Julgamento de Álvaro Cunhal

Julgamento de Álvaro Cunhal
Que se sentem os fascistas no banco dos réus Que se sentem os fascistas no banco dos réus

70 anos do julgamento
de Álvaro Cunhal

Em Maio de 1950, Álvaro Cunhal transformou o tribunal fascista numa tribuna para defesa da democracia, da paz e da independência nacional, e de denúncia da violência e da tortura, quer física quer intelectual, a que foi submetido pela PIDE e pelo regime prisional.
Ao assinalar os 70 anos do seu julgamento, que ocorreu no Tribunal Plenário fascista da Boa Hora, em Lisboa, o PCP reafirma a sua firme luta contra a ideologia fascista e as tentativas de branqueamento do fascismo, reafirmando que é defendendo os valores da Liberdade e da Democracia, da Justiça e Progresso social, da paz e da independência nacional que se constrói o futuro de Portugal.

Declaração de Jerónimo de Sousa

Secretário-Geral do PCP

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Intervenção de Álvaro Cunhal realizada perante o tribunal fascista em 2 de Maio de 1950 [Publicada em Álvaro Cunhal – Obras Escolhidas – Tomo II]*

No princípio do julgamento, o juiz presidente pergunta a identidade aos réus. Depois, dirigindo-se a Álvaro Cunhal, diz:

Juiz - Sabe de que é acusado? Tem alguma coisa a dizer em sua defesa?

AC - Sim. Quero começar por referir neste tribunal que, desde a minha prisão em 25 de Março de 1949, há, portanto, mais de um ano, me encontro ilegalmente submetido a um regime de rigoroso isolamento.

Juiz - Sabe certamente que há peças no processo relativas a isto.

AC - Perfeitamente. Não há qualquer exagero em dizer que esse regime é uma nova forma de tortura. Uns resistem a ela, outros, como esse grande patriota que foi Militão Ribeiro, perdem nela a vida, conforme tomei conhecimento já depois de me encontrar neste tribunal. Da primeira vez que fui preso, como me negasse a prestar declarações, algemaram-me, meteram-me no meio de uma roda de agentes e espancaram-me a murro, pontapé, cavalo-marinho e com umas grossas tábuas com uns cabos apropriados. Depois de me terem assim espancado longo tempo, deixaram-me cair, imobilizaram-me no solo, descalçaram-me sapatos e meias e deram-me violentas pancadas nas plantas dos pés. Quando cansados, levantaram-me, obrigando-me a marchar sobre os pés feridos e inchados, ao mesmo tempo que voltavam a espancar-me pelo primitivo processo. Isto repetiu-se numerosas vezes, durante largo tempo, até que perdi os sentidos, estando 5 dias sem praticamente dar acordo de mim. Desta vez não fui sujeito aos mesmos processos. Mas estou em condições de comparar, avaliar e aqui dizer que um ano de isolamento não é menos duro que os referidos maus tratos. Não há, pois, qualquer exagero ao dizer que o referido regime de isolamento é uma nova forma de tortura. Há, entretanto, que sublinhar que, no meu caso, se não trata dos célebres «safanões a tempo» para arrancar confissões (de que há anos falava o Sr. Presidente do Conselho **), mas, antes, de medidas tomadas pela polícia pelo despeito de não ter podido obter tais confissões. De facto, na PIDE foram-me feitas variadas perguntas relacionadas (umas directamente, outras indirectamente) com a minha actividade política. A todas elas me recusei a responder com o fundamento - que mantenho - de que um membro do Partido Comunista Português, força política de vanguarda na luta pela Democracia, a Independência Nacional e uma Paz Duradoura, não tem quaisquer declarações a fazer à polícia política, instrumento de repressão violenta exercida contra os trabalhadores e contra os portugueses democratas, patriotas e partidários da Paz. Com grande alegria verifiquei que os meus queridos camaradas, comigo presos e companheiros neste processo, o saudoso Militão e Sofia, tomaram igual atitude.

Campanha pela libertação de Álvaro Cunhal ao terminar a pena a que fora condenado pelo tribunal fascista
Campanha pela libertação de Álvaro Cunhal ao terminar a pena a que fora condenado pelo tribunal fascista

Porque o podemos fazer? Porque aumenta cada dia o número de comunistas que, arrostando com todas as consequências, o fazem também? Isso deve-se a que os comunistas sabem defender a sua causa com dedicação e honradez. Isso deve-se ao auxílio que nos presta o nosso Partido, ao trabalho de educação por ele feito junto de nós, com a valorização constante dos militantes sérios e corajosos, o justo sancionamento dos que cometem faltas graves e a expulsão e o desmascaramento implacáveis dos cobardes e traidores. O Partido Comunista não é apenas uma escola de formação política, como também uma escola de formação de carácter.

Álvaro Cunhal refere depois como o isolamento prejudicou a preparação da defesa, refere-se às notas oficiosas sobre a sua prisão, «onde abundam as inexactidões propositadas e as mais grosseiras mentiras e calúnias», diz que algumas destas constam do processo e que se a PIDE não ousou trazer a este tribunal todas as acusações que ousou fazer perante a opinião pública, «isso se deve a que um tribunal tem que apresentar qualquer coisa que se pareça com uma prova, ao passo que na grande imprensa pensam que alguma coisa fica das calúnias, uma vez que dispõem da imprensa e da censura e que estão seguros da impunidade, ainda que temporária». Tudo considerado, diz tornar-se indispensável, para a sua defesa, «esclarecer, desde já, no início deste julgamento, alguns pontos fundamentais».

1.º ponto a esclarecer:

Os comunistas portugueses e o movimento operário internacional

É geralmente sabido que, com a dissolução da Internacional Comunista em 1943, desapareceu o centro comum da direcção do movimento comunista internacional. Durante 20 anos, a IC teve um papel decisivo no desenvolvimento geral do movimento operário, na defesa dos interesses dos trabalhadores, no progresso do movimento libertador nos países coloniais e dependentes, na libertação do movimento operário da influência ideológica dos líderes oportunistas e reformistas da II Internacional, na formação de verdadeiros Partidos de tipo leninista (com uma teoria e uma táctica revolucionárias) e de dirigentes operários capacitados, de verdadeiros dirigentes nacionais. Mas, cumprida esta sua missão histórica, a IC estava-se tornando um entrave ao desenvolvimento do movimento operário em geral e de cada PC. Daí terem estado de acordo todas as secções da IC, entre as quais o PCP, com a dissolução da IC e o consequente desaparecimento de um centro comum de direcção do movimento comunista internacional.

