Intervenção de Alexandre Abreu, Economista, Professor Universitário, Sessão Pública «Salário, preço e lucro – Uma questão actual»

Inflação, conflito distributivo e controlo de preços

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A inflação registada nos últimos dois anos atingiu níveis que não eram vistos em Portugal e na maior parte das economias capitalistas centrais há cerca de três décadas. As causas próximas e profundas desta dinâmica inflacionista continuam a gerar abundante debate entre economistas de diferentes inclinações e correntes teóricas. Algumas explicações têm enfatizado os choques do lado da oferta, em especial a perturbação das cadeias de produção globais no contexto da pandemia e o aumento dos preços dos alimentos, energia e fertilizantes em consequência do conflito na Ucrânia. Outras, especialmente propaladas por economistas convencionais de inclinação politicamente conservadora, têm atribuído a responsabilidade a um alegado excesso de procura resultante de políticas orçamentais e monetárias demasiado expansionistas ao longo da última década, particularmente no contexto dos estímulos à recuperação pós-pandémica. Outras explicações ainda têm apontado para questões mais estruturais relacionadas com a concentração oligopolística e o aumento das margens de lucro. 

Temporalmente, a génese do atual processo inflacionista remonta ao ano de 2021: no conjunto da zona euro, por exemplo, a inflação anual passou de 0,9% em janeiro de 2021 para 5,0% em dezembro do mesmo ano. Antecede, portanto, a eclosão da guerra na Ucrânia, estando em contrapartida relacionada claramente com um período de intensa perturbação nas cadeias de produção e distribuição globais. A cada vez maior extensão das cadeias de valor, abarcando cada vez mais elos, países e regiões do globo, a par da lógica “just in time” de redução de inventários e dos despedimentos em massa no setor dos transportes e logística durante a pandemia – tudo isto motivado pela inexorável compulsão para a redução de custos – levaram a que a relativamente rápida recuperação da atividade económica durante o ano de 2021 se deparasse com estrangulamentos significativos, especialmente nos setores da logística e transportes. Por exemplo, o Global Container Freight Index, que reflete o custo médio de transporte de um contentor de carga de 40 pés de comprimento, calculada a partir de uma média de 12 rotas intercontinentais, disparou de menos de 2.000 dólares norte-americanos entre 2017 e 2020 para mais de 10.000 dólares no final de 2021. 

Já em 2022, o início da guerra na Ucrânia contribuiu para aumentar o impulso inflacionista, afetando particularmente os preços dos cereais, da energia e dos fertilizantes. O índice dos preços dos produtos alimentares da FAO atingiu o seu valor máximo dos últimos anos entre março e junho de 2022 (cerca de 60% acima da média de 2014-2016), tendo caído cerca de 20% desde essa altura. O preço do petróleo Brent também atingiu o valor máximo dos últimos cinco anos (112 dólares por barril) em junho de 2022, decaindo desde então para os atuais 74 dólares. Também o índice internacional de preços dos fertilizantes atingiu em abril de 2022 um valor três vezes superior ao de fevereiro de 2021, caindo cerca de 50% de então para cá. 

Pese embora o facto de correlação não implicar necessariamente causalidade, mesmo este olhar relativamente superficial sobre a trajetória dos preços tendo em conta a sua evolução num conjunto de setores particulares – transportes e logística, energia, alimentos, fertilizantes – permite concluir, com elevada confiança, que o impulso original do processo inflacionista foi fundamentalmente provocado por choques do lado da oferta: perturbações nas cadeias de produção no momento da recuperação pós-pandémica, seguidas pelos efeitos do conflito na Ucrânia. Porém, possuímos forte evidência empírica de que o prolongamento e amplificação do processo inflacionista ocorreu através de um outro processo, que se sobrepôs ao anterior: o aumento das margens de lucro. 

Nos doze meses anteriores a fevereiro de 2023, a margem de lucro média no conjunto das empresas cotadas em bolsa na zona euro foi de 8,5%, acima da média de 7,2% registada antes da pandemia (finais de 2019) (ECB, 2023a). Na generalidade da União Europeia e na economia portuguesa em Portugal, têm-se sucedido as notícias acerca de lucros recorde, com destaque para os setores financeiro, energético e da distribuição. Isto é precisamente o oposto do que seria de esperar que ocorresse perante um choque externo caso estivéssemos num contexto concorrencial, na qual um aumento exógeno dos custos deveria levar a uma compressão, pelo menos parcial, dos lucros. Pelo contrário, o padrão verificado é consistente com um contexto de concentração oligopolística, no qual o mark-up sobre os custos não só não se reduz como até aumenta. 

