Intervenção de

Lei de Bases da Família<br />Intervenção de Odete Santos

Sr. Presidente, Sr. as e Srs. Deputados,Sob o ponto de vista ideológico, esta matéria dá um interessante debate. Não conheço nenhuma área em que, provavelmente, as questões ideológicas venham tanto ao de cima como neste caso. No entanto, registo que a posição do Partido Socialista é agora muito mais frontal do que era na altura em que viabilizou a discussão na especialidade do projecto de lei do CDS. Nessa altura, o PS não votou contra na generalidade, não lhe encontrou os defeitos que agora encontra. Devo dizer que encontro nos dois projectos de lei os condimentos que me fazem recordar aquelas épocas em que se falava muito na unidade e na estabilidade de família e em que, em nome disso, se proibia o divórcio à grande maioria dos casais, porque era preciso submeter os membros do agregado familiar ao bem da família, ao interesse da família. Não, Srs. Deputados, a nossa Constituição não autoriza o que plasmaram aqui nestes projectos de lei, porque a nossa Constituição assenta na consideração de que há variadas espécies de família: isoladas, monoparentais... As famílias isoladas começam a aparecer nas estatísticas. A família é uma realidade em constante mutação, que não pode ser classificada como os senhores pretendem classificar. A Constituição tem tudo o que deve ter para promover o direito à felicidade das pessoas que constituem a família. É que não pode existir o bem da família se as pessoas forem infelizes, se as pessoas tiverem de se submeter a um qualquer interesse que os senhores refiram para o futuro, como por exemplo a questão da educação. É importante salientar que até nisso, para além dos casos da questão com base no ditame das famílias, poderiam ser colocadas objecções a currículos ao ensino de concepções científicas, como está a acontecer em outros países, o que é uma verdadeira vergonha. Esse dispositivo também visa aquela velha e decantada questão da educação sexual, em que os senhores querem demitir o Estado desse dever de proporcionar a educação sexual. A educação sexual é o conteúdo do direito à educação, porque a educação assume, também nessa área, um dever por parte do Estado. Além disso, conciliando com o diálogo e o debate, a educação sexual deve promover o avanço das próprias ideias das famílias, que em muitos casos transmitem, não por culpa delas nem por culpa das mulheres — mas com o empenhamento de muitas mulheres —, concepções retrógradas que vêm do tempo em que a família era considerada uma unidade e no altar da qual tudo se devia sacrificar. Srs. Deputados do CDS, os senhores nem sequer fugiram à tentação de, através deste projecto de lei, quererem atingir o objectivo de proibir o aborto, porque propõem um artigo… Não se admire, Sr.ª Deputada Teresa Caeiro! Tem de ler tudo. Provavelmente não leu o seu próprio projecto de lei! Dizia eu que há um artigo no vosso projecto de lei que diz que o Estado deve proteger as crianças — notem o que digo — antes e depois do nascimento. Estão, pois, a considerar que antes do nascimento já há um ser humano, uma pessoa! Ora, essa é uma questão que cientificamente ainda não está demonstrada. Essa atitude corresponde ao objectivo de VV. Ex. as no sentido de também alterarem o artigo da Constituição sobre o direito à vida. A Sr.ª Deputada não leu o seu próprio projecto, mas está lá escrito. A Sr.ª Deputada Ana Manso disse aqui que a família era um referencial de segurança. Infelizmente, não é um referencial de segurança. Não pode haver segurança dentro das famílias quando as pessoas que as compõem não se sentem seguras por diversas razões, nomeadamente por causa do desemprego e das condições de trabalho que encontram. Não é a família que serve para que choremos as lágrimas no ombro do parceiro. Pelo contrário, essas situações dão origem a tremendos conflitos familiares e à degradação das condições que as pessoas encontram nas famílias. É aqui que está o ponto, não podendo VV. Ex. as agora também apontar o dedo ao PS — embora a crítica seja verdadeira — por causa do desemprego, porque também no vosso tempo assistimos à progressão dos números do desemprego. Essa é a pior maneira de contribuir para a felicidade dos membros do agregado familiar. Penso que já mencionei as questões mais importantes, mas a verdade é que ainda queria referir dois aspectos que me parecem relevantes. Antes de mais, gostava de dizer aos Deputados dos partidos proponentes que o que VV. Ex. as aí têm, nomeadamente em relação à conciliação da actividade profissional com a vida familiar, ao valor do trabalho doméstico e à deificação do associativismo familiar, seria o melhor caminho para conduzir as mulheres de regresso a casa — o que, aliás, já está a acontecer! Se lerem as últimas estatísticas publicadas pelo Instituto Nacional de Estatística, verificarão que a taxa de actividade das mulheres portuguesas baixou significativamente. Não deixo de recordar umas eleições em que uma confederação de associações familiares veio propor aos diferentes partidos um programa para a protecção das famílias que assentava no regresso a casa das mulheres para tomarem conta dos filhos, recebendo, por isso, um subsídio…! Dizia o manifesto em causa que ficava mais barata esta medida do que o Estado investir nas creches. Isto, de facto, é inadmissível e contraria em tudo os direitos das mulheres, que, com a aprovação destas iniciativas, seriam discriminadas. Depois, há a questão relativa ao direito à diferença das famílias das comunidades étnicas. Ideologicamente, é um mau caminho falar-se no direito à diferença. Falar no direito às diferenças entre cada cidadão, entre um e outro, é uma coisa, mas classificar os cidadãos por classes e dizer que têm direito à diferença é também o melhor caminho para a discriminação. Aliás, a Simone de Beauvoir, n’O Segundo Sexo, trata isto muito bem, quando invoca a questão dos negros e dos seus direitos nos Estados Unidos da América, dizendo que o Supremo Tribunal Federal considerou, até determinado momento, que eram justificadas as leis segregacionistas porque, dizia o Supremo, eles próprios, as comunidades negras, arrogavam-se o direito a ser diferentes. Ora, se eram diferentes, então tinham de ser tratados de forma diferente. Eu penso que o que une os cidadãos é a igualdade, é o facto de todos sermos seres humanos racionais e o resto, efectivamente, não interessa. É por isso que, ideologicamente, os vossos projectos são muito maus, têm tudo de negativo e não dão qualquer contribuição positiva.

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