Campanha nacional e internacional pela libertação de Álvaro Cunhal. A nível internacional, destacam-se as participações de Pablo Neruda e Jorge Amado
Campanha nacional e internacional pela libertação de Álvaro Cunhal. A nível internacional, destacam-se as participações de Pablo Neruda e Jorge Amado

Depois do fim da guerra anti-hitleriana (de que o capitalismo, no seu conjunto, saiu extraordinariamente enfraquecido e o socialismo extraordinariamente fortalecido), com a formação de dois campos políticos no mundo (o democrático e anti-imperialista e o imperialista e antidemocrático), com o empreendimento da subjugação económica e política da Europa pelos Estados Unidos, como passo para o estabelecimento do seu domínio mundial, com os preparativos de uma guerra de agressão contra a URSS e as Democracias Populares (principais obstáculos à realização dos planos expansionistas anglo-americanos), e com a acção concertada da burguesia reaccionária contra o movimento operário e democrático, o isolamento, a falta de coordenação de actividades dos Partidos Comunistas tornava-se altamente prejudicial não só para a defesa dos interesses do proletariado, como para a defesa da Paz e da segurança e da independência das nações.

A situação era particularmente grave em relação à Europa. Daí terem acordado os Partidos Comunistas e Operários da grande União Soviética e das Democracias Populares europeias (com excepção da Albânia) - directamente visadas pelos fomentadores de uma nova guerra - e das duas grandes democracias burguesas do Ocidente da Europa (a França e a Itália) - em vias de completa marshallização - na criação do Bureau de Informação dos Partidos Comunistas e Operários, constituído, portanto, por nove partidos, mais tarde reduzido a oito com a defecção do Partido Comunista da Jugoslávia. As finalidades do Bureau de Informação foram, por um lado, assegurar a troca de experiências e coordenação de actividades dos Partidos seus componentes; por outro lado, dar uma informação concreta da situação internacional e da política comunista através de um jornal que se publica, em várias línguas, na cidade de Bucareste, intitulado Por Uma Paz Duradoura, Por Uma Democracia Popular.

Ficha com a biografia prisional

O Bureau de Informação não é, assim, ao contrário do que afirmam a propaganda reaccionária e as autoridades portuguesas, uma reconstituição da IC, ele não é um centro comum de direcção do movimento comunista internacional.

Vê-se, assim, como são puras mentiras, puras invenções, as afirmações da propaganda reaccionária acerca da existência de «centrais» e de «agentes» do Bureau de Informação para este ou aquele país, das «instruções» do Bureau de Informação para este ou aquele país, e, no que respeita às acusações que contra mim foram formuladas, a minha suposta ligação com uma suposta e inexistente central do Bureau de Informação com sede em Argel e Tânger (sic) e a minha suposta «presidência» de um suposto e inexistente «comando» (sic) constituído por portugueses e espanhóis, com supostos e inexistentes «agentes» em Portugal, Espanha e França. Isto são puras mentiras, puras invenções; é o tocar do estafado disco das «ordens do estrangeiro», do «olho de Moscovo», com o fim de deturpar perante a nação o carácter nacional e patriótico da nossa luta de comunistas portugueses e com o fim de levar os democratas mais vacilantes a afastar-se de nós. Velho e estafado disco na nova gravação norte-americana...

Mas o que atrás fica dito não significa de forma alguma que os documentos do Bureau de Informação (a Resolução sobre a situação internacional tomada em 1947 na base do magistral relatório do saudoso e grande camarada Jdánov e a Resolução sobre a situação do PC da Jugoslávia) não sejam documentos históricos e uma contribuição indispensável para o fortalecimento político e ideológico de cada PC, a definição correcta da sua linha política na actual conjuntura internacional e a determinação das direcções fundamentais comuns do proletariado e de todas as forças democráticas e anti-imperialistas internacionais. Por essa ajuda, nós, comunistas portugueses, com todos os comunistas do mundo, não podemos deixar de estar agradecidos aos Partidos componentes do Bureau de Informação e, particularmente, ao grande Partido do mestre de todos os trabalhadores, José Stáline.

Desenho feito na prisão representando uma cena de trabalho no campo
Desenho feito na prisão representando uma cena de trabalho no campo

O que atrás fica dito não significa tão-pouco que o PCP não tenha e não deva ter relações fraternais estabelecidas com Partidos Comunistas irmãos. Numa altura em que a burguesia reaccionária se dá as mãos por cima das fronteiras contra o proletariado, contra os direitos humanos fundamentais, contra a liberdade das pátrias, contra a Paz, seria um crime que jamais o nosso povo nos perdoaria mantermo-nos isolados, separados das forças de vanguarda do campo democrático e anti-imperialista. Se alguma coisa há a modificar a este respeito na actividade do PCP é no sentido do alargamento e reforçamento das relações com os Partidos irmãos, especialmente com os de Espanha, França, Inglaterra e Brasil.

A fidelidade aos princípios do internacionalismo proletário é indispensável não só para a defesa concreta dos interesses do proletariado, como para a defesa da Paz e da Independência Nacional. E passo assim ao:

2.° ponto a esclarecer:

Os comunistas portugueses e a Independência Nacional

De há muito, na generalidade dos países capitalistas, as classes dominantes deixaram de poder identificar os seus interesses de classe com os interesses nacionais. Em dada altura da evolução do imperialismo tiveram que optar ou pelos seus interesses de classe, ligando-se aos monopólios e trusts internacionais, ou pelos interesses nacionais, atingidos e prejudicados por tais trusts e monopólios. Optaram pelos primeiros em prejuízo dos segundos. Paralelamente, os interesses da nação vão-se identificando, dia a dia de forma mais visível, com os interesses do proletariado.

Anúncio publicado num jornal para prevenir o Partido da prisão do camarada «Duarte» (pseudónimo de Álvaro Cunhal)

Daqui resulta esta característica particular da época em que vivemos: a burguesia reaccionária, intitulando-se nacionalista, torna-se em cada país a representante de interesses estrangeiros, a defensora declarada da dominação anglo-americana ou (como Salazar disse entre nós) da «hegemonia plebiscitada» dos Estados Unidos. Isto acontece mesmo naqueles países que, por serem colonizadores em África, não deixam de ser colonizados na Europa.

E é o proletariado, são os comunistas, como internacionalistas consequentes, e, com eles, todas as classes laboriosas e todos os democratas sinceros, os verdadeiros defensores da Independência Nacional, os combatentes infatigáveis contra a dominação estrangeira existente ou a ameaça de tal dominação. Hoje em dia o nacionalismo conduz as nações à vassalagem e só o internacionalismo pode conduzi-las à independência.

O que acabo de dizer fica claramente demonstrado ao considerarmos a nossa posição de portugueses comunistas.

É uma realidade, que só quem esteja enganado ou queira enganar-se pode negar, que a economia nacional, as riquezas nacionais, se encontram numa parte considerável nas mãos dos imperialistas estrangeiros, particularmente anglo-americanos. E é outra realidade que esta situação se tem agravado nos últimos anos e que tende a agravar-se com novas, constantes e prejudiciais concessões.

