Intervenção de

Gestão dos estabelecimentos da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário - Intervenção de Luísa Mesquita na AR

Regime de gestão dos estabelecimentos da educação pré-escolar e dos ensinos básico e secundário

 

Sr. Presidente,
Sr. Deputado Pedro Duarte,

Gostaria que nos esclarecesse algumas questões de fundo, estas, sim, verdadeiramente ideológicas, ao contrário da cosmética facilitadora que o Partido Socialista lhe solicitou.

Sr. Deputado Pedro Duarte, a questão ideológica é a seguinte: como conjuga o diploma que hoje aqui apresentou, sabendo que o projecto se sustenta, em todo o seu articulado, na violação da Lei de Bases do Sistema Educativo e da Constituição da República Portuguesa? Como sustenta a apresentação deste diploma, sabendo bem que o seu companheiro, camarada, amigo de discussão, Alberto João Jardim fez exactamente o mesmo na Madeira, tendo o Tribunal Constitucional sido claro ao considerar violador da Constituição da República Portuguesa a presença dos directores nas escolas, pondo em causa a gestão democrática das mesmas.

Sr. Deputado, estas é que são as questões ideológicas que sustentam o seu texto.

Mas, apesar de tudo aquilo que o Partido Socialista tem feito na educação, como o Sr. Deputado e o seu partido não têm a certeza se este será o momento ideal para que possa fazer caminho o vosso fim da gestão democrática, enquanto isso não é possível ou enquanto o Partido Socialista não estiver disponível para viabilizar esse fim da gestão democrática, os senhores adiantam uma outra estratégia. Isto é, a estratégia da liberdade das famílias, ou seja, das famílias que podem, por enquanto - e dizem-no claramente na vossa exposição de motivos -, enquanto não destroem o fim da escola pública, escolher entre a escola pública a e a escola pública b. Porém, futuramente - essa é a vossa estratégia e o vosso fim -, os pais poderão escolher entre a escola pública e a escola privada. O que os senhores querem garantir é, nem mais nem menos, a estratificação clara de todo o sistema educativo, primeiro da escola pública e depois da pública e da privada.

A única certeza que vos incomoda é que os vossos filhos jamais possam partilhar, coabitar, aprender e falar de democracia com outros jovens oriundos de territórios de exclusão, de violência e de marginalidade, aqueles que não foram bafejados pela sorte da estratificação socio-económica na qual os senhores se revêem e na qual os senhores sustentam exclusivamente o vosso projecto de lei.

Sr. Deputado Pedro Duarte, como Deputado ainda tão jovem quer acreditar que a democracia é um valor acrescentado da nossa vida quotidiana? Deve lembrar-se, historicamente, pelo menos ouviu dizer aos mais velhos, que aquilo que os senhores aqui sustentam e defendem foi aquilo que o Estado Novo defendeu e sustentou entre o início da República e a Revolução de Abril de 1974!

Como é que o senhor, tão jovem ainda, se consegue rever nestas teses tão velhas, tão caducas, tão fora de propósito, que põem em causa o futuro de todos nós, da democracia e dos nossos jovens, no exercício democrático do que é a escola pública?

(...)

Sr. Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados:

O projecto de lei do PSD, que constitui a matéria de discussão do agendamento potestativo de hoje, pretende abordar duas áreas temáticas da política educativa: a gestão e a administração dos estabelecimentos de ensino e a sua autonomia.

São, de facto, matérias substantivas e poderiam ter constituído, ao longo dos últimos 30 anos, espaços mobilizadores do funcionamento do sistema educativo.

Acontece que os governos do PS e do PSD nunca quiseram uma real autonomia pedagógica, científica, financeira e administrativa das escolas, desde o pré-escolar ao ensino superior.

Por isso, de governo para governo, quer o PS quer o PSD, têm vindo a legislar de forma mitigada a autonomia dos estabelecimentos de ensino, retirando-lhes progressivamente as condições para a sua concretização.

E esse exercício tem sido feito sobretudo através das diferentes administrações desconcentradas e centrais.

