Intervenção de

Hospital Amadora-Sintra - Intervenção de Bernardino Soares na AR

Constituição de comissão eventual de inquérito parlamentar ao acompanhamento do contrato de gestão do hospital Amadora-Sintra

 

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

Esta não é a primeira vez que discutimos, nem sequer sob a forma de uma proposta de constituição de uma comissão de inquérito, a questão do hospital Amadora-Sintra (inquérito parlamentar n.º 3/X).

Na legislatura anterior, o PCP apresentou por duas vezes uma proposta de constituição de uma comissão de inquérito sobre vários aspectos do hospital Amadora-Sintra, que foi votada favoravelmente pelo PCP, como é óbvio, pelo Bloco de Esquerda, pelo Partido Ecologista «Os Verdes» e pelo PS e contra pelo PSD e pelo CDS-PP, então no governo, e certamente que esta vontade dos partidos que, então, quiseram apurar a verdade nesta matéria se vai manter neste debate de hoje. Pela nossa parte, queremos afirmar que vamos votar favoravelmente a proposta do Bloco de Esquerda.

Quero dizer, Sr. Presidente, que são muito relevantes as questões aqui levantadas pelo Bloco de Esquerda como fundamentadoras, nos últimos tempos, desta comissão de inquérito, mas não podemos deixar de se fazer um historial daquilo que tem sido a gestão do hospital Amadora-Sintra e o seu acompanhamento.

Este hospital teve o contrato assinado com o Grupo Mello nos últimos dias da gestão do Governo PSD de Cavaco Silva, já depois de perdidas as eleições. Este foi o momento em que foi assinado o contrato, portanto, entre as eleições e a tomada de posse de um novo governo.

O contrato foi assinado sem que tivesse peças fundamentais, como, por exemplo, um inventário de imóveis ou o quadro de pessoal do hospital. Depois, sabemos que, nos dois primeiros meses de funcionamento do hospital - os dois últimos meses de 1995 -, a gestão foi ainda pública, a despesa foi pública, mas a sociedade gestora foi remunerada por esses dois meses, no valor de 3,750 milhões de euros.

No mesmo período foram liquidadas ainda a esta sociedade mais 250 000 euros de despesas não fundamentadas.

Sabemos também que um dos responsáveis do Ministério da Saúde do governo do PSD de Cavaco Silva que negociou este contrato, passados uns anos, guardado o respectivo «período de nojo», acabou por ser administrador do próprio hospital Amadora-Sintra, que negociou com o Grupo Mello, o que bem abona esta situação.

Depois, é preciso dizer também que foi estabelecida a existência de um tribunal arbitral, tal como ainda existe, para a resolução de conflitos, quando não havia norma legal habilitante para que o contrato tivesse isso estipulado e o Estado abdicasse das suas competências nesta matéria. E, obviamente, o tribunal arbitral é um terreno muito mais favorável para a gestão do Grupo Mello, que sempre contou com a complacência de sucessivos governos do PS e do PSD.

Quanto à prestação clínica, tivemos nos primeiros anos, e depois também, enormes insuficiências: não abriram a tempo as valências, como estava no contrato, de cardiologia, de cirurgia vascular, de oftalmologia e de cirurgia maxilo-facial e reconstrutiva; não havia pessoal suficiente, e continua a não haver; foram conhecidas práticas de remuneração de altas precoces para diminuir os dias de internamento; existiu um regulamento que obrigava os profissionais de saúde a denunciar as mulheres que aí acorriam com consequências do aborto clandestino; durante um determinado período, encerravam os serviços de oftalmologia e neurologia às 20 horas, remetendo, ao contrário do que estava no contrato, as urgências nessa área para os hospitais públicos. Aliás, este hospital, de entre os da área da grande Lisboa, foi sempre aquele cujos utentes mais recorreram a outros hospitais, porque havia, e há, uma política de reenvio dos utentes para outros hospitais, sem que os governos tivessem feito nada em relação a esta matéria.

E quando, um dia, a Inspecção-Geral de Finanças e a própria Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo constataram graves irregularidades nos pagamentos atribuídos à sociedade gestora - porque durante os primeiros anos valeu sempre a interpretação da sociedade gestora sem que alguma vez o Estado tivesse questionado as suas interpretações -, essa Administração Regional de Saúde foi demitida, o Grupo Mello promoveu um processo contra os dirigentes que então foram demitidos e o Ministério da Saúde, com o Dr. Correia de Campos como Ministro e o Dr. Francisco Ramos como Secretário de Estado, negaram, na prática, o apoio jurídico a esses funcionários, coisa que ainda outro dia o Sr. Ministro da Saúde afirmou que era impensável acontecer e que, por isso, tinham dado, e bem, apoio jurídico aos dirigentes da administração regional de saúde indicados como responsáveis pelo Tribunal de Contas.

Quero dizer também que, ao longo deste período, se constatou pelo relatório da Inspecção-Geral de Finanças que tinha sido pago a mais 75,6 milhões de euros ao hospital Amadora-Sintra. Foi esta a conclusão da Inspecção-Geral de Finanças, corroborada pela administração regional de saúde na altura. E o que é que o governo fez? O governo decidiu que o serviço do Estado que fez esta avaliação não era competente, não era responsável, e atirou a questão para o tribunal arbitral.

Claro que o tribunal arbitral, no tempo do governo PSD/CDS-PP, foi nomeado como o costumam ser os tribunais arbitrais, ou seja, um dos juízes foi nomeado pelo Estado, outro foi nomeado pelo Grupo Mello e o presidente foi nomeado por ambos.

Claro que, da parte do Estado, o Ministro que nomeou o juiz tinha vindo do Grupo Mello e a ele regressou findo o seu mandato, de maneira que o que este tribunal fez foi corroborar, na prática e no essencial, todas as interpretações do Grupo Mello e da sociedade gestora com vista à aplicação do contrato, sempre favoráveis à sua maior remuneração. São disso exemplo ter-se permitido um aumento, logo no ano de 2000, de 105,1% da despesa do hospital contra 7,8%, no Hospital Garcia de Orta, que é um hospital semelhante; ter-se permitido, ao contrário do que sempre acontece na contratação pública, que os juros e as actualizações começassem a fazer-se a partir do primeiro dia em cada ano em vigor e não no último; ter-se permitido que existisse uma clínica de retaguarda sem legalização que funcionava com o hospital Amadora-Sintra e que era chamada a «clínica da morte», para onde eram «despejados» os utentes em situação terminal, fechando os sucessivos governos os olhos à sua existência; ter-se permitido que houvesse prática clínica privada ilegal, sem licenciamento, no hospital, tendo também os sucessivos governos fechado os olhos a esta matéria; ter-se permitido um conjunto de irregularidades e de ilegalidades só favorecendo o hospital Amadora-Sintra. E é por isso que os vários governos e as várias maiorias nunca quiseram investigar este assunto.

  • Saúde
  • Assembleia da República
  • Intervenções