É ou não verdade que são os senhores da City e Wall Street (isto é, os grandes capitalistas ingleses e americanos) que, por intermédio do trust internacional SOFINA, são os donos efectivos das CRGE e têm mais de 70% da nossa produção eléctrica nacional? É ou não verdade que daqui resulta não só a importação onerosíssima de carvões estrangeiros para as centrais térmicas como o atraso e a sabotagem, mais de uma vez verificada, da nossa indústria hidroeléctrica? É ou não verdade que são os senhores da City os donos efectivos da Companhia Carris de Lisboa, detentores do monopólio dos transportes colectivos da nossa capital (ontem os eléctricos, hoje os eléctricos e os autocarros, amanhã também o metropolitano) e da Companhia de Telefones de Lisboa e Porto, ambas com sede em Londres? É ou não verdade que o ferro de Moncorvo, esperança da Siderurgia Nacional, foi entregue no tempo dos nazis à Vereignite Stahlwerke, hoje nas mãos dos trusts americanos? E o que dizer do resto da indústria mineira? E dos restantes sectores da economia nacional? Em todos os sectores da economia nacional, nós tropeçamos, a cada passo, com empresas com nomes estrangeiros a atestarem a dominação estrangeira sobre o nosso país. Mas pode objectar-se que o que importa não são os nomes das empresas, não são os nomes que se dão às coisas, mas o que as coisas são na realidade. E então cabe ainda sublinhar que, em todos os ramos da economia nacional abundam as empresas que, sendo portuguesíssimas por fora, são estrangeiras por dentro. Por dentro pão bolorento, por fora cordas de viola, diz o povo. De facto, que dizer de uma Companhia «Portuguesa» dos Caminhos de Ferro ou de uma Manufactura «Nacional» de Borracha? Ou do escandaloso e abafado caso da Sociedade «Portuguesa» de Celulose?

Ficha de recluson.º445/56, Álvaro Cunhal, na Cadeia do Forte de Peniche, onde foi transferido da Penitenciária de Lisboa a 27 de Julho de 1956

Em relação às colónias: é ou não verdade que são os trusts anglo-americanos que, por intermédio da Societé Général de Belgique, do Banco Burnay e da Companhia de Diamantes de Angola (a Diamang) têm esta produção angolana? E pela Cottonang e outras, o algodão? E pela Fogerang, Forminier e outras, uma parte considerável da produção agrícola? É ou não verdade que são os trusts americanos que, na pessoa da Mozambique Oil Company, obtiveram não há muito a exploração dos petróleos moçambicanos além de extensas áreas territoriais? E que dizer do urânio do Tete, matéria-prima estratégica dos Estados Unidos? E do carvão do Moatize? Para mal da nossa Pátria podíamos multiplicar por dezenas, por centenas, os exemplos que mostram o abismo existente entre a palavra independência e a independência, que mostram como a independência portuguesa se torna dia a dia mais ilusória.

Em 1920, dizia Lénine que Portugal era um dos raros países que sendo economicamente dependente era politicamente independente.

De então para cá, com o desenvolvimento desigual do capitalismo, descoberto por Lénine, a situação mudou. Naturalmente, a dependência económica acarreta inevitavelmente a dependência política. Vêmo-la na participação no plano Marshall, no Pacto do Atlântico, em toda a política americana que hoje se segue em Portugal. Face a esta situação, que queremos nós, comunistas?

Nós queremos que a economia portuguesa seja libertada do domínio dos imperialistas estrangeiros. Nós queremos que a nossa indústria, a nossa agricultura, trabalhem para bem do nosso povo e não para os cofres da City e Wall Street. Nós queremos que os recursos nacionais sejam aproveitados para o nosso apetrechamento industrial e técnico, para o desenvolvimento geral do país, e não como hoje sucede: que sejam dilapidados em compras indiscriminadas no estrangeiro (particularmente nos Estados Unidos) de artigos de luxo, de bugigangas, de artigos de produção nacional, tudo isto traduzido num défice crescente e ruinoso da nossa balança comercial (particularmente com os Estados Unidos), na inundação do mercado interno de artigos estrangeiros que concorrem desastrosamente com os de produção nacional, nas dificuldades, na estagnação, no retrocesso de sectores fundamentais da nossa indústria e da nossa agricultura.

Nós queremos que as relações comerciais e financeiras de Portugal com os outros países sejam baseadas nos princípios da igualdade e do respeito dos interesses mútuos, e não como hoje sucede, por exemplo, no que respeita às nossas relações comerciais com a Inglaterra e os Estados Unidos, em que os princípios dominantes são: comprarmos o muito que nos querem vender, vendermos o pouco que nos querem comprar e sobretudo não vendermos o que não nos querem comprar. Não saem os vinhos do Porto, mas entram os conhaques e os uísques. Não saem as resinas, mas entra o white spirit. Não saem as cortiças, mas entram as mais variadas matérias plásticas.

Nós queremos que a política seguida em Portugal seja efectivamente portuguesa, seja determinada pelos interesses da maioria da população portuguesa, e não pelos interesses de um ínfimo punhado de multimilionários que se tornam cúmplices dos imperialistas estrangeiros nos conselhos de administração das grandes companhias. Nós queremos que a independência portuguesa seja uma realidade vivida pelo nosso povo, e não uma frase para fins publicitários.

Protesto em 1953 contra o isolamento a que Álvaro Cunhal foi submetido na Penitenciária de Lisboa

Ousam os fascistas recusar os direitos eleitorais aos portugueses suspeitos de comunistas com o fundamento de professarem «ideias contrárias à existência de Portugal como Estado independente» (assim diz a lei). Aqui, como em tantos outros casos, os fascistas não fazem mais do que seguir a táctica do ladrão que grita: «Agarra que é ladrão!»

Vê-se, assim, como não tem qualquer fundamento e é caluniosa a acusação do carácter «antinacional» da actividade dos comunistas portugueses. E vê-se também como falta autoridade aos fascistas para nos perseguirem e fazerem julgar por tal.

Por amor ao nosso país aqui estamos. E essa é a maior de todas as razões.

3.º ponto a esclarecer:

Os comunistas portugueses e o perigo da guerra

São características do capitalismo na sua fase derradeira (a imperialista) a formação de monopólios e trusts resultantes da concentração e a exportação acrescida de mercadorias e capitais para os países mais atrasados, não só porque aí o baixo preço das matérias-primas, a monstruosa exploração das classes trabalhadoras e as fracas exigências do mercado garantem aos imperialistas mais fartos lucros que nos seus próprios países, como também pela necessidade do escoamento do excesso da produção resultante da contradição existente entre o carácter social da produção capitalista e a apropriação privada dos meios de produção. Daqui resulta a inevitabilidade de lutas entre as potências imperialistas por mercados, por fontes de matérias-primas, por zonas de influência. Essas lutas são levadas a cabo por meios pacíficos (comerciais ou diplomáticos) enquanto viáveis ou pela força das armas. O imperialismo é o grande incubador das guerras.