Mas o PSD vai agora mais longe. Fê-lo na anterior legislatura, enquanto governo, através da apresentação de uma nova proposta de lei de bases do sistema educativo, vetada pelo então Presidente da República e criticada por todos os parceiros da comunidade educativa, mas retoma agora exactamente o mesmo conteúdo.

O PSD sabe que a sustentação teórica que fundamenta as propostas apresentadas não tem qualquer rigor científico ou técnico e que tem sido alvo de inúmeras críticas de especialistas e de investigadores, nacionais e internacionais.

O PSD confunde, e não por distracção, autonomia e desresponsabilização do Estado, sabendo, por imperativo da realidade, que esta política, insistentemente assumida nos últimos anos, tem tido um único resultado, que é o da diminuição da qualidade da escola pública.

O PSD sugere, e não por desconhecimento, que os problemas do sistema educativo se resolvem com gestores profissionais, saibam ou não alguma coisa do processo de ensino/aprendizagem.

O PSD defende, por vezes acompanhado pelo Partido Socialista, que, garantida a presença de um gestor/ director, os problemas se esfumam miraculosamente.

Todos nos recordamos da inadmissível declaração de um recente ministro do PSD, que, relativamente à matéria em causa, afirmava que o problema é que, no nosso país, «os professores gerem os professores e os médicos gerem os médicos».

É este o princípio de que parte o PSD quando, na exposição de motivos, avalia a gestão democrática, esclarecendo, não exactamente como David Justino, mas não muito longe disso: «Não faz qualquer sentido que as escolas sejam geridas por uma espécie de órgãos ad hoc, assentes numa lógica de pretensa gestão democrática, como se o seu recrutamento se tratasse de um processo político».

E acrescenta que, neste momento, pode ainda aceitar-se que, por inércia, as escolas tendam a seleccionar um professor para esta função da gestão.

Este texto, Sr. Deputado Pedro Duarte, seria suficiente para sustentar todo o articulado do vosso projecto.

Para o PSD, o exercício da gestão da coisa pública é reservado aos «políticos profissionais» e aos gestores. Os restantes cidadãos e cidadãs, incluindo os professores e os educadores, não passam, na vossa opinião, de uns incapazes, pretensiosos e defensores da inércia. É isto que o vosso projecto de lei refere na exposição de motivos.

O PSD sabe, mas prefere ignorar, que a gestão dos estabelecimentos de ensino e a participação democrática de todos os intervenientes no sistema estão garantidas não só nos normativos enunciados mas também na Constituição da República Portuguesa.

O PSD sabe, mas prefere esquecer, que a proposta hoje apresentada tem exactamente os mesmos ingredientes que a legislação produzida pelo Governo Regional da Madeira e que o Tribunal Constitucional considerou violadora da Constituição da República Portuguesa.

Mas vamos às verdadeiras razões sociais-democratas.

O conceito de «profissionalização da gestão» parte do princípio de que a gestão escolar não difere da gestão empresarial, que nada tem a ver com o exercício da docência e que só os gestores profissionais estão em condições de alterar o cenário do sistema educativo.

A sacralização das técnicas de gestão para todas as maleitas do sistema pretende apresentar-se com uma total neutralidade política no que aos fins e às estratégias diz respeito.

A mensagem que se pretende «vender» é clara: os problemas da escola são sobretudo de gestão e só os especialistas os poderão resolver, porque os docentes não estão qualificados para o fazer, embora, ao longo de 30 anos, não tenham feito outra coisa contra as decisões centralizadoras e manipuladores dos diversos governos, incluindo o do PSD.

Srs. Deputados do PSD, o processo electivo dos liceus é consagrado com maior clareza na Revolução Republicana de 1910, mas quem acaba com este processo electivo é a ditadura do Estado Novo, em 1928.

E só depois da Revolução de Abril de 1974 se introduz o princípio da eleição democrática dos órgãos dirigentes dos estabelecimentos de ensino.

É isto que o PSD tem vontade de retomar, e pretende fazê-lo à revelia dos normativos do regime democrático.

Esquecer este percurso e este processo político e ideológico e pretender reduzi-lo à suposta inércia dos docentes ou à ridicularização do exercício democrático é, Srs. Deputados, intelectualmente, muito pouco sério.

