Intervenção de

Finanças das Regiões Autónomas - Intervenção de António Filipe na AR

Lei de Finanças das Regiões Autónomas, revogando a Lei n.º 13/98, de 24 de Fevereiro

 

Sr. Presidente,
Sr. Ministro de Estado e das Finanças,

Vou ser breve, na medida em que o tempo é escasso e o meu grupo parlamentar ainda tem de fazer uma intervenção. Gostaria de fazer um comentário prévio e, depois, de colocar uma questão concreta, a que gostaria que o Sr. Ministro respondesse.

O comentário prévio é para dizer que nos recusamos a encarar este processo legislativo como se estivéssemos perante uma guerra entre o Governo da República e o Governo Regional da Madeira. Isso poderá servir a guerrilhas de baixa política, mas não é o nosso propósito, porque o que nos interessa aqui discutir e nos preocupa são as consequências concretas que esta proposta de lei terá na autonomia regional e, particularmente, na qualidade de vida das populações das regiões autónomas.

E aí quer-nos parecer que, objectivamente, a população da Região Autónoma da Madeira sai, no imediato, prejudicada com a aplicação desta proposta de lei. Isto é reconhecido não apenas pela oposição mas até, em termos públicos, pelo próprio Partido Socialista na Região Autónoma da Madeira, o qual inclusivamente propõe a revisão dos critérios utilizados na proposta de lei e a não utilização do indicador do PIB per capita na região.

Tenho comigo um documento subscrito pelo PS/Madeira, que, entre as suas propostas, formula a da utilização do indicador de desenvolvimento económico, social e humano, alternativo ao PIB, reflectindo melhor o estádio de desenvolvimento das regiões autónomas. Defende, portanto, em alternativa, a hipótese da introdução na região do indicador do PIB per capita corrigido com o facto da existência da zona franca, ou a hipótese de utilizar um indicador como o poder de compra ou outro disponível de fonte oficial e com publicação regular. E propõe também a manutenção, até 2009, do Fundo de Coesão previsto na Lei de Finanças das Regiões Autónomas nos mesmos níveis percentuais para a Região Autónoma da Madeira e para a Região Autónoma dos Açores.

Estas propostas não são nossas. Como acabei de referir, foram feitas publicamente na Região Autónoma da Madeira pelo Partido Socialista. Gostaria, pois, de saber qual é a posição que o Governo do Partido Socialista, na República, tem relativamente a essas propostas - se concorda com elas, se encara, em sede de especialidade, poder alterar esta matéria, ou se, pelo contrário, o Partido Socialista diz uma coisa em Lisboa e outra no Funchal.

(...)

Sr. Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Srs. Deputados:

O ruído que tem envolvido a discussão pública desta proposta de lei de finanças das regiões autónomas ficará como um exemplo de escola daquilo que não deve ser um debate político sério e responsável.

O Governo tem apresentado a sua proposta perante o País como se ela fosse um «puxão de orelhas» ao Presidente do Governo Regional da Madeira e a prova de que finalmente aparece um Governo da República capaz de o meter na ordem.

O Presidente do Governo Regional da Madeira serve-se desta proposta de lei para se fazer de vítima às mãos do Governo de Lisboa e esconder as fragilidades da sua governação.

A proposta do Governo surge aos olhos dos madeirenses como uma sanção pelas suas opções eleitorais e surge aos olhos dos açorianos como um piscar de olho. As consequências imediatas da lei de finanças regionais afectarão de forma diferente os madeirenses e os açorianos, e tanto uns como outros saberão porquê.

Pela nossa parte, rejeitamos essa lógica de que quem não está com Sócrates está com Jardim, ou viceversa, e deploramos vivamente que uma questão tão relevante como a das finanças das regiões autónomas possa servir de pretexto para guerrilhas, para manobras de baixa política, ou para criar divisões artificiais entre portugueses.