Isto significa que a unidade, hoje tão apregoada, entre os países capitalistas, especialmente os anglo-saxónicos, é bastante mais frágil do que muitos supõem. O mundo capitalista está roído por contradições que conduzirão, sem dúvida alguma, a dificuldades, choques e conflitos entre as potências imperialistas, incluindo entre os Estados Unidos e a Inglaterra. Quem viver o verá. O perigo de guerra existirá, pois, enquanto o imperialismo não for varrido da face do mundo.

Mas não é a uma tal guerra entre as potências imperialistas que se alude quando actualmente se fala em perigo de guerra. É, sim, a uma guerra eventual entre os países imperialistas de um lado e a URSS e as Democracias Populares do outro.

Existe um tal perigo? Sim, tal perigo existe.

Existe, porque os candidatos à hegemonia mundial sonham com aniquilar, arrasar, os principais obstáculos à realização dos seus planos. Existe tal perigo porque, fracassado o plano Marshall da chamada «recuperação económica europeia», absorvida a maior parte dos seus fundos no equipamento de forças repressivas e na perseguição ao movimento operário e democrático, ao mesmo tempo que crescem as dificuldades nos EU, com a diminuição das exportações, o encerramento de fábricas, o aumento do desemprego e dos conflitos sociais, a realização de um novo «plano», «um plano de auxílio militar», com a fabricação e exportação intensiva de armamentos pelos EU, é (no entender dos multimilionários norte-americanos) o único caminho que se lhes oferece para manterem os seus lucros, aumentarem as exportações, diminuírem o desemprego, atenuarem os conflitos sociais e afastarem a ameaça da crise que se aproxima. Existe tal perigo, porque a burguesia reaccionária, ligada aos trustse monopólios internacionais, dominante nos países dependentes (entre os quais Portugal), incapaz de suster, pelos seus próprios recursos, no plano nacional, o ascenso do movimento democrático e de libertação nacional, procura desesperadamente uma solução à escala mundial.

Em que consiste o perigo de guerra, donde parte e contra quem se dirige?

Naturalmente, os imperialistas, para enganarem os povos que querem a Paz, que não querem a guerra, não apresentam as coisas desta maneira. E dizem que o perigo parte da URSS, que a URSS tem fins de agressão e de domínio.

«Quem engana encontra sempre quem se deixe enganar.» Mas há factos que todos observam. Toda a gente vê quem faz uma desenfreada propaganda de guerra, quem apregoa a cruzada anti-soviética, quem no nosso país diz que «os Estados Unidos se têm que bater com a Rússia e na Europa» (Salazar), quem, ainda não há muito, gritava para se deitarem depressa, depressa, bombas atómicas sobre as cidades soviéticas. Toda a gente vê quem tem bases militares espalhadas por todo o mundo, no Japão como na Formosa, na Grécia como no Médio Oriente, na Inglaterra como nos Açores, na Gronelândia como no Norte de África. Toda a gente vê quem intervém militarmente numa Grécia, numa Indonésia, numa Coreia do Sul ou ainda num Vietname. Toda a gente vê quem elabora monstruosos planos de rearmamento, quem assina agressivos pactos do Atlântico, quem absorve 40%, 50% e mais de todas as receitas públicas com despesas militares, quem faz preparativos apressados para a guerra, desde (entre nós) a criação dum «Conselho Supremo de Defesa Nacional» «para a eventualidade da guerra», até à criação de escolas para a formação rápida de oficiais e à mudança de fardamento, medidas que jamais foram tomadas nos anos sombrios da guerra anti-hitleriana. Toda a gente vê que são os homens dos trusts e monopólios, são os fascistas e reaccionários de todos os matizes que desejam, propagam e preparam a guerra. E são as classes laboriosas, os intelectuais progressistas, os comunistas e todos os democratas sinceros que desejam, propagam e defendem a paz. São os imperialistas que querem a guerra. São os anti-imperialistas que querem a paz. E isto não sucede por acaso. É que o imperialismo não pode viver sem a guerra. É que a paz é mortal para o imperialismo. Mas o verdadeiramente desesperante para os imperialistas é que se a paz lhes é mortal, a guerra, caso a consigam desencadear, sê-lo-á igualmente. O imperialismo encontra-se num beco sem saída, onde nem sequer brilha já essa maldosa esperança do segredo da bomba atómica, pois, conforme Mólotov declarou em 7 de Novembro de 1947, a bomba atómica há muito deixou de ser um segredo. E já lá vão mais de 2 anos depois desta declaração...

Campanha nacional e internacional pela libertação de Álvaro Cunhal.

Mas cabe ainda dizer que a URSS, pela sua estrutura económica e política, não tem, nem pode ter, quaisquer fins de agressão e de domínio. Nenhuns interesses da URSS e das Democracias Populares são contrários aos interesses do povo português e da independência portuguesa. Nenhuns. Os inimigos do nosso povo e da nossa independência são os mesmos inimigos da URSS e das Democracias Populares. Temos amigos comuns. Temos inimigos comuns. Por isso dizemos que o povo português tem na URSS e nas Democracias Populares os seus melhores aliados.

É grande o desejo dos imperialistas de desencadearem uma nova guerra. Mas não é tão grande a possibilidade prática de a desencadearem. É que as forças da paz são cada dia mais poderosas. Mas se, apesar de tudo, tal criminoso empreendimento for levado por diante, se, apesar de tudo, uma guerra de agressão for desencadeada contra a URSS e as Democracias Populares, estamos profundamente convencidos de que, no interesse da independência de Portugal, das liberdades e do bem-estar do nosso povo, do futuro da nossa pátria, o povo português não marchará contra os seus melhores amigos e aliados.

4° ponto a esclarecer:

Os comunistas portugueses e a situação económica e cultural do nosso povo

Mal-grado as hipócritas lamentações dos pregadores da nossa miséria irremediável - nunca é de mais repetir que os recursos naturais convenientemente aproveitados assegurariam uma vida desafogada a todo o nosso povo, de forma que a nenhum português faltasse um lar confortável e o alimento para se saciar, e o agasalho necessário, e cultura e distracção para o espírito e repouso para a fadiga.

Depois de se referir à miséria geral e de sublinhar que poucos países haverá, com excepção dos coloniais, onde seja mais profunda e flagrante a diferenciação de classes, Alvaro Cunhal continuou:

Quem pode negar a diminuição dos salários reais? Não se pergunte às estatísticas falseadas pelos salazaristas. Pergunte-se aos próprios trabalhadores, pergunte-se às mães de família que fazem prodígios mas não podem fazer milagres. Durante cerca de dez anos explicou o governo os baixos salários pelas «dificuldades criadas pela guerra» e pelo que chamou «o círculo infernal da inflação». Estas explicações serviram apenas para retardar os aumentos de salários e para justificar o aumento de 10 tostões nos preços por cada tostão aumentado nos salários. Lucros fabulosos, salários de fome, este o verdadeiro «círculo infernal».

