Intervenção de Carla Cruz na Assembleia de República

"A independência do serviço público de rádio e televisão só acontece com o financiamento público"

Procede à primeira alteração à Lei n.º 54/2010, de 24 de dezembro, que aprova a Lei da Rádio, modificando o prazo para a concessão do serviço público de rádio
Procede à segunda alteração à Lei n.º 8/2007, de 14 de fevereiro, que procede à reestruturação da concessionária do serviço público de rádio e de televisão, bem como à aprovação dos novos estatutos da Rádio e Televisão de Portugal, SA
Procede à segunda alteração à Lei n.º 27/2007, de 30 de julho, que regula o acesso à atividade de televisão e o seu exercício, modificando o conteúdo dos programas que integram a concessão do serviço público de televisão
(propostas de lei n.os 194/XII/3.ª, 195/XII/3.ª e 196/XII/3.ª)
Altera a composição do Conselho de Opinião da Rádio e Televisão de Portugal, SA, procedendo à alteração do anexo da Lei n.º 8/2007, de 14 de fevereiro, que procede à reestruturação da concessionária do serviço público de rádio e televisão
(projeto de lei n.º 219/XII/1.ª)

Sr.ª Presidente,
Srs. Deputados,
Srs. Membros do Governo,
Nas três iniciativas legislativas que hoje estamos a discutir está bem patente a obsessão doentia que o Governo tem contra os serviços públicos e contra a gestão da coisa pública.
Na proposta de lei n.º 194/XII (3.ª), o Governo afirma que, com esta alteração, o que se pretende é, e passo a citar, «harmonizar em matéria de prazos de vigência», uma vez que a rádio e a televisão passam, e volto a citar, «pautar-se por um único contrato».
Ora, é precisamente o facto de a rádio e a televisão passarem a ter o mesmo contrato que nos levanta dúvidas. Com esta alteração, não estará na forja a fusão de dois serviços, de dois órgãos de comunicação social num único? Esta fusão de serviços, de dois órgãos de comunicação social, RTP e RDP, não levará à destruição de mais postos de trabalho?
Relativamente às alterações à Lei da Televisão, em que é proposta a reestruturação da concessionária do serviço público de rádio e televisão, bem como a aprovação dos novos estatutos da Rádio e Televisão de Portugal, as alterações não nos dão quaisquer garantias de que a RTP não seja capturada por interesses.
Sr. Ministro, contrariamente àquilo que ainda hoje afirmou, a independência do serviço público de rádio e televisão não é inseparável do modelo de financiamento.
Só o financiamento público, mediante a atribuição da indemnização compensatória, permite essa independência.
A independência da RTP só é assegurada mediante a fiscalização por parte do poder democrático, coisa que, aliás, com esta proposta de lei, está seriamente comprometida.
Mas a questão da independência do conselho geral não se cinge apenas ao que atrás enunciamos, prende-se também com a forma como é nomeado. A fórmula consignada nesta proposta não dá qualquer garantia de independência.
Sr. Ministro, diga-nos como é que garante que a RTP, com este modelo, não será capturada por interesses privados e pelos grandes grupos económicos.
(…)
Sr. Presidente,
Srs. Deputados,
Srs. Membros do Governo,
As iniciativas legislativas hoje em discussão constituem mais um passo em direção à concretização de um dos objetivos plasmados no Programa do Governo, destruir o serviço público de rádio e televisão, e demonstram, de forma inequívoca, a marca ideológica do Governo: desvalorização dos serviços públicos e desinvestimento nas empresas do setor público e, em simultâneo, o privilégio à iniciativa privada e aos grandes grupos económicos.
Não tendo conseguido alcançar, por agora, o intento inicial — privatizar a RTP —, o Governo engendrou, sob a falsa defesa da transparência, da independência e do pluralismo, vários mecanismos para se desresponsabilizar do serviço público de rádio e televisão. Desresponsabilização que se materializou com a apresentação da proposta do novo contrato de concessão de serviço público de rádio e televisão, uma proposta que parte do seguinte pressuposto: o operador de serviço público de rádio e televisão não pode, não deve ter produção própria, apenas se deve limitar a agregar e a encomendar as produções a entidades exteriores, para, segundo o Governo, estimular o mercado do audiovisual.