Apesar da insistência do discurso económico convencional na alegada necessidade de moderar os salários como estratégia de combate à inflação, até mesmo certos bastiões do pensamento ortodoxo como o Banco Central Europeu e o Banco de Portugal têm-se visto obrigados a reconhecer que, pelo contrário, o atual processo inflacionista tem estado associado a uma manutenção ou mesmo aumento das margens de lucro, implicando perdas para os rendimentos do trabalho. Nas atas da reunião do Conselho de Governadores do BCE de 1-2 de fevereiro de 2023, por exemplo, lê-se, em referência ao conjunto da zona euro, que “o rápido aumento dos preços a par da relativa estagnação dos salários tem implicado uma forte transferência de rendimento do trabalho para o capital. O crescimento dos lucros unitários tem permanecido muito elevado, o que sugere que a repercussão do aumento dos custos no aumento dos preços tem continuado a ser robusta” (ECB, 2023b). Na mesma linha, o Relatório de 2022 do Conselho de Administração do Banco de Portugal, publicado em maio de 2023, estima que, do aumento de 4,4% registado em 2022 no deflator do PIB, 2,8 pontos percentuais se tenham devido ao aumento dos rendimentos do capital e apenas 0,9 pontos percentuais ao aumento dos rendimentos do trabalho – implicando igualmente uma transferência significativa de rendimento do trabalho para o capital no nosso país (Banco de Portugal, 2023). 

Inflação e conflito distributivo

Assim, e independentemente da dificuldade em atribuirmos a quota-parte precisa da responsabilidade pelo aumento dos preços ao impulso original que se deveu ao aumento exógeno dos custos versus a parte que cabe ao aumento das margens de lucro, torna-se claro que o presente processo inflacionista tem atingido de forma especialmente intensa os trabalhadores e classes populares. Outros indicadores há que permitem ilustrá-lo: por exemplo, os dados relativos à evolução da remuneração média mensal bruta por trabalhador ao longo do ano de 2022 apontam para um aumento nominal de 3,6%, que corresponde a uma queda real (i.e., considerando a inflação) de -4,0%: a redução salarial média real mais abrupta registada em muitos anos em Portugal. 

Esta constatação permite sublinhar a dimensão distributiva da inflação, que tem sido insuficientemente destacada no contexto da presente crise. Se todos os preços, incluindo o preço da força de trabalho, aumentassem ao mesmo ritmo - e se o mesmo sucedesse com o montante nominal das dívidas -, a inflação não teria qualquer impacto distributivo e, sobretudo se moderada, não teria grande impacto de todo. Não é isso que sucede, porém: os processos inflacionistas têm implicações distributivas nas relações entre devedores e credores (favorecendo os primeiros na medida em que erode o valor real das dívidas, o que aliás é tendencialmente positivo numa economia altamente endividada como a portuguesa) e, sobretudo, ao nível do conflito distributivo entre capital e trabalho. Isso sucede porque as dinâmicas inflacionistas introduzem a necessidade de constantes atualizações salariais para que os níveis reais de remuneração – e consequentemente de exploração – não sofram uma deterioração adicional. Neste contexto, a capacidade de os trabalhadores reivindicarem atualizações salariais que evitem a degradação da sua situação depende da relação de forças, o que por sua vez depende de fatores como o nível de emprego e desemprego, o nível de organização e mobilização sindical, a legislação laboral, a atualização politicamente determinada dos salários na função pública, etc.

Num artigo publicado em 2020, tive ocasião de analisar a evolução da repartição funcional do rendimento (entre rendimentos do trabalho e rendimentos do capital) em Portugal entre 1960 e 2019 (Abreu, 2020). O nosso país apresenta uma trajetória idiossincrática a este respeito: a parte dos salários no rendimento atingiu níveis extraordinariamente elevados no período que sucedeu a Revolução do 25 de Abril, em consequência da democratização económica, das nacionalizações e da conquista de uma vasta gama de direitos laborais e sociais, mas registou uma queda abrupta na década seguinte, passando a parte ajustada dos salários de quase 90% do PIB em 1975 para cerca de 60% em 1984. Como também procurei mostrar nesse artigo, o principal mecanismo que permitiu essa célere e intensa compressão da parte dos salários no produto foi o desfasamento entre as atualizações salariais nominais, muitas vezes sujeitas a tetos salariais, e os níveis bastante mais elevados de inflação. Em 1978, por exemplo, a inflação de 21% esteve associada a uma quebra da parte dos salários no rendimento interno bruto de 7 pontos percentuais (de 87% para 80%); em 1984, a inflação de 28% contribuiu para uma redução da parte dos salários no produto noutros 7 pontos percentuais (de 68% para 61%). 