Porque se encerram fábricas e se diminui a laboração de outras, atirando milhares de trabalhadores para o desemprego e miséria, quando só no aumento da produção pode estar o aumento do bem-estar geral?

Porquê o desemprego massivo dos camponeses assalariados, quando há mais de dois milhões de hectares de terra inculta (quatro vezes a superfície total do Algarve) e se importam enormes quantidades de artigos que a nossa agricultura produz?

Porquê, numa tal situação, o Fundo de Desemprego, realizado com descontos nos salários dos trabalhadores, é destinado à realização de filmes de propaganda reaccionária e outras obras demagógicas?

Porquê as dificuldades e a ruína dos pequenos industriais, agricultores e comerciantes? Pela necessidade de «eficiência na produção», conforme o governo justifica nas suas leis e projectos de concentração? Ou pelos impostos ruinosos, pela usura, pela concorrência esmagadora dos monopólios industriais, agrícolas e comerciais, acobertados pelo corporativismo?

Porquê a proibição da venda livre de géneros de que o abastecimento podia estar assegurado e as requisições em benefício dos grandes senhores dos grémios e os preços não compensadores aos produtores portugueses quando se paga mais aos produtores estrangeiros?

Destaque do Avante! à defesa/acusação de Álvaro Cunhal perante o tribunal fascista.

Porquê as habitações miseráveis quando se favorece uma onda de construção de prédios de luxo com rendas inacessíveis e se desviam os fundos das Caixas de Previdência para a construção de bairros que, na sua maior parte, os trabalhadores não habitam? Porquê o aumento da mortalidade infantil, da tuberculose e da sífilis? Porquê o aumento da prostituição e da criminalidade? Porquê, senão pela miséria geral e pela decomposição da sociedade portuguesa?

Porquê o analfabetismo, a interdição de obras culturais, a demissão de cientistas e de especialistas competentes, a perseguição à arte, quando o nosso povo mostra, como nunca, sede de instrução e de cultura? Porquê, senão porque as classes dominantes fazem da cultura seu monopólio por temerem que ela se torne uma arma ao serviço do povo?

Portugal não é um país pobre. Mas bem pobre é a vida material e cultural a que o nosso povo é condenado pela dominação da grande burguesia reaccionária ligada aos trusts e monopólios internacionais.

Ninguém nega que a sociedade capitalista esteja dividida em classes. O que alguns negam é que existam exploradores e explorados e exista uma luta de classes. Esses alguns são naturalmente aqueles que, vivendo da exploração, são, na sua santíssima linguagem, partidários da «reconciliação» e da «harmonia das classes». Segundo eles, a luta de classes é apenas uma invenção e uma táctica dos comunistas.

A verdade é que a luta de classes nem sequer foi uma descoberta de Marx. O mérito de Marx está em ter descoberto e demonstrado o papel da luta de classes na evolução histórica, de ter descoberto e demonstrado que a luta de classes conduz a uma forma de Estado em que o proletariado é a classe dirigente e que tal Estado proletário conduz ao desaparecimento das classes ***. A construção vitoriosa do socialismo na União Soviética é uma comprovação histórica da ideia de Marx.

Na sociedade capitalista, a luta de classes é uma realidade que todos vivem, tenham ou não disso consciência. Mais: essa luta é conduzida com maior ferocidade precisamente por aqueles que negam a sua existência. Todo o aparelho do Estado fascista não é mais do que uma arma monstruosa para a condução da luta de classes pela grande burguesia reaccionária ligada aos trusts e monopólios internacionais. Se se encerram fábricas, se há terras incultas, se lavra o desemprego, se é tão trágica a situação das classes laboriosas, se assistimos ao atraso económico e cultural da nação portuguesa, é precisamente porque se segue em Portugal uma política de classe, da classe cujos interesses são contrários aos interesses nacionais, porque se segue em Portugal a política da grande burguesia reaccionária ligada aos trusts e monopólios internacionais.

Nada pode caracterizar melhor esta natureza de classe do Estado actual que a organização corporativa. A grande burguesia não se limita a dirigir os organismos que, pelo corporativismo, representam o patronato: Grémios, Federações, etc. Ela dirige também aqueles organismos que, pelo corporativismo, representam os trabalhadores: Sindicatos Nacionais, Casas dos Pescadores e Casas do Povo. Quando os trabalhadores, vencendo todas as dificuldades, conseguem levar às direcções dos Sindicatos Nacionais pessoas da sua confiança, vêm as demissões, a nomeação de comis-sões administrativas da confiança do patronato reaccionário e do governo fascista, as perseguições policiais. Nas Casas do Povo e dos Pescadores a coisa é ainda mais descarada, porque aí (segundo a própria lei) a direcção pertence aos agrários e armadores. Para cúmulo, vemos na Câmara Corporativa, como representantes dos trabalhadores rurais, aqueles mesmos que vivem da exploração dos trabalhadores rurais.

Que fazer perante toda esta situação? Aceitá-la como irremediável?

Foram sempre os afortunados os grandes pregadores da resignação. Mas cada classe tem a sua ideologia e a resignação não cabe na ideologia do proletariado. O PCP, como vanguarda do proletariado, defende o caminho da luta, luta tão constante e persistente como aquela que é movida contra as classes laboriosas.

A situação não é irremediável. Ela pode modificar-se e modifica-se na medida em que as classes laboriosas se organizam e lutam.

Nós defendemos a resistência à exploração e opressão pela acção das massas populares. Nós defendemos a necessidade da constituição de organismos representativos das massas, cujos componentes sejam escolhidos pelas próprias massas. Nós defendemos a necessidade de pequenas e grandes acções, desde a reclamação feita por comissões na fábrica, na oficina, na herdade, na praça de homens ou noutro qualquer local de trabalho até às grandes concentrações, manifestações e greves, caso as outras formas de luta se revelem ineficazes.

Não fosse a actividade do PCP em defesa dos interesses do nosso povo, não fossem as milhares e milhares de lutas travadas (particularmente na última dezena de anos) pelas classes laboriosas e por todos os democratas sinceros e a situação seria hoje incomparavelmente mais trágica. Por vezes uma luta parcial é esmagada pela violência. Mas os benefícios colhem-se sempre, nem que seja um pouco mais tarde.

Pela luta das massas populares se faz frente à guerra que lhes é movida, se defendem os seus interesses, se melhora a sua situação. Pela luta das massas também se abre caminho para uma solução definitiva.

