Intervenção de

Estatuto do aluno dos ensinos básico e secundário - Intervenção de Miguel Tiago na AR

Primeira alteração à Lei n.º 30/2002, de 20 de Dezembro, aprovando o estatuto do aluno dos ensinos básico e secundário

 

Sr. Presidente,
Sr.ª Ministra da Educação,

Vou colocar duas questões sucintas.

Da intervenção da Sr.ª Ministra, que pouco apresentou do diploma, ficou bem claro que o Governo entende que esta proposta de lei resulta também das conclusões do Grupo de Trabalho - Violência nas Escolas, da Comissão de Educação, Ciência e Cultura, conclusões que, felizmente, o Grupo Parlamentar do PCP não subscreveu mas que deram origem a tão infeliz documento!

Vou, então, colocar duas questões muito concretas para também possibilitar respostas concretas.

Uma das questões que muito enfatiza este documento é a divisão das medidas em correctivas e punitivas.

Sr.ª Ministra, como é possível entender as medidas correctivas? Um estudante que deixa de ter acesso às actividades extracurriculares, como, por exemplo, poder participar no grupo de teatro ou ir à biblioteca, é uma medida correctiva? Em que medida, Sr.ª Ministra?

Uma outra pergunta, sucinta, que gostaria de colocar respeita à disciplina em meio escolar, ou seja, o número de alunos por turma. Está o Governo disponível para repensar o número máximo de alunos por turma e garantir o seu cumprimento ou verifica-se, mais uma vez, que só age no plano do autoritarismo, como demonstra este documento?

(...)

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

O Governo propõe-nos hoje que aprovemos a proposta de lei (n.º 140/X) que altera o Estatuto do Aluno do Ensino Não Superior. Certamente que o Grupo Parlamentar do Partido Socialista, nesta como noutras matérias, irá manifestar o seu habitual e incondicional apoio às propostas do Governo, mesmo quando elas são de todo absurdas ou quando agravam o problema que supostamente deveriam resolver.

Os problemas que esta proposta de lei deveria resolver, segundo o seu próprio preâmbulo e conteúdo, são os problemas da incivilidade e da indisciplina nas escolas. Aí está o primeiro resultado da campanha mediática que generaliza a ideia de uma escola violenta e de um ambiente permanentemente hostil, mesmo que isso choque frontalmente com a realidade. Com a ajuda da comunicação social sensacionalista e dos Grupos Parlamentares do PS, do PSD, do CDS-PP e do BE, que apresentaram juntos conclusões sobre o trabalho da Comissão de Educação, sob a forma de projecto de resolução, que dá início a esta deriva autoritária como forma não de resolver o problema mas, sim, de o esconder, o Governo vem agora anunciar-se como empenhado defensor de um ambiente escolar são e disciplinado.

No entanto, esta alteração ao Estatuto do Aluno do Ensino Não Superior, que passa agora a chamar-se Estatuto do Aluno do Ensino Básico e Secundário, mais não representa senão o agravamento das medidas de repressão e punição dos estudantes, culpabilizando-os, em última análise, por todas as incapacidades do sistema educativo.

Sendo certo que a escola, não existindo isolada da sociedade, não pode deixar de reflectir o ambiente que a rodeia e que esse ambiente social é crescentemente marcado pela degradação das condições de vida dos portugueses, pela acentuação do individualismo e do culto da violência, pela promoção da agressividade como forma de resolução de conflitos e pela manifesta incapacidade do Estado para fazer face à degradação das condições de trabalhos e de estudo na escola pública, o Governo decide agir apenas sobre os sintomas da crise, ignorando as suas causas e escamoteando as suas próprias responsabilidades no seu agravamento.

Se o Governo estivesse efectivamente empenhado na procura de soluções para os problemas que afectam as escolas dos ensinos básico e secundário certamente proporia a esta Assembleia que aprovasse uma proposta de lei que assumisse as responsabilidades do Estado perante a escola pública, principalmente no seu financiamento, garantindo a presença quer de técnicos especializados quer de pessoal docente e não docente, o ensino em turmas mais reduzidas, o investimento em espaços e equipamentos adequados ao ensino, seguros e onde a frequência escolar possa ser cada vez mais gratificante e não um sacrifício.

Estivesse o Governo verdadeiramente empenhado e agiria de forma directa sobre causas, ao invés de, pela via do regresso ao autoritarismo e a medidas securitárias, agir apenas perante as consequências mais visíveis.