A concepção «gerencialista» que o PSD propõe neste projecto impõe às escolas uma direcção e uma gestão empresariais, que resulta do entendimento incorrecto de que os problemas da educação se resumem à administração e à gestão de recursos, estes, sim, cada vez mais parcos, exactamente na relação inversa das necessidades e das exigências do desenvolvimento do País.

O estafado slogan social-democrata, e muitas vezes subscrito pelo Partido Socialista, da «modernização da gestão» tem, no projecto do PSD, uma estratégia clara, que é a de reduzir o funcionamento democrático das instituições educativas.

A opção profissionalizar ou democratizar surge sempre quando os contextos políticos indiciam uma vontade governativa de alteração da regulação da escola pública.

Isto deveria obrigar o Partido Socialista a pensar porquê agora e neste momento. No momento em que o Governo do Partido Socialista reduz progressivamente e pretende extinguir algumas das responsabilidades do Estado relativamente à escola pública; no momento em que o Partido Socialista defende a privatização da função social educativa; no momento em que o Partido Socialista defende a subordinação das preocupações pedagógicas aos critérios de eficiência e qualidade, definidos numa lógica mercantil; numa altura em que o Partido Socialista desvaloriza a função docente e ataca vergonhosa e permanentemente os profissionais da educação e as estruturas que os representam; numa altura em que o Partido Socialista, em nome da sociedade civil, corporiza um aumento das influências externas da escola, sobretudo do mundo empresarial, com o objectivo de afunilar a missão das escolas às necessidades mercantis de raciocínio curto.

O PSD entendeu que este era o momento ideal e o «caldo» cultural ideal para apresentar e repor um texto que há muito tinha vontade de fazer e que foi vetado pelo Sr. Presidente da República.

O PSD sabe que esta tese dificilmente poderá prosseguir na sua totalidade e terá de a fazer, de forma mitigada, com o Partido Socialista. Entretanto, enquanto não consegue pôr em prática esta mesma estratégia, propõe aquilo a que o PSD chama «a liberdade das famílias», para que elas possam escolher a escola pública a frequentar pelos seus filhos, até que um dia possam escolher a escola pública ou privada, sem qualquer obstáculo democrático.

Este seria o princípio para a existência de escolas estratificadas socialmente, que garantissem ao PSD que jamais algumas crianças e alguns jovens, por razões que se prendem com a residência das famílias, fossem obrigados a matricular-se, a aprender, a partilhar e a conviver com outras crianças e com outros jovens oriundos de territórios problemáticos, económica e socialmente.

O que o PSD quer garantir é que não haja «misturas», muito menos em nome da democracia.

Srs. Deputados do PSD, o maior desafio que importa hoje garantir às escolas é exactamente o do aprofundamento de uma maior democratização e de uma verdadeira autonomia do território educativo.

O sistema educativo é, provavelmente, aquele que, com maior clareza, possui no seio da Administração Pública um elevado número de educadores e de professores com uma larga experiência e com formação específica na área da administração e da gestão do sistema. Mas, infelizmente, por decisões do PS e do PSD, esses mesmos educadores e professores têm estado totalmente subordinados e sujeitos ao aparelho central e aos aparelhos desconcentrados das administrações regionais.

Também sobre estas matérias, desde a década de 80, os diferentes governos têm tido em seu poder estudos, relatórios, conclusões e reflexões feitas por especialistas, nacionais e estrangeiros, acerca da importância da gestão e da administração democrática. E há um conjunto de recomendações que o PSD e o PS, que passaram pelo governo nos últimos 30 anos, nunca estiveram na disposição de pôr em prática.

E não estiveram nessa disposição porque esses estudos e essas recomendações apontavam em dois sentidos: primeiro, no sentido da defesa da escola democrática e do aprofundamento do regime democrático nas instituições; segundo, no sentido de dar uma verdadeira autonomia às escolas, de natureza administrativa, financeira, pedagógica e científica.

Ora, estas duas recomendações são demasiado perigosas para quem quer substituir professores e educadores por gestores empresariais.

 

 

 

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