É que a luta não se trava entre forças em igualdade de circunstâncias. A grande burguesia reaccionária ligada aos trusts e monopólios internacionais tem ao seu serviço o Estado, tem um governo, tem um Exército, tem uma polícia, tem os tribunais e as prisões, tem leis feitas em seu proveito, tem toda a espécie de recursos materiais e de meios de propaganda.

Pintura a óleo

Por isso, a defesa dos interesses económicos e culturais do nosso povo, da mesma forma que a defesa da paz e da independência nacional, coloca a questão não só da luta diária pelo melhoramento da situação económica e cultural das classes laboriosas (da mesma forma que a luta diária contra as concessões ao estrangeiro e a política de guerra), mas também da luta contra o governo actual, contra o Estado actual, contra o regime actual. Passo assim ao

5.º ponto a esclarecer:

Os comunistas portugueses e o regime

Podem as aspirações de todos os democratas e patriotas - a Independência, a Paz, o Bem-Estar do nosso povo - ser satisfeitas dentro do actual regime? Não podem.

Um regime político é uma forma de dominação de uma ou várias classes sobre outras classes. O actual regime é uma forma de dominação da grande burguesia reaccionária ligada aos trusts e monopólios que (conforme mostrei) são contrários à nossa independência, à Paz e ao bem- estar do nosso povo. Mais: uma das aspirações de todos os democratas e patriotas, uma das necessidades elementares do nosso povo, tão necessidade como o pão ou a água, tão necessidade como o ar que se respira, é o poder dizer o que pensa pela palavra ou por escrito, é o poder associar-se e reunir-se livremente - são as liberdades democráticas. Estas não podem ser alcançadas num regime que, pela sua natureza, pela definição dos seus doutrinadores, é a negação da liberdade.

É certo que no preâmbulo do agressivo Pacto do Atlântico (que o governo se preparava para assinar na altura da minha prisão) figura o compromisso dos governos signatários defenderem as liberdades e a democracia. Dado o rigoroso isolamento a que desde então me encontro submetido, não sei se, por intervenção do governo de Salazar, tal compromisso foi riscado de tal Pacto ou então, se para não assumir tal compromisso contrário à natureza do seu Estado e às suas concepções políticas, o governo se recusou a assinar tal Pacto. Ou finalmente: se tendo assinado tal Pacto e assumido, por consequência, tal compromisso, o governo tomou desde então medidas tendentes à instauração das liberdades e da democracia no nosso país... Mas não creio; e, se outro fundamento me faltasse para esta opinião, haveria o facto de continuar preso e estarmos perante este tribunal... Para que as aspirações superiores de todos os democratas e patriotas possam ser satisfeitas é necessária uma mudança da forma de governo, uma mudança do regime.

Pensam alguns que se trata por consequência de um regresso à situação anterior ao 28 de Maio, de um regresso à República de 1910.

Nestes 24 anos de opressão fascista surgiram, porém, factores novos, tanto na política nacional como na situação internacional, que tornam impossível um tal regresso.

Na política nacional: o ascenso do movimento operário, a colocação da classe operária e do seu Partido na vanguarda do movimento democrático e ainda a organização política da grande burguesia e de numerosos quadros fascistas em todos os sectores da administração pública.

Na situação internacional: a construção vitoriosa do socialismo em mais de um sexto do globo, o grande progresso geral do movimento operário e anti-imperialista, o esmagamento militar e o desaparecimento do quadro das grandes potências dos três grandes pilares do imperialismo: a Alemanha, a Itália e o Japão, a libertação do imperialismo de um grande número de países (além da URSS) com um total (além da URSS) de mais de 300 milhões de habitantes. (Isto na altura da minha prisão, em que o Exército de Libertação da China acabava de tomar Pequim. Agora serão certamente mais.)

Estes factores novos tornam impossível um regresso à República de 1910.

Foi característica e fraqueza da República de 1910 o afastamento da classe operária dos sucessivos governos da nação. Isso deve-se fundamentalmente ao atraso político do proletariado, traduzido na prática inexistência de um Partido Comunista e na dominante influência anarquista no movimento operário. Hoje nenhuma República Democrática é viável em Portugal sem a participação da classe operária no governo da nação.

Foi característica e fraqueza da República de 1910 a não realização de profundas reformas sociais. Isso deve-se fundamentalmente a que, desde 1910 a 1920 (salvo curtos e raros períodos), o poder esteve exclusivamente nas mãos da burguesia liberal. Hoje nenhuma República Democrática é viável no nosso país sem a realização de profundas reformas sociais.

Foi ainda característica e fraqueza da República de 1910 a não democratização de todo o aparelho do Estado. Isso deve-se não só às razões atrás referidas, como ainda à instabilidade governativa e à pulverização dos partidos, onde não raro a diversidade das pessoas substituía a diversidade dos programas. Hoje nenhuma República Democrática é viável em Portugal sem a ampla democratização de todo o aparelho do Estado, sem um Exército democrático, sem uma Polícia democrática, sem uma Justiça democrática.

Finalmente: foi característica e fraqueza da República de 1910 a não identificação do movimento democrático popular com um verdadeiro movimento nacional libertador. Isso deve-se fundamentalmente ao atraso geral do movimento anti-imperialista. Hoje nenhuma República Democrática é viável em Portugal sem a realização de uma política enérgica de libertação do país do domínio imperialista estrangeiro.

Vê-se assim que um regresso à República de 1910 (embora sob o ponto de vista das liberdades tal regresso representasse uma verdadeira libertação do nosso povo) não só não é possível, como não é de desejar. A repetição das mesmas fraquezas criaria condições para a repetição de golpes de força e de ditaduras reaccionárias. Estou convencido de que não haverá um dia grandes divergências entre nós, comunistas, e os restantes democratas, incluindo aqueles velhos e nobres republicanos que, apesar de 24 anos de opressão e do peso da idade, continuam valorosos e fiéis aos seus antigos ideais, e incluindo também aqueles muitos católicos que se conservam fiéis ao cristianismo.

Para que uma República Democrática seja viável em Portugal é necessário que o povo veja nessa República a sua República e no Governo o seu Governo. É necessário que o povo tenha escolhido livremente essa República e esse Governo. E é ainda necessária a ampla e entusiástica participação das amplas massas populares na obra de renovação que se impõe em todos os sectores da vida nacional. Tal participação jamais poderá ter lugar enquanto o nosso povo se vir (tal como hoje sucede) tratado na sua própria pátria como se estivesse numa terra estranha e hostil. Tal participação jamais poderá ter lugar sem uma política de libertação do país do imperialismo estrangeiro e dos seus agentes domésticos. Sem a nacionalização dos sectores fundamentais da nossa vida económica. Sem uma reforma agrária que entregue os terrenos incultos e os latifúndios aos camponeses pobres 1. Sem a elevação económica e cultural dos operários e de todos os assalariados. Sem a protecção aos pequenos industriais, agricultores e comerciantes que os liberte da usura e de impostos ruinosos. Sem que se criem condições favoráveis para que os nossos cientistas e artistas, os nossos especialistas e técnicos, possam realizar uma verdadeira obra criadora em benefício do país. Sem o acesso à instrução e à cultura dos filhos das classes laboriosas. Sem a defesa dos interesses da juventude (hoje condenada a uma vida onde não há saúde nem alegria), das mulheres (hoje reduzidas à situação de seres inferiores), dos povos coloniais (hoje dizimados pelo chamado «contrato», pela doença e pelo chamado «trabalho compelido»).