O que hoje discutimos nesta Assembleia não é um diferendo entre o Eng.º Sócrates e o Dr. Alberto João Jardim. Essa encenação serve a ambos para esconder o essencial. Enquanto o Eng.º Sócrates se apresenta como disciplinador implacável e o Dr. Jardim como vítima indefesa do centralismo, ficam por discutir as consequências concretas da proposta de lei do Governo para a vida das populações insulares e ficam por avaliar as responsabilidades de quem há 30 anos governa com maioria absoluta a Região Autónoma da Madeira.

Esta proposta não é contra o Dr. Jardim. É contra os povos das regiões autónomas e, de forma mais directa e imediata, contra o povo da Madeira.

Para o Governo do Eng.º José Sócrates, também os povos das regiões autónomas são culpados da crise e têm de pagar a respectiva factura.

Para quem conhece a actuação deste Governo, era fatal como o destino que assim fosse. Se o equilíbrio das finanças públicas tem de ser feito à custa das autarquias, dos funcionários públicos, dos utentes do Serviço Nacional de Saúde, dos estudantes do ensino superior, dos utentes dos serviços públicos, dos consumidores de energia eléctrica, das populações do interior, dos reformados e dos deficientes, era inevitável que a factura da crise também chegasse à Madeira.

Mas também recusamos a ideia de que esta proposta beneficia o povo dos Açores à custa do povo da Madeira. Seria um logro pensar que a Região Autónoma dos Açores está a ser beneficiada pelo simples facto de não ser imediatamente prejudicada nas transferências financeiras do Estado para a Região. É um facto objectivo que a Madeira é directa e imediatamente prejudicada e os Açores não o são. Mas daí a podermos falar em benefício para os Açores vai uma grande distância.

Não só porque a situação ultraperiférica da Região Autónoma dos Açores e a sua especificidade insular justificam plenamente um acrescido esforço de solidariedade nacional, mas também porque uma lei de finanças regionais como esta, que representa um retrocesso no compromisso do Estado com o financiamento das regiões autónomas, pode lesar negativamente no imediato apenas uma delas, mas não deixará, a prazo, de afectar negativamente as duas.

Sendo claro que o nosso compromisso não é com o Governo da República, nem com o Governo Regional da Madeira, nem com o Governo Regional dos Açores, mas unicamente com o povo português, com a coesão social e com a solidariedade nacional, importa deixar muito claras as razões da nossa discordância com esta proposta de lei.

A primeira razão está na própria Constituição. É tarefa fundamental do Estado, segundo o artigo 9.º da Constituição da República, promover o desenvolvimento harmonioso de todo o território nacional, tendo em conta, designadamente, o carácter ultraperiférico dos arquipélagos dos Açores e da Madeira. E, nos termos do artigo 229.º, os órgãos de soberania asseguram, em cooperação com os órgãos de governo próprio das regiões, o desenvolvimento económico e social destas, visando, em especial, a correcção das desigualdades derivadas da insularidade.

Por outro lado, é a própria Constituição que impõe o respeito pelo estatuto político-administrativo das regiões autónomas. Como escreve o Prof. Gomes Canotilho, «os estatutos ocupam uma posição hierárquica privilegiada no plano da hierarquia das fontes. Embora não tenham valor constitucional, eles devem considerar-se como leis reforçadas com valor paramétrico relativamente aos diplomas legislativos regionais e às restantes leis da República. Neste sentido, já se chamou aos estatutos a mais reforçada das leis ordinárias reforçadas».

Ora, é inquestionável que esta proposta de lei contraria frontalmente o Estatuto Político-Administrativo da Região Autónoma da Madeira, pelo menos em dois pontos, com consequências muito relevantes.

Antes de mais, o Estatuto proíbe o retrocesso no relacionamento financeiro entre o Estado e a Região.

Dispõe o artigo 118.º, n.º 2, que em caso algum as transferências orçamentais podem ser inferiores ao montante transferido pelo Orçamento do ano anterior, multiplicado pela taxa de crescimento da despesa pública corrente no Orçamento do ano respectivo. No entanto, a proposta de lei não respeita este princípio.

