Intervenção

Intervenção da Deputada<br />Declaração política sobre o Direito

Senhor Presidente Senhores Deputados:Andam os Senhores do mundo e seus acólitos muito ocupados em tentar convencer a opinião pública mundial de que só uma guerra nos salvará.Ontem, foi o Afeganistão. (Mas afinal onde pára o Bin Laden?)Hoje é um novo objectivo e um avanço mais no domínio do mundo.Entretanto, e simultaneamente, procura-se concitar o apoio da opinião pública para o reforço da repressão a coberto da legítima inquietação dos cidadãos perante fenómenos criminógenos que sempre existiram, e que saíram violentamente para a praça pública.Justificam-se medidas de repressão que ultrapassam os próprios objectivos enunciados, e se vão abater sobre todos os cidadãos, suspeitos até prova em contrário.Dentro desta linha surge, por exemplo, a directiva 2002/58 do Parlamento Europeu e do Conselho de 12 de Julho. Directiva que se intitula como relativa à privacidade e às comunicações electrónicas, ela torna possível a mais ampla devassa da privacidade do cidadão. Restringindo relativamente a todos os cidadãos:• O direito à confidencialidade das comunicações; • O direito ao apagamento dos dados do tráfego electrónico, ou ao anonimato dos mesmos, logo que deixem de ser necessários para efeitos da transmissão da comunicação; • O direito ao anonimato de dados de localização; • O direito à restrição da identificação da linha chamadora e da linha conectada.Estes direitos são reconhecidos nos artigos 5º e 6º, 8º e 9º da Directiva, como convém.Mas logo a seguir, no artigo 15º, negam-se esses direitos a todos, mas todos os cidadãos.É claro que, como convém, diz a Directiva, em nome da segurança nacional, da defesa, da segurança pública, da prevenção, da investigação, da detecção e da repressão das infracções penais.A repressão passa mais facilmente quando se consegue convencer o reprimido de que tal se faz em nome da sua liberdade e segurança.E quando o cidadão se dá conta, aumentou a insegurança geral e a dele próprio, alvo de uma constante vigilância.Enquanto os que defendem estas medidas falam, e aí bem, da presunção de inocência do arguido, aplaudem em relação a um cidadão livre e inocente, a presunção de culpabilidade.Medidas como as que vimos referindo, para além de serem uma violação inadmissível de direitos fundamentais, não combatem a insegurança. Bem pelo contrário, instalam-na.É nesse sentido o parecer muito crítico, emitido pelo Grupo de Protecção dos dados pessoais criado pela Directiva 95/46 do Parlamento Europeu e do Conselho.No relatório assinado pelo seu Presidente, Stefano Rodotá, pode ler-se, a respeito das medidas tomadas relativamente ao terrorismo:“ Em numerosos casos, estas medidas cobrem domínios ultrapassando o quadro da luta contra o terrorismo. Verifica-se uma proliferação da utilização de sistemas de identificação e de colheita de dados de carácter pessoal, por exemplo, através do emprego da biometria.”E sobre a criminalização de certos comportamentos ligados à sociedade de informação, como a cibercriminalidade, anota o Relatório:“ As definições destes delitos são frequentemente gerais, e suscitam problemas quanto aos princípios fundamentais da segurança jurídica e da legalidade das infracções e das sanções” “Por outro lado - continua o relatório - as medidas processuais existentes, legitimando a intromissão dos poderes públicos na vida privada dos indivíduos, são reforçadas e novas iniciativas contestáveis são examinadas, e mesmo adoptadas”Esta parte do Relatório assenta que nem uma luva à Directiva que temos vindo a citar.Sendo curioso referir que a União Europeia que permite uma verdadeira espionagem, sem justificação, sobre os cidadãos, é a mesma que protesta relativamente ao sistema de espionagem do Échelon. É claro que aqui estão em causa interesses económicos. A espionagem é ilegítima. Além disso estão em causa direitos fundamentais dos cidadãos. O critério é