A atual dinâmica inflacionista corre o risco de estar associada a um novo ciclo de compressão da parte dos salários no rendimento e intensificação da exploração, especialmente porque as condições estruturais são atualmente ainda menos favoráveis do que nas décadas de 1970 e 1980. A taxa de sindicalização, por exemplo, caiu de 75% dos trabalhadores em 1975 para cerca de 15% em 2016. A abrangência das convenções coletivas de trabalho tem vindo a decair significativamente, em resultado das alterações legislativas introduzidas a esse respeito. As sucessivas revisões do Código do Trabalho têm permitido o alastramento da precariedade e reduzido os níveis de proteção no emprego, minando a capacidade negocial dos trabalhadores e reduzindo os dias de férias ou a remuneração das horas extraordinárias. As atualizações salariais na função pública, que constituem uma referência essencial para o setor privado, foram especialmente desfavoráveis aos trabalhadores em 2022 e 2023, ficando muito aquém da inflação. O mesmo sucede com os aumentos salariais indicativos para o setor privado patrocinados pelo governo no âmbito do chamado Acordo de Médio Prazo de Melhoria dos Rendimentos, dos Salários e da Competitividade: o aumento salarial nominal indicativo para 2023 (5,1%), por exemplo, fica significativamente aquém da taxa de inflação registada em janeiro de 2023 (8,6%) (Governo de Portugal, 2022). 

Inflação e controlo de preços

A análise efetuada até aqui permite identificar alguns dos aspetos mais centrais para o caráter regressivo do processo inflacionista em curso e, a partir daí, identificar algumas linhas de atuação política. A nível estrutural, esses aspetos incluem a concentração oligopolística em mercados-chave como a banca ou a distribuição alimentar e energética, sublinhando a importância da manutenção e reforço da presença pública nesses setores, bem como a necessidade de mecanismos de fiscalização da concorrência muito mais robustos. Incluem também a imperiosa necessidade de reequilibrar as relações entre trabalho e capital por diversas vias, incluindo a recuperação dos níveis de sindicalização, a defesa e reforço da negociação e contratação coletivas e a revisão da legislação laboral no sentido do reforço dos direitos e por essa via da força negocial dos trabalhadores. Mais conjunturalmente, são adequados todos os mecanismos que atenuem a redistribuição regressiva de rendimento do trabalho para o capital por via do desfasamento entre a evolução dos preços e dos salários, incluindo a indexação dos salários à inflação, os impostos sobre lucros extraordinários ou o controlo de preços. É sobre este último mecanismo em particular que incide o resto desta última secção.

À luz da análise que tem vindo a ser delineada neste texto, o controlo de preços visa dois propósitos principais. Por um lado, num contexto de concentração oligopolística, o controlo de preços serve para contrariar o poder de mercado das empresas que atuam em condições não concorrenciais, evitando que repercutam a totalidade (ou mesmo mais do que a totalidade) do aumento do custo dos insumos sobre o preço final praticado junto dos consumidores. Este é o argumento mais tradicional em favor do controlo de preços em economias capitalistas, visando reaproximar os preços e quantidades praticadas no mercado das condições concorrenciais e contrariando a ineficiência associada à concentração monopolística ou oligopolística. Inserindo-se numa tradição intelectual respeitável, esta linha argumentativa tem sido defendida no contexto da inflação atual por autores como Meg Jacobs e Isabella Weber, que no Washington Post resumiram esta abordagem assinalando que “cada empresa, lojista, senhorio ou talhante tem o direito a obter um lucro, mas não um lucro especulativo. Cada um deverá “respeitar o limite”, limitando-se à margem de lucro que obtinha antes da entrada em vigor dos controlos de preços e respeitando preços máximos para certos bens específicos” (Jacobs & Weber, 2022).

Mesmo estas propostas reformistas têm gerado uma resistência feroz por parte dos interesses empresariais e dos quadrantes ideológicos liberais, com argumentos que têm incidido especialmente na pretensa incapacidade do Estado para gerir um sistema de preços administrativos e na pretensa ineficiência dos preços administrativos face ao ideal de mercado. Por sua vez, a rebater esta contra-argumentação, encontramos uma longa história de utilização bem-sucedida de controlos de preços no contexto de economias capitalistas com características mistas, como a economia norte-americana de meados do século XX que constituiu a base da experiência teorizada por autores como John K. Galbraith (1952) … ou, em menor grau, a economia portuguesa atual, na qual encontramos diversos casos de preços determinados ou constrangidos de forma administrativa: as tarifas de eletricidade e gás no mercado regulado, a evolução de uma parte das rendas da habitação, o preço fixo do livro, os preços dos medicamentos, etc. 