Por outro lado, o Estatuto dispõe, no seu artigo 117.º, que «os empréstimos a emitir pela Região Autónoma da Madeira podem beneficiar da garantia pessoal do Estado». A proposta de lei diz exactamente o contrário.

A última revisão do Estatuto ocorreu em 1999. Foi objecto de uma intensa e demorada apreciação nesta Assembleia, foi aprovado por unanimidade, nunca foi invocada a sua inconstitucionalidade e só agora, quando o Governo pretende legislar ao contrário do que dispõe esse Estatuto, é que o PS invoca a sua inconstitucionalidade.

A segunda razão por que discordamos da lei proposta é a de que a Região Autónoma da Madeira é objectivamente prejudicada, devido aos critérios que são usados para determinar as transferências para as regiões autónomas e, mais concretamente, o Fundo de Coesão, conjugados com a perda de fundos comunitários que decorre do facto de a Madeira deixar de ser considerada «região de objectivo 1» e com a perda de receitas de compensação do IVA que decorre do abandono da regra da capitação.

O novo regime de compensação pelo diferencial do IVA não está em causa. Não contestamos que a compensação seja feita de acordo com um critério verdadeiro, que é o do IVA efectivamente gerado em cada região. Só que a perda destas receitas, fiscais e de fundos comunitários, numa região que mantém enormes fragilidades de desenvolvimento económico, social e humano decorrentes da sua condição ultraperiférica e de longos anos de más políticas, não deixará de ter consequências negativas para a população madeirense, sabendo-se desde logo que, lá como cá, os primeiros a pagar a crise serão certamente os mais desfavorecidos.

O cumprimento do princípio do não retrocesso estabelecido no Estatuto Político-Administrativo da Madeira exigiria, portanto, que, designadamente através do Fundo de Coesão, fossem encontrados mecanismos de compensação dessas perdas inevitáveis de receitas. Mas isso não acontece. Se as transferências do Fundo de Coesão forem calculadas, como se prevê na proposta de lei, em função do PIB per capita, o povo da Região Autónoma da Madeira será lesado por um critério artificial, que não tem em conta a sua realidade socioeconómica. Isto porque ninguém ignora que a existência da zona franca sobrevaloriza o PIB da Região, devido à contabilização da riqueza gerada por empresas financeiras e serviços internacionais que não se repercute na realidade económica local.

Impõe-se, por isso, em nossa opinião, que o Fundo de Coesão seja calculado, não em função do PIB per capita, mas de acordo com um critério mais justo, que reflicta a realidade do poder de compra e da qualidade de vida das populações.

A terceira razão é a da falta de respeito pela autonomia financeira das regiões autónomas.

Neste aspecto, esta proposta de lei é «irmã» da proposta de lei das finanças locais. Os valores pelos quais se rege a actividade legislativa deste Governo não têm nada a ver com o desenvolvimento equilibrado do País, com a coesão, com a solidariedade nacional, ou com o respeito pela autonomia regional. Estão unicamente relacionados com o princípio sagrado da estabilidade orçamental. E é assim que o Governo se arroga do direito de fixar unilateralmente os limites de endividamento das regiões autónomas, em cada ano, na lei do Orçamento do Estado e de criar mecanismos de tutela financeira governamental sobre as regiões, como o Conselho de Acompanhamento das Políticas Financeiras, que não está previsto em qualquer estatuto e que possui competências violadoras da autonomia política e administrativa das regiões.

A nossa oposição a esta lei de finanças regionais não se deve ao facto de ela ser aprovada a meio do mandato dos órgãos de governo próprio das regiões. Não é legítimo opor limitações dessa natureza à actividade legislativa do órgão de soberania competente, que é a Assembleia da República.

A questão não é essa. A questão é de conteúdo e de justiça.

Esta proposta de lei contraria valores constitucionais de solidariedade nacional e de respeito pela autonomia regional e é lesiva das aspirações e interesses legítimos das populações insulares. São essas, e não outras, as razões da nossa oposição.

 

  • Poder Local e Regiões Autónomas
  • Assembleia da República
  • Intervenções