sistema integrado de segurança interna, temos um gabinete coordenador de segurança, depois temos o Conselho Superior de Segurança e na outra proposta de lei mais um conselho coordenador dos órgãos de polícia criminal. Ou seja, qualquer dia, tem de se fazer uma nova lei para decidir quem é que coordena os coordenadores, porque já temos aqui uma miríade de estruturas de coordenação sobrepostas, e algumas delas com as mesmas pessoas. Portanto, já ninguém se entende quanto a isto.

A Sr.ª Deputada também chamou a atenção para algo de muito grave: as medidas de polícia, previstas na proposta de lei sobre a organização da investigação criminal. É que, com este instrumento legislativo, as polícias podem fazer tudo, isto é, a intervenção judicial, que, em princípio, deveria ser exigida quando estivesse em causa a salvaguarda de direitos fundamentais dos cidadãos, aqui só tem lugar 48 horas depois, quando o mal - se é que foi mal - já está feito e não tem remédio, preterindo-se assim os direitos fundamentais dos cidadãos.

Portanto, trata-se de dotar as forças policiais de um conjunto de poderes discricionários, que vão ao ponto de interceptar ou cortar telecomunicações, de encerrar estabelecimentos ou até de proibir associações e organizações, o que é gravíssimo. Ou seja, trata-se de um conjunto de medidas que, objectivamente, são medidas securitárias, graves em si mesmas, mas acrescidamente graves pelo facto de poderem ser praticadas pelas forças policiais sem qualquer controlo judicial prévio.

(...)

Sr. Presidente,
Sr. Deputado Nuno Magalhães,

Muito obrigado pelas perguntas que me colocou.

Devo dizer que concordo consigo pelo menos quanto a um ponto: é que não há dúvida nenhuma no que respeita às profundas diferenças em matéria de política de segurança interna entre o que é preconizado pelo CDS-PP - que o pôs em prática quando foi Governo - e o que o PCP defende e considera adequado. Isso é exactamente assim.

Contudo, creio é que o Partido Socialista já não pode dizer o mesmo no que se refere às concepções que defende e àquilo que o CDS também defende.

Diria até que o CDS, quando esteve no Governo, não se lembrou de medidas destas, mas se se tivesse lembrado seguramente que o Partido Socialista, quando estava na oposição, diria «Aqui d'el rei, os senhores não podem fazer isto, porque estão a pôr em causa a democracia».

Agora acha que estas medidas são muito adequadas.

O Sr. Deputado chamou ainda a atenção para um ponto que creio valer a pena referir: é que esta figura a criar (não sabemos quem irá ocupar este cargo de Secretário-Geral do sistema integrado de segurança interna) não tem só as funções de coordenação, que foi dito que tinha, tem muito mais do isso.

Creio que, para além das tais funções de comando operacional directo, que contestamos e que poderão ser decididas pontualmente pelo Primeiro-Ministro (é o Primeiro-Ministro que decide se há uma situação que justifique que o secretário-geral assuma essas funções), e independentemente de qualquer decisão nesse sentido, isto é, com carácter permanente, o Secretário-Geral tem competências para dirigir coisas como, por exemplo, a utilização dos serviços comuns, designadamente no âmbito do Sistema Integrado de Redes de Emergência e Segurança de Portugal e da Central de Emergência do 112, bem como para garantir a interoperabilidade entre os sistemas de informação das entidades que fazem parte do Sistema de Segurança Interna e o acesso por todas, de acordo com as suas necessidades e competências, a esses sistemas.

Ou seja, o Secretário-Geral dirige, a título permanente, um conjunto de serviços comuns a todas as forças de segurança, que envolvem vários ministérios, que inclui os respectivos sistemas de informação! E se pensarmos que há uma ligação directa entre o Secretário-Geral do SISI e o Secretário-Geral dos Serviços de Informações da República ficamos com uma visão real do que é esta figura! Isto é, ele controla, a nível superior e não apenas pontualmente, as forças de segurança no seu conjunto naquilo que elas têm de mais importante e de mais sensível, que é o próprio acesso aos respectivos sistemas de informação!

Portanto, não estamos apenas perante uma figura de coordenação, como era, ou poderia ser, o Gabinete Coordenador de Segurança, estamos, de facto, perante um superpolícia, e em democracia nunca se foi tão longe na politização do Sistema de Segurança Interna, como pretende fazer este Governo.

 

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