Apreciação Parlamentar

Frente ribeirinha de Lisboa

 

Apreciação parlamentar do Decreto-Lei n.º 75/2009, de 31 de Março, que «Estabelece a desafectação do domínio público marítimo dos bens identificados pela APL - Administração do Porto de Lisboa, S. A., sem utilização portuária reconhecida na frente ribeirinha de Lisboa e a sua integração no domínio público geral do Estado»
(Publicado no Diário da República N.º 63, I Série de 31 de Março)

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O Porto de Lisboa exerce jurisdição sobre todo o Estuário do Tejo, centro da Área Metropolitana de Lisboa. A área de jurisdição da APL estende-se desde a linha situada entre a torre do Forte de São Julião da Barra e o Bugio, a jusante, até à ponte de Vila Franca de Xira, a montante. As zonas portuárias e áreas ribeirinhas a ter conta vão assim muito para além da Cidade de Lisboa, envolvendo sim onze concelhos: Oeiras, Lisboa, Loures, Vila Franca de Xira, Benavente, Alcochete, Montijo, Moita, Barreiro, Seixal e Almada.

Neste contexto, é incompreensível que o Governo tenha optado por uma abordagem casuística, de exclusão e discriminação, aprovando um decreto-lei que determina a desafectação do domínio público marítimo de terrenos e outros bens da Administração do Porto de Lisboa, localizados apenas e só na frente ribeirinha da Cidade de Lisboa.

O diploma em apreço invoca no seu preâmbulo o quadro normativo aprovado pelo Decreto-Lei n.º 100/2008, de 16 de Junho, quanto aos «procedimentos relativos a usos compatíveis com esse carácter de dominialidade, nos termos legais, bem como os procedimentos relativos à eventual reafectação dessas áreas quando estas deixem de estar afectas exclusivamente ao interesse público do uso das águas».

Ora, no caso deste decreto-lei [100/2008] estamos perante a pura e simples definição de procedimentos jurídicos com vista à realização de operações de reafectação (melhor dizendo, de alienação) de partes do domínio público marítimo, e não perante a consideração de qualquer filosofia, ou modelo, ou critério, ou conjunto de critérios, que possam presidir a processos deste tipo.

Mesmo o documento das orientações estratégicas para o sector marítimo-portuário - que o Governo poderá invocar como enquadramento político - não permite em bom rigor extrair qualquer justificação para esta visão casuística, isolada e discriminatória de um concelho entre onze.

Veja-se aliás que o preâmbulo do Decreto-Lei em apreço abre exactamente com a referência a esse «novo enquadramento institucional previsto nas orientações estratégicas para o sector marítimo-portuário», afirmando que ele aponta «para a possibilidade de municípios e associações de municípios participarem na gestão de bens e infra-estruturas integradas no domínio público do Estado sob jurisdição portuária, mormente quando estão em causa áreas urbanas sem utilização portuária reconhecida, actual ou futura, ou seja, que não são objecto de exploração portuária, nem fazem parte dos planos de ordenamento e expansão dos portos».

Esta possibilidade assim admitida corresponde à partida a um princípio evidentemente justo, que é desde há muito defendido pelo PCP e que motivou já a apresentação de diversas iniciativas. A questão é a de saber em que termos se realiza essa transição - com que critérios, com que abrangência, com que modelo territorial e até de gestão para as próprias administrações portuárias.

Aliás, o mesmo preâmbulo afirma mais à frente que «existem outros interesses públicos relativos às áreas em causa que, pela sua excepcional relevância, justificam a adopção dos mecanismos previstos no Decreto-Lei n.º 100/2008, de 16 de Junho». É esta a justificação do Governo para que estes terrenos - e não outros, e mais nenhuns - sejam assim envolvidos nesta operação: «outros interesses públicos» e uma «excepcional relevância». Nenhuma justificação é adiantada, nenhum critério é esboçado. E enquanto legisla sobre um município, o Governo ignora os outros dez.