Política de libertação do imperialismo, profundas reformas sociais, ampla democratização de todo o aparelho do Estado, participação da classe operária no governo da nação - tais são as condições fundamentais para que uma República Democrática seja viável em Portugal.

Aspiramos a uma tal República e lutamos por ela. Mas não basta ver os fins; é necessário também considerar os meios de os alcançarmos. Resta assim focar o

6° e último ponto a esclarecer:

Os comunistas portugueses e os seus meios de actuação

Ninguém mais do que nós, comunistas, deseja uma solução pacífica do problema político português. Por isso, é de há muito nossa reclamação fundamental a realização de eleições livres para uma Assembleia Constituinte através das quais o nosso Povo escolha livremente os seus governantes e a forma de governo que entender. Mais: apesar de que a Constituição vigente é antidemocrática, apesar de que a Assembleia Nacional nem vagas parecenças tem com qualquer parlamento de qualquer país de democracia burguesa, apesar de que a lei eleitoral estabelece numerosas discriminações e exclusões por motivo de diferença de opinião política, de riqueza, de cultura e de sexo, apesar de tudo isto, aceitámos (juntamente com todos os democratas) que essa manifestação da vontade nacional se fizesse nas «eleições» para a Assembleia Nacional, primeiro (em Novembro de 1945), e nas «eleições» presidenciais, mais tarde (em princípios de 1949).

Bem modestas foram as reclamações colocadas por todos os democratas para concorrerem às «eleições». Essas condições resumem-se numa só: que as leis em vigor fossem efectivamente cumpridas.

E que se verificou então? Tanto num como noutro caso verificou-se que foi o governo a desrespeitar a Constituição e as leis que ele próprio fizera e foram os democratas a reclamar a sua aplicação.

É normal nos regimes de força os governos consignarem na Constituição numerosos «direitos e garantias dos cidadãos». Mas fazem-no demagogicamente, convencidos de que os cidadãos não terão possibilidades práticas de os reclamar. Quando o povo tem força e coragem para o fazer, tais governos começam por desrespeitar abertamente, ostensivamente, a Constituição que eles próprios fizeram e acabam por ter que modificá-la. O exemplo de Portugal é concludente.

E não apenas em relação às «eleições» referidas. Sempre que os trabalhadores procuram, à base da lei, ao abrigo da lei, defender os seus interesses económicos, políticos, sociais ou culturais, sempre que isso sucede, o governo e as suas autoridades ou se negam simplesmente a aplicar a lei ou sofismam a sua interpretação ou correm a modificá-la. (O decreto modifica a lei, a portaria modifica o decreto, o despacho modifica a portaria.) E isto no melhor dos casos. Porque com frequência se observa que os reclamantes, pelo simples facto de defenderem legalmente os seus interesses, sofrem novas medidas de intimidação e perseguições.

Para o provar não preciso de buscar exemplos estranhos a este processo.

E depois de referir o ilegal regime de isolamento em que está, apesar das sucessivas reclamações e dos despachos favoráveis do tribunal, um roubo de 10 mil escudos cometido por agentes da PIDE na casa onde foi preso, etc. 2, Alvaro Cunhal continuou:

Por aqui se vê que o que verdadeiramente determina a repressão não é a inconstitucionalidade ou ilegalidade dos meios de actuação, mas os interesses que por tal actuação são defendidos. Toda a acção em defesa dos interesses das classes laboriosas e dos adversários da situação, seja legal ou ilegal, é considerada «subversiva». Mas tudo quanto seja em defesa dos trusts e dos monopólios e da camarilha fascista, seja legal ou ilegal, é protegido e auxiliado pelas autoridades. Aos olhos do governo nenhum meio é legítimo para defender os interesses das classes laboriosas e dos adversários da situação. Mas para a defesa dos interesses dos trusts e monopólios e da camarilha fascista todos os meios são legítimos, da fome e miséria ao analfabetismo, da chamada «liberdade possível» à chamada «autoridade necessária», da morte lenta no Tarrafal aos enforcamentos na incomunicabilidade.

Vivemos num regime em que os direitos que a lei consagra são para uso e benefício exclusivo das camadas dominantes, e os deveres para serem somente cumpridos pelos trabalhadores e pelos adversários da situação. Vê-se assim como falta autoridade aos fascistas para nos perseguirem e fazerem julgar por utilizarmos «meios inconstitucionais e ilegais». Vivemos num regime inconstitucional e de ilegalidade. E porque assim é, e só por essa razão, uma força política que se proponha defender efectivamente os interesses do povo e do país não se pode limitar a agir dentro da legalidade tal como o governo a entende, isto é: uma legalidade que, além de ser fascista é ainda por cima (e por isso mesmo) desrespeitada a cada passo pelas autoridades.

Por isso dizemos também que aqueles democratas que, por cansaço ou desânimo, se afastam de nós, comunistas, para seguir tal via legalista, ou reconhecem o seu erro (estamos certos de que os sinceros o farão), ou recolhem à vida privada, ou passarão, mais tarde ou mais cedo, mais ou menos veladamente, ao campo do inimigo. Não têm qualquer outro caminho.

Num Estado fascista, uma força política que queira defender efectivamente os interesses do povo e do país tem que aliar a actividade legal (com todas as limitações, incertezas e contingências de uma legalidade fascista) com a actividade clandestina.

Mas nós dizemos: realização de eleições livres como meio constitucional e legal para a mudança de regime. Mas, provado que dentro do actual regime não podem ter lugar eleições livres, então a questão terá de colocar-se inversamente: não já eleições livres para a mudança de regime, mas mudança de regime para a realização de eleições livres.

Por outras palavras: se o governo teima em impedir a manifestação livre da vontade da nação, se teima em impedir a realização de eleições verdadeiramente livres, se teima em responder com a força e a violência a todas as reclamações populares e democráticas, que ninguém duvide de que o dia virá em que o nosso povo se levantará em massa por um regime de liberdade e de legalidade e à força responderá com a força. Nesse dia, como hoje, como sempre, nós, comunistas, estaremos com o nosso povo.

Ainda algumas palavras sobre os meios de actuação.

Qualquer pessoa, com um mínimo de boa informação, sabe que (conforme os mestres do comunismo, Marx, Engels, Lénine e Stáline, nos ensinam) nós somos adversários do terrorismo.