Esta opção tem também, na sua essência, o ataque aos trabalhadores: com o fim da produção própria, a RTP «liberta-se» de um número muito expressivo de trabalhadores, de homens e mulheres que tanto contribuíram com a sua experiência, o seu labor, o seu conhecimento e criatividade para o desenvolvimento e cumprimento das obrigações de serviço público que estão confiadas à RTP.
Com o novo contrato de concessão, a RTP ficará refém dos interesses, das disponibilidades, das disposições e dos padrões impostos pelos mercados e, claro está, a independência, tão propalada pelo Governo, ficará seriamente comprometida, desresponsabilização que tem o seu ponto alto com o fim da indemnização compensatória, alegando o Governo, novamente, os princípios da independência e da transparência.
A eliminação da indemnização compensatória vai tornar incomportável a prestação de serviço público com a qualidade e a extensão a que os cidadãos têm direito. O que esta medida vai provocar, além da desresponsabilização, é a aceleração da destruição do serviço público de rádio e televisão.
A desresponsabilização do Estado em termos do serviço público de rádio e televisão assume particular relevo com as iniciativas legislativas que hoje discutimos e, principalmente, com a proposta de lei que institui os novos estatutos da RTP. Essa proposta de lei, com a criação do conselho geral independente, que visa, segundo o Governo, o «reforço da credibilidade e da legitimidade da empresa junto dos portugueses e reforço da capacidade de gestão efetiva e eficiente da sociedade», traduz, mais uma vez, a marca ideológica deste Governo: ao Estado não compete gerir a coisa pública.
Diz-nos também o Governo que a independência do conselho geral independente está assegurada pelo facto de ser integrado por seis elementos que, entre outras características, são detentores «de reconhecido mérito, com experiência, credibilidade e idoneidade». Só que o Governo esquece-se de dizer o modo como estes elementos são nomeados, processo de nomeação este que não dá garantias de independência destes membros, nem perante o poder político, nem perante o poder económico.
Por fim, estes novos estatutos não dão garantias que 100% do capital da RTP seja detido pelo Estado. Com esta alteração, o Governo está a abrir a porta à entrada de capitais privados e, desta feita, a cavalgar em direção à privatização e à alienação da RTP.
Para o PCP, a independência do serviço público de rádio e televisão face ao poder político e ao poder económico só é conseguido com o financiamento público. Só o financiamento público é capaz de garantir essa independência.
Estas iniciativas legislativas, a serem aprovadas, farão com que o serviço público de rádio e televisão fique mais dependente dos interesses dos grandes grupos económicos, sobretudo, empenhados em controlar a rádio e a televisão em Portugal.
O Governo sabe que terá contra si todos os que reconhecem que uma televisão e rádio de serviço público, livre do controlo do poder económico, é um instrumento decisivo para a defesa da democracia, é um instrumento essencial para o cumprimento dos direitos dos cidadãos de serem informados, formados e a informarem-se.
O Governo sabe que a defesa do serviço público de rádio e televisão é, para o PCP e, felizmente, para um largo setor dos portugueses, um verdadeiro dever de cidadania, pelo que encontrará forte resistência à concretização da destruição do serviço público de rádio e televisão.
(…)
Sr. Presidente,
Srs. Deputados:
O Sr. Ministro pode continuar em negação, a dizer e a aceitar que o financiamento público é o garante da independência do serviço público. Mas o Sr. Ministro não pode negar que, se os privados entrarem no serviço público de rádio e televisão, não vão pedir nada em troca. O que vão pedir em troca, Sr. Ministro, é que não sejam cumpridos os direitos dos cidadãos a serem informados, formados e a informarem-se.

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