Como estes exemplos ilustram, os controlos de preços podem ser de diversos tipos, podendo ser estabelecidos em termos do seu montante preciso, da sua variação/atualização anual ou do estabelecimento de tetos máximos ou limites mínimos. Estes exemplos ilustram também o facto de os controlos de preços visarem a prossecução de objetivos sociais ou económicos (como o direito à habitação, a proteção dos pequenos livreiros ou o acesso à energia em condições de estabilidade de preços) que se considera politicamente deverem ter precedência sobre o “livre funcionamento do mercado” – o qual, como sabemos, tem ele próprio pouco de livre e muito de administrado (pelas empresas) quando em condições oligopolísticas.

Isto remete-nos para o outro propósito principal do controlo de preços neste contexto, que na realidade é o mais importante: contrariar a distribuição regressiva do rendimento do trabalho para o capital no contexto do atual processo inflacionista. O objetivo político fundamental que se pretende alcançar com o controlo de preços consiste exatamente em comprimir os lucros, especialmente atuando nos setores em que estes se mostram mais especulativos e extravagantes, e atenuar a perda de poder de compra real dos trabalhadores, especialmente atuando ao nível dos produtos mais importantes para a estrutura de despesas das famílias. A prossecução destes objetivos – assumidamente políticos – tem precedência sobre os critérios da economia convencional, como sejam as noções abstratas de eficiência de mercado ou dos preços como mecanismos de transmissão de informação. 

Conclusões

Considerando a informação disponível em maio de 2023, parece provável que a inflação venha a desacelerar gradualmente nos próximos tempos, sendo isso mesmo sugerido pela tendência de redução ao longo dos últimos meses nos vários preços-chave internacionais que constituíram o impulso inicial para o aumento dos preços, dos transportes e logística à energia, passando pelos cereais e pelos fertilizantes. Isso não significa, porém, que a inflação deva regressar rapidamente aos níveis pré-2021, nem que se restabeleçam facilmente as condições para deter a perda de poder de compra de salários e pensões. Mesmo que isso venha a suceder, as perdas entretanto verificadas ao nível do poder aquisitivo real de salários e pensões constituem uma modificação regressiva na distribuição do rendimento na nossa sociedade que importa reverter. 

Neste breve artigo, sugerimos que esta dimensão regressiva resultou em boa medida das características oligopolísticas de certos mercados-chave e do desequilíbrio forte e crescente das relações entre capital e trabalho na economia portuguesa. Uma política de preços e rendimentos progressista deverá procurar atuar em sentido contrário nestes aspetos estruturais, mas poderá igualmente recorrer proveitosamente a todos os mecanismos que ajudem a regular conjunturalmente a repartição do rendimento, incluindo a indexação dos salários à inflação, os impostos sobre lucros extraordinários e o controlo de preços.

Referências bibliográficas

Abreu, Alexandre (2020). “Acerca da Repartição Funcional do Rendimento na Economia Portuguesa”, Notas Económicas, 50, 85-101. 

Banco de Portugal (2023). “Relatório do Conselho de Administração”, Lisboa: Banco de Portugal, disponível em: https://www.bportugal.pt/sites/default/files/anexos/pdf-boletim/relatorio_atividade_contas_2022_pt.pdf 

European Central Bank (ECB) (2023a). “Fabio Panetta: Interview with the New York Times”, European Central Bank Press Release, disponível em: https://www.ecb.europa.eu/press/inter/date/2023/html/ecb.in230401~ec65174af7.en.html

European Central Bank (ECB) (2023b). “Meeting of 1-2 February 2023”, European Central Bank Press Release, disponível em: https://www.ecb.europa.eu/press/accounts/2023/html/ecb.mg230302~009d06dd5a.en.html 

Galbraith, John (1952). A Theory of Price Control, Cambridge, MA: Harvard Univeristy Press.

Governo de Portugal (2020). “Acordo de Médio Prazo de Melhoria dos Rendimentos, dos Salários e da Competitividade”, disponível em: https://www.portugal.gov.pt/download-ficheiros/ficheiro.aspx?v=%3d%3dBQAAAB%2bLCAAAAAAABAAzNDYytgQAou18NAUAAAA%3d 

Jacobs, Meg & Weber, Isabella (2022). “The way to fight inflation without raising interest rates and a recession”, The Washington Post, 09/08/2022, disponível em: https://www.washingtonpost.com/made-by-history/2022/08/09/way-fight-inflation-without-rising-interest-rates-recession/ 

Vernengo, Matías & Caldentey, Esteban (2023). "Price and Prejudice: A Note on the Return of Inflation and Ideology", Working Papers PKWP2302, Post Keynesian Economics Society (PKES).

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