O terrorismo cria nas massas a falsa concepção de que uma mudança de regime e profundas transformações sociais podem ter lugar pela simples actuação de um pequeno núcleo de homens corajosos e decididos. O terrorismo assusta as camadas mais atrasadas e leva-as a uma posição conservadora e, em relação ao povo em geral, leva-o a cruzar os braços na expectativa. O terrorismo afasta, assim, as massas da luta, quando só a ampla participação das massas na luta pode levar a uma mudança de regime e a profundas transformações sociais.

Em relação ao Partido: um Partido Comunista que enverede pelo caminho do terrorismo cedo deixa de ser um verdadeiro Partido Comunista. Deixa de ser a vanguarda e o Estado-Maior do proletariado, deixa de ser uma força política dirigente capaz de conduzir a classe e as massas à vitória para se tornar um grupo sectário, fechado em si, isolado das massas e condenado a perecer.

Mas não só teoricamente somos adversários do terrorismo. Nós harmonizamos a prática com a teoria. Não se pode apontar um acto de terrorismo ao PCP. Não se pode apontar um artigo nos seus numerosos jornais, uma passagem nos relatórios da sua Direcção, uma resolução dos seus Congressos, em que o terrorismo seja defendido.

Cadáver de Militão Ribeiro
Cadáver de Militão Ribeiro. Preso (pela quarta vez) juntamente com Álvaro Cunhal e Sofia Ferreira, viria a morrer em 1950, vítima das cruéis condições prisionais a que foi submetido.

Vê-se, assim, como não tem qualquer fundamento a acusação do carácter terrorista da actividade dos comunistas portugueses. E pode ver-se também como falta autoridade aos nossos acusadores para nos perseguirem e fazerem julgar por tal.

Álvaro Cunhal apontou então uma longa série de crimes dos fascistas - Militão, Alfredo Dinis, Ferreira Marquês, Vidigal, António de Almeida, Augusto Martins, Ferreira Soares, Tomé, Bento, os 40 mortos no Tarrafal, etc., sublinhando em cada caso que se prova que é o governo que usa métodos de terrorismo político. E continuou:

Podem todos estar certos de que o dia virá em que a consideração de todos estes crimes terá lugar num outro julgamento em que serão outros os réus.

Vou terminar. Tanto no que se disse na imprensa, como no que consta neste processo, procurou exagerar-se a importância que, para a vida do meu Partido, tiveram a prisão do meu camarada Militão e a minha. Mas os comunistas ficaram tranquilos, porque sabem que a Direcção do PC continua no seu posto, porque sabem que o Partido Comunista conta com dirigentes capazes, experimentados e com essa suprema virtude que é a dedicação ilimitada ao nosso povo e à nossa pátria. O PC conta com numerosos quadros profundamente sérios e corajosos, quadros dia a dia enriquecidos pelas reservas inesgotáveis do proletariado. O Partido Comunista conta com quadros como Alberto, Santos, Amílcar, Guilherme,Vilar, Marco, Gomes, Ramiro, Almeida, 3 Vaz, 4 João, André, Marques, Abel, Afonso, Melo, Chico e tantos outros destacados militantes 5 que são o orgulho do Partido e do povo e para quem vai neste momento a minha muito e muito grande estima, confiança e admiração.

Não somos os representantes de um Partido vencido ou de uma causa vencida. Somos os representantes de um grande Partido nacional, dos operários, dos camponeses, de todos os explorados oprimidos do nosso país, somos os representantes da força de vanguarda na luta pela Democracia, a Independência e a Paz, somos os representantes de uma causa já hoje historicamente triunfante.

Contra todos os democratas portugueses e particularmente contra nós, comunistas, são desencadeadas ferozes perseguições e histéricas campanhas de mentiras e calúnias. Para nossa alegria, basta saber que, apesar de tais perseguições e campanhas, o nosso Partido conta com o apoio activo ou a simpatia dos operários, dos camponeses, de todos os trabalhadores honrados, manuais ou intelectuais, da nossa juventude, das mulheres de Portugal, dos povos coloniais, de todos os democratas sinceros.

Vamos ser julgados e certamente condenados. Para nossa alegria basta saber que o nosso povo pensa que se alguém deve ser julgado e condenado por agir contra os interesses do povo e do país, por querer arrastar Portugal a uma guerra criminosa, por utilizar meios inconstitucionais e ilegais, por empregar o terrorismo, esse alguém não somos nós, comunistas. O nosso povo pensa que, se alguém deve ser julgado por tais crimes, então que se sentem os fascistas no banco dos réus, então que se sentem no banco dos réus os actuais governantes da nação e o seu chefe, Salazar.

Notas:

(*) Existem várias versões desta primeira intervenção em tribunal. Publica-se a mais completa. Das últimas declarações em 9 de Maio de 1950 apenas chegou até nós um pequeno resumo, com alguns excertos textuais. Entre estes registe-se a conhecida declaração de Álvaro Cunhal de que «no que me diz respeito, também alguma coisa fica privado: que como membro do PCP, como filho adoptivo do proletariado, cumpri os meus deveres para com o meu partido e o meu povo. É isto que interessa fique provado, porque é só ante o meu partido e o meu povo que respondo pelos meus actos».

(**) Salazar desencadeou a mais brutal repressão contra os seus adversários políticos. Criou uma polícia política nos moldes da OVRA (polícia política da Itália fascista) e da Gestapo, e deu-lhe carta branca para praticar todos os crimes. A Polícia de Informações, depois PVDE, agora secção da Polícia Judiciária, praticou os mais horrorosos crimes. Assasinatos, espancamentos e torturas, a «estátua» e os apertos nos testículos, as incomunicabilidades de meses atrás de meses, a prisão de reféns. A isto chamou Salazar «meia dúzia de safanões a tempo» para arrancar confissões (António Ferro, Salazar, p. 82), Álvaro Cunhal, Obras Escolhidas, Ediçoes «Avante!», Lisboa, 2007, t. 1, p. 459

(***) Referência à conhecida carta de Marx a Joseph Weydemeyer de 5 de Março de 1982, Ver K. Marx / F. Engels, Obras Escolhidas em três tomos, Ediçoes «Avante!» - Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1982, t. 1, p. 555

(1) Noutra versão: aos camponeses assalariados e aos camponeses pobres. (N. Ed.)

(2) Noutra versão acrescenta-se: a acusação feita aos comunistas de aconselharem os trabalhadores a defenderem os seus interesses nos Sindicatos Nacional e Casas do Povo à base dos estatutos respectivos. (N. Ed.)

(3) Noutra versão acrescenta-se: Ribeiro. (N. Ed.)

(4) Noutra versão acrescenta-se: Luís, Amorim. (N. Ed.)

(5) Álvaro Cunhal cita intencionalmente mais do que um pseudónimo do mesmo militante (N. Ed.)