Intervenção de

Iniciativa Legislativa dos Cidadãos<br />Intervenção de António Filipe

Sr. Presidente, O projecto de lei do PCP sobre a iniciativa legislativa de cidadãos é muito simples e justifica-se com simplicidade. A possibilidade de grupos de cidadãos apresentarem projectos de lei para consideração da Assembleia da República foi algo por que o PCP, desde há muitos anos, vinha lutando. Concretamente, propô-lo, pela primeira vez, na revisão constitucional de 1989 e veio a ser consagrado na revisão constitucional de 1997, tendo sido regulado por lei na passada Legislatura, também na sequência de um projecto de lei que o PCP, de entre outros partidos, apresentou. Identificámo-nos globalmente com a lei que foi aprovada, excepto num ponto que consideramos fundamental, o do número de assinaturas exigido para que os cidadãos possam apresentar iniciativas legislativas à Assembleia da República. Pela nossa parte, propusemos um número que nos pareceu razoável, o de 5000 assinaturas, numa altura em que, por exemplo, com 5000 assinaturas, se constituía um partido político (agora, constitui-se com 7500, como se sabe). Na altura, seguimos essa analogia, não porque considerássemos que fossem situações idênticas (longe disso, como é óbvio), mas porque nos pareceu ser um número razoável. É que não se trata de impor nada à Assembleia da República, a única imposição que se faz à Assembleia da República é, caso essa iniciativa não tenha razões de indeferimento liminar, que seja apreciada, o que, aliás, acontece com as petições, pois qualquer petição que tenha 4000 assinaturas é obrigatoriamente debatida em Plenário. Portanto, se assim é, não vemos por que razão uma iniciativa legislativa que reúna condições para ser debatida em Plenário não o possa ser com um número de assinaturas razoável, que, do nosso ponto de vista, é de 5000. A solução que foi aprovada na lei é de 35 000 assinaturas, o que é manifestamente exagerado. Não faz sentido que se constitua um partido ou se apresente uma candidatura presidencial com 75000 assinaturas e que, para apresentar uma iniciativa legislativa que a Assembleia da República vai ter de considerar e está na sua plena liberdade de aprovar ou não, sejam necessárias 35 000 assinaturas de cidadãos. É manifestamente desproporcionado e é talvez por isso que, até à data, não deu entrada qualquer iniciativa legislativa de cidadãos. É que a Assembleia da República «deu com uma mão e retirou com a outra». Isto é, consagrou o direito, mas, depois, criou tais exigências para ele seja exercido que isso, na prática, não funcionou. Ora, se o nosso objectivo é, de facto, atribuir um direito aos cidadãos e até incentivar a participação democrática pela via da apresentação de iniciativas legislativas, não vemos qualquer sentido em ter-se adoptado um critério tão restritivo. Dirão que, noutros países, são exigidos números muitos altos – aliás, o relatório da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, da autoria da Sr.ª Deputada Susana Amador, refere vários países em que o número de assinaturas exigido é muito elevado. A esse respeito, diria que o mal dos outros não nos deve aproveitar. Isto é, o facto de haver países muito restritivos nessa matéria não é razão suficiente para que Portugal seja tão restritivo quanto esses países! Para além disso, nem tudo está dito. Por exemplo, em Espanha é exigida a recolha de um número de assinaturas absolutamente desproporcionado – 500 000 assinaturas –, mas antes dessa recolha é feito um juízo prévio de aceitação por parte do Parlamento. Só após a aceitação da iniciativa pelo Parlamento se abre um período para que os cidadãos recolham as assinaturas (um período alargado) e há uma subvenção pública para que essas assinaturas possam ser recolhidas. Ora, nós não propomos um regime semelhante ao espanhol. E não se diga que é a mesma coisa, porque não é! É que esses cidadãos, quando começam a recolher as assinaturas, já sabem que a iniciativa foi previamente admitida pelas Cortes espanholas, e só nesse caso é que as assinaturas são recolhidas. Muito simplesmente, o que propomos é que os cidadãos – de certa forma, à semelhança do que fazem com o direito de petição – possam solicitar à Assembleia da República que legisle de uma determinada forma e resolva um problema, e que o possam fazer, eles próprios, apresentando uma iniciativa concreta que esta Assembleia, com toda a legitimidade, ponderará: se concordar com ela, aprova; se não concordar, reprova. Portanto, não há aqui qualquer imposição seja do que for; há, sim, um incentivo para que haja uma maior ligação entre os cidadãos e a Assembleia da República. E isso só se consegue se a regulamentação deste direito for razoável e criar aos cidadãos a expectativa de que, com algum esforço – e a recolha de 5000 assinaturas não é banalização de nada, porque tal implica alguma mobilização e algum trabalho –, que implica o trabalho de recolha de assinaturas e o de elaborarem, eles próprios, um articulado, a Assembleia da República não deixará de apreciar o que lhe propõem. Nesse sentido, propomos que se altere a lei, de forma a que seja necessária a apresentação de 5000 assinaturas para que um grupo de cidadãos possa apresentar uma iniciativa legislativa à Assembleia da República. Sr. Presidente, Sr.