diferente!O Relatório do Grupo de protecção dos dados pessoais termina aliás de uma maneira notável:“ As medidas contra o terrorismo não deveriam e não têm necessidade de reduzir os níveis de protecção dos direitos fundamentais que caracterizam as nossas sociedades democráticas. Um elemento chave da luta contra o terrorismo deve consistir na garantia da preservação dos valores fundamentais que são a base das nossas sociedades democráticas e que são os valores que aqueles que usam e defendem o uso da violência, tentam destruir”Escaladas repressivas que aniquilem direitos fundamentais, não combatem a criminalidade.Bem como não a combatem, o uso exclusivo do Direito Penal como uma forma de prevenção geral meramente intimidatória.As penas devem servir para uma prevenção geral que crie a confiança na norma. Que crie a confiança, porque dirigidas à reinserção social dos condenados.O uso do direito penal deve ter em atenção o que já Beccaria afirmava em 1764, no livro Dos Delitos e Das Penas:"... quanto mais terríveis forem os castigos, tanto mais cheio de audácia será o culpado em evitá-los. Praticará novos crimes, para fugir à pena que mereceu pelo primeiro. Os países e os séculos em que se puseram em prática os tormentos mais atrozes, são igualmente aqueles em que se praticaram os crimes mais tremendos."A realidade dos nossos dias não faz senão confirmar aquela asserção.Vem isto a propósito, também, das respostas que esta Assembleia terá de dar aos crimes violentos de que são vítimas menores, realidade até agora escondida, mas que sempre existiu.E a resposta não pode limitar-se ao Direito Penal. E até nem passa verdadeiramente pelo Direito Penal.Porque não é à míngua de medidas penais que os que cometem crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menores ficam impunes.Na altura própria, em 1994, aquando da revisão do Código Penal, apresentámos propostas várias de agravamento das penas aplicáveis a estes crimes, nomeadamente quanto à utilização de menores na pornografia infantil. Foram, em grande parte, rejeitadas.Mas mesmo assim, as medidas das penas apresentam-se, de uma maneira geral, mais equilibradas, do que as constantes da Decisão- quadro do Conselho Europeu relativa aos crimes sexuais contra menores.Sendo de registar que o nosso Código Penal repudia a benesse com que aquela decisão brindou o poderoso lobby da indústria pornográfica. Nos termos da mesma, podem ser isentos de pena os que utilizarem menores na pornografia, desde que estes tenham atingido a maioridade sexual, e tenham dado o seu consentimento! Portugal não fez registar o seu desacordo relativamente a esta medida ao contrário do que aconteceu com a Bélgica!Por entre a estupefacção e a revolta que suscitam as graves ofensas às crianças, adolescentes e jovens, pouco se falou de prevenção e de reinserção.Os tempos são de uso imoderado e exclusivo da repressão penal.Assistimos mesmo a duplas incriminações. Como a que resulta, por exemplo, do anunciado projecto de lei do CDS-PP sobre mutilações genitais femininas que já estão criminalizadas no artigo 144º do Código Penal.Os tempos, como referíamos na primeira parte da intervenção, são também de restrições de direitos fundamentais do cidadão comum contra o qual não existem quaisquer indícios de comportamento delituoso.Relativamente a este desenvolvem-se, a coberto do segredo, violações da sua vida privada.Em contrapartida, exige-se o levantamento do segredo necessário à investigação. Especialmente necessário no combate á criminalidade organizada. Isto acontece periodicamente, sempre que estão em causa figuras mediáticas.Senhor Presidente Senhores Deputados:Não se brinca ao direito penal!No papel de combate à criminalidade, o Direito Penal deve, tem de ser acompanhado por medidas de prevenção e de reinserção social.Dele não pode servir-se a medicina.Não pode ser a continuação do Direito de Talião.

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