O que o Governo se propõe na realidade fazer é criar o quadro legal que coloque nos conselhos executivos, professores e estudantes, toda a responsabilidade de um problema cuja solução deve ser a intervenção vasta e multifacetada no plano político e social. Demitindo-se disso o Estado, resta às escolas procurar os métodos mais expeditos para se livrarem dos estudantes inconvenientes, agravando o elitismo galopante que vai afectando o sistema educativo.

O Governo apresenta-nos a separação formal entre medidas correctivas e medidas punitivas, aparentemente, reforçando a preponderância das primeiras, diz-se. Mas quando atentamos às medidas correctivas que o Governo propõe verificamos que entre elas e as medidas punitivas não existe absolutamente nenhuma distinção, sendo que as primeiras não se destinam a corrigir nada mas, sim, a punir.

É fácil compreender se olharmos, por exemplo, para as medidas correctivas propostas, que estabelecem a possibilidade de impedimento de acesso a actividades extracurriculares e a equipamentos escolares. Está bem visto, pois claro! Se o aluno desrespeitar o regulamento escolar fica sem acesso à mediateca, à biblioteca, ao computador com internet ou, então, deixa de poder participar - quem sabe? - no clube de poesia ou no clube de teatro. Medidas correctivas, pois, está visto...

O Governo apresenta-nos aquilo que mais parece um código de conduta moralista, com uma componente burocrática e formalista acentuada. O Governo pretende criar a escola asséptica, mesmo que isso signifique acentuar as injustiças sociais e a violência fora da escola. Porque se a escola exclui aqueles que sentem mais dificuldades em se lhe adaptarem ela deixa de ter a capacidade de agir sobre a sociedade, passando a estar isolada dela.

É inaceitável o papel subalterno atribuído ao conselho disciplinar de turma, colocando o presidente do conselho executivo na figura do director, que concentra todos os poderes disciplinares, fazendo lembrar os tempos do reitor de liceu, que concentrava nas suas mãos o poder de julgar e de punir.

O Governo assume como resposta a um problema social com expressão escolar o reforço da via autoritária, remetendo para os regulamentos escolares a definição de um conjunto muito significativo de regras que condicionarão em cada escola a aplicação do diploma.

A proposta de lei do Governo remete para um documento que desconhece, e que cabe a cada escola aprovar, a definição da aplicação da lei, mas estabelece claramente as penas e as medidas correctivas - como lhe chama - que podem ser aplicas e perante quais casos.

Acresce o facto de os regulamentos internos estarem muitas vezes repletos de ilegalidades e de inconstitucionalidades, sem que sobre eles o Governo sequer se pronuncie, submetendo centenas de estudantes a normas completamente antidemocráticas, autoritárias e contrárias à lei. Atribuir a esses regulamentos o poder de estabelecer a aplicabilidade das sanções predefinidas, previstas nesta lei, é permitir que o autoritarismo latente em muitas escolas adquira cobertura de lei. Ao mesmo tempo, e no extremo oposto, é impedir que a escola possa ter soluções distintas e mais adequadas a cada caso, estabelecendo desde já as sanções.

É curioso, no entanto, verificar que, mesmo em relação ao trabalho da Comissão Parlamentar de Educação, o Governo prefere ignorar a maioria das conclusões, passando a actuar somente sobre aquelas que lhe interessam.

O Grupo Parlamentar do PCP desafia o Governo a chamar a si as suas responsabilidades e a investir na educação, no plano humano e no plano material, capacitando a escola pública dos meios para fazer frente aos problemas com que se vai cruzando; a dignificar a carreira do professor e a muni-lo dos instrumentos pedagógicos e de apoio necessários ao cumprimento da sua missão, incluindo também a resolução dos problemas da indisciplina, que o PCP não subestima.

Os professores e os estudantes, as famílias, podem contar com o contributo do PCP para ajudar na resolução do problema da indisciplina, da incivilidade e mesmo da violência escolar, mas na perspectiva da sua erradicação, nunca entendendo um jovem estudante como um intratável e irrecuperável criminoso, incluindo em vez de excluir.

Nessa linha política de humanismo, o PCP apresentou um projecto de resolução nesta Assembleia. Ao contrário, o Governo recusa-se sistematicamente a reconhecer a realidade e, para não destoar da sua linha política, também aqui se disfarça de «esquerda moderna» e se revela um exímio intérprete do papel da mais reaccionária e velha direita. A velha direita travestida de moderna esquerda.

 

 

 

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