Por outro lado, coloca-se a questão sem dúvida importante quanto ao impacto desta medida sobre a entidade APL e os seus trabalhadores. A este propósito o Governo nada diz. É aliás significativa a posição recentemente manifestada pela Comissão de Trabalhadores da APL, que citamos a seguir:

«Uma vez mais perante a falta de informação interna por parte do Órgão de Gestão, a Comissão de Trabalhadores foi confrontada com a publicação, em Diário da República, do Decreto-Lei n.º 75/2009, de 31 de Março, o qual determina as áreas do Domínio Público que irão ser desafectadas da jurisdição e gestão da APL, SA, facto que logicamente preocupa todos os trabalhadores face à sensibilidade da matéria em causa, com tão grandes implicações na vida da empresa.

Dado que o Decreto-Lei refere que "... a APL - Administração do Porto de Lisboa, S.A., procedeu à enunciação das áreas sem utilização portuária reconhecida na frente ribeirinha de Lisboa ...", seria importante que o Órgão de Gestão tivesse a oportunidade e a disponibilidade para informar os trabalhadores sobre quais os critérios que levaram a estas opções, bem como explicar de uma forma clara e objectiva, o que se entendeu como não tendo interesse portuário e se comprometeu a transferir e assente em que enquadramento jurídico.

O Órgão de Gestão não pode ignorar que o estatuto orgânico da APL, SA (Decreto-Lei n.º 336/1998, de 3 de Novembro, n.º 3 do art. 2.º) estabelece que os bens imóveis implantados no Domínio Público Marítimo são património da empresa e, consequentemente, fazem parte do seu Activo, estando registados no seu Imobilizado e reflectidos no Balanço, sendo que relativamente ao património edificado estamos a falar de um valor superior a 10 Milhões de Euros (a preços de 1998), havendo ainda que considerar as infra-estruturas marítimas.

Decorridos mais de dois anos sobre as Orientações Estratégicas para o Sector Marítimo Portuário e mais de um ano sobre a assinatura do protocolo entre o Governo e o Município de Lisboa, continuamos sem perceber qual é o modelo que está subjacente a esta decisão de transferência de domínio.»

As três questões concretas suscitadas pelos trabalhadores da APL têm assim toda a razão de ser nesta matéria: com efeito, o Governo até agora nada adiantou (1) quanto às implicações que as transferências dominiais irão ter na sustentabilidade da empresa; nem (2) sobre as implicações que estas transferências dominiais terão nas competências e nas obrigações da APL, enquanto entidade com responsabilidades na gestão do porto de Lisboa; nem tão pouco (3) se foram ou não salvaguardados os interesses da APL, relativamente ao artigo 8.º (cedência ou mutação dominial subjectiva) do Decreto-Lei n.º 100/2008, de 16 de Junho.

Todo este enquadramento permite concluir de forma muito clara que estamos na presença de uma medida e de uma opção política sem uma indispensável visão coerente, integrada, abrangente, assente num modelo fundamentado e adequado. Razão pela qual se impõe a necessidade de reponderar esta decisão e considerar um novo processo, que assuma essa perspectiva coerente e harmoniosa que mais uma vez faltou ao Governo.

Nestes termos, ao abrigo do disposto na alínea c) do artigo 162.º e do artigo 169.º da Constituição da República Portuguesa e ainda do artigo 199.º do Regimento da Assembleia da República, os Deputados abaixo assinados, do Grupo Parlamentar do PCP, vêm requerer a Apreciação Parlamentar do Decreto-Lei n.º 75/2009, de 31 de Março, que «estabelece a desafectação do domínio público marítimo dos bens identificados pela APL - Administração do Porto de Lisboa, S. A., sem utilização portuária reconhecida na frente ribeirinha de Lisboa e a sua integração no domínio público geral do Estado».

Assembleia da República, em 29 de Abril de 2009

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