ª Deputada Susana Amador,Muito obrigado pelas questões que colocou. Relativamente ao número de assinaturas, diria que não há aqui qualquer fetiche, nem sequer é um negócio de sardinhas… 5000 assinaturas foi o número que nos pareceu razoável. O que quisemos dizer com a comparação que fizemos com a constituição de um partido ou com a apresentação de uma candidatura presidencial é que não faz muito sentido que o legislador exija um determinado número de assinaturas para um «mais» e exija mais assinaturas para um «menos»! Tal como referi na minha intervenção, não faz muito sentido, apesar de não serem situações análogas. Dir-se-á até, que a analogia mais razoável a fazer, se a quisermos estabelecer, seria com o direito de petição, porque se obriga o Plenário a agendar uma determinada matéria com 4000 assinaturas. Aliás, parece-me que, sendo positivo que os cidadãos não se limitem a apresentar uma petição mas, eles próprios, tenham o cuidado de propor um articulado, faz sentido que a Assembleia da República incentive o exercício deste direito, que é, de facto, meritório. É uma forma de participação cívica, de participação democrática. Portanto, em vez de se restringir esse direito, dizendo «vocês têm esse direito mas, para isso, têm de passar longos meses a recolher 35 000 assinaturas», seria mais razoável que se exigisse um número de assinaturas que, apesar de tudo, não é banalizador – as 5000 –, uma vez que, depois, a Assembleia da República é plenamente livre de aceitar ou não. Não vemos, pois, razão válida para que não seja assim. Sr.ª Deputada, é óbvio que devemos ter em conta o que nos ensina o Direito Comparado, aproveitando o que nos pareça bem e não aproveitando o que nos pareça mal. Também não sabemos se, nos outros países, os respectivos povos estão satisfeitos com a forma como foi regulamentado o exercício do direito de apresentação de iniciativas legislativas por grupos de cidadãos. Diz a Sr.ª Deputada que não temos tradição nesta matéria, e eu acrescento que, se mantivermos a exigência de recolha das 35 000 assinaturas, não temos nem nunca a teremos, porque é evidente que os cidadãos não vão recolher 35 000 assinaturas para apresentar uma iniciativa legislativa que, ainda por cima, se sujeita a chegar à Assembleia da República e a ser liminarmente rejeitada! Portanto, se queremos ter alguma tradição temos que, de alguma forma, incentivar o exercício desse direito, senão nunca a criamos. Sr. Presidente,Confesso que não tencionava intervir mais neste debate, mas aquilo que o Sr. Deputado Pedro Mota Soares disse suscita algumas observações finais. Antes de mais, devo dizer que, apesar de tudo, não estamos muito surpreendidos com as posições que os diversos partidos aqui manifestaram, visto que este é, de certa forma, um debate recorrente. Já tínhamos apresentado este projecto relativo ao número de assinaturas necessárias às iniciativas legislativas populares na Legislatura anterior e as posições tomadas pelo PS, pelo PSD e pelo CDS-PP foram, basicamente, semelhantes às que foram hoje demonstradas. Pensámos, porém, que com a experiência destes anos, tendo-se verificado que, efectivamente, o número de assinaturas constante da lei é tão inacessível que os cidadãos não utilizam este direito, os partidos pudessem ter reflectido sobre isso e constatado que, afinal, fizeram mal ao aprovar um tal número. O Sr. Deputado Pedro Mota Soares apresentou-nos, todavia, um desafio, perguntando por que é que nós não aceitamos também a iniciativa popular para a revisão constitucional. Ora, o que constato é que o Sr. Deputado não tem memória dos processos levados a cabo neste domínio, visto que nos casos de revisão constitucional ordinária, verificando-se a abertura do prazo para a apresentação de contributos, tem havido muitas iniciativas cívicas. De tal maneira que na revisão constitucional de 1997 a Assembleia até fez uma edição, que entregou a todos os membros da Comissão Eventual para a Revisão Constitucional (CERC), em que compilou todas as iniciativas cívicas apresentadas. Mais: a Assembleia convocou mesmo uma reunião pública dessa Comissão, que decorreu na Sala do Senado, tendo cada um dos proponentes das iniciativas cívicas sido convidado para cá vir expor que propunha, de forma a que a CERC pudesse proceder à sua análise. Como vê, Sr. Deputado, nesse particular aspecto da revisão constitucional, a Assembleia da República fez mais do que admitir a iniciativa popular! A Assembleia admitiu essa iniciativa, mesmo que a título informal, e deu-lhe toda a solenidade, ao ponto de esses cidadãos poderem intervir na Comissão Eventual para a Revisão Constitucional. Como vê, isto é algo que nem sequer está previsto na lei vigente para a iniciativa legislativa de cidadãos, mesmo que obtenham as 35 000 assinaturas! Ora, a partir do momento em que é a própria Assembleia da República — órgão que tem legitimidade para decidir e ao qual os cidadãos proponentes não têm o direito de impor seja o que for, mas apenas de solicitar que uma determinada proposta seja considerada — que actua desta forma, não temos rigorosamente nada a recear. Assim, a democracia representativa não só não é ultrapassada como se dá um incentivo forte à participação dos cidadãos, que sentem que vale a pena apresentar propostas. Verificamos, contudo, que os Srs. Deputados, mais uma vez, não querem atender a qualquer destes factos, preferindo ficar com uma lei que, depois, não é aplicada. Pelos vistos, vamos ter de esperar mais algum tempo para ver o que o futuro nos reserva. Pode ser que daqui a uns anos, se a situação continuar como está, os senhores reflictam melhor sobre o número mínimo de assinaturas que impuseram.

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