Intervenção de Alexandre Pirata, Debate «Políticas para o território – desenvolvimento equilibrado, uma visão estratégica»

Estatuto da agricultura familiar, da publicação à prática

Muito se tem falado, nos últimos 2 anos, do Estatuto da Agricultura Familiar, que culminou na sua publicação o ano passado, mas não basta, é urgente haver coragem política para passar da sua publicação à prática.

A Agricultura Familiar e a sua sobrevivência enquanto instrumento fundamental do espaço rural, que ocupamos com a mesma dignidade e empenho de sempre, e que pela multi funcionalidade das nossas explorações, somos os únicos capazes de assegurar uma ocupação sustentável, técnica e socialmente, a este espaço ao serviço de todos; da segurança alimentar que garantimos, não só pela qualidade do que produzimos, sendo bom nunca esquecermos que os primeiros a consumir as nossas produções somos nós mesmos, mas, e acima de tudo pela garantia que só nós podemos dar, de produzirmos o que os consumidores necessitam e quando necessitam, porque estão mesmo aqui ao nosso lado; da biodiversidade e qualidade que asseguramos, porque na mesma exploração temos várias culturas e animais; da mão de obra que fornecemos, sendo bom ninguém ignorar ou fazer que ignora, que ao vivermos no meio rural ou nas aldeias e vilas próximas dele, asseguramos muitas horas de trabalho, muitas vezes especializado e de alta qualidade, em explorações de maior dimensão, porque a pequena dimensão da exploração familiar por si só, em muitos casos, não permite sobreviver em exclusividade o ano inteiro, são exemplos disto as tiradas de cortiça, as esgalhas de montado e do olival, e muitos outros trabalhos na floresta, ou a tosquia dos animais, a qualidade do ambiente que nos rodeia e que promovemos, através da manutenção e limpeza do espaço rural que em primeira mão utilizamos, da prevenção dos incêndios que se pode constatar nos resultados, onde existem populações a viver em espaço rural, através da limpeza das linhas de água, caminhos agrícolas e vicinais que mantemos e melhoramos porque os utilizamos, e que ninguém nos paga por esse serviço público extra.

O balanço que fazemos das políticas dos últimos 30 anos, que o exemplo anterior retrata, no que á Agricultura Familiar e ao Mundo Rural Português diz respeito, é tudo menos positiva, desapareceram no País mais de 300.000 explorações, á custa de políticas ditas comuns, que pela sua natureza, incentivadoras do absentismo, pelo desligamento das ajudas á produção e da subsidio-dependência, acima de tudo ligada à superfície, que beneficia clara e descaradamente a grande propriedade que explora de forma intensiva a terra, como é exemplo o Agro-Negócio da Monocultura do Olival super-intensivo e mais recentemente do Amendoal, onde não se olham a meios para alcançar lucros megalómanos, deixando para trás, passadas algumas décadas, terra queimada, os melhores solos de barro do Alentejo destruídos, os aquíferos poluídos pelas quantidades despropositadas de Agroquímicos aplicados anualmente, colocando em risco a saúde das populações residentes, como já se verifica por exemplo na zona de Ferreira do Alentejo, onde os olivais engoliram as vilas e aldeias e o estranho nevoeiro matinal, já não é humidade mas sim pesticidas em suspensão no ar, lançados por dezenas de atomizadores a trabalharem toda a noite, surgindo cada vez com mais frequência problemas respiratórios no seio da população local.

Para os agricultores e população local, esta vizinhança já não é sinónimo de riqueza e prosperidade, mas sim um pesadelo diário, onde as pastagens para o gado começam a estar impregnadas de químicos, criando a médio prazo problemas na alimentação dos animais e consequentemente a qualidade da carne que entra a cadeia alimentar. As pequenas propriedades desvalorizam, as populações veem a sua qualidade de vida afectada, restando-lhe o triste destino de abandonarem as aldeias que os viram nascer, para fugir deste inferno.

A concentração da propriedade da terra acentua-se nos últimos anos com preponderância especial para o subterfúgio ou artimanha, como alguns lhe chamam, da figura da sociedade agrícola que mais não é do que a potenciação dos subsídios Comunitários ao serviço do conceito de instrumento de Agro-Negócio e não de meio de produção, que a terra infelizmente voltou a ter nas últimas 3 décadas, como se comprova pelos 37,8% da SAU que é explorada ou detida por sociedades agrícolas e que quase triplica entre 89 e 2009, enquanto a área média das sociedades no continente é de 219 ha, no Alentejo é de 561 ha.

Apesar de todas estas artimanhas e contrariedades, provocadas por políticas de destruição a roçar o criminoso, do nosso aparelho produtivo agrícola e agro-industrial, ainda são as explorações agrícolas entre 1 e 5 ha que predominam no País, mas em conjunto com as outras explorações até 50 ha ocupamos apenas 10% de SAU, enquanto as outras com mais de 50ha ocupam os 90% restantes da SAU, aqui, temos bem a noção, que a terra é muita e de poucos e pouca para muitos.

A Agricultura Familiar continua a ser determinante no mosaico agrário do País e como tal necessitamos que o Estatuto da Agricultura Familiar passe do papel à prática, para que possamos continuar a tarefa patriótica de alimentar o povo, invertendo a dependência alimentar em que estamos mergulhados.
Mas para que tal aconteça é necessária coragem política e determinação para:

- Alterar a legislação da contratação pública permitindo e incentivando a aquisição de alimentos produzidos localmente, para refeitórios públicos, IPSS etc.

- Descriminar positivamente toda a venda direta, simplificando, e ou eliminando a faturação. Retirando novamente da clandestinidade económica em que o Ministério da Dra. Assunção Cristas colocou muitos milhares de pequenos produtores. Adaptando a tributação fiscal à justa cobrança de impostos sem recurso à obrigação de uma fatura que custa 20 cêntimos para vender um molho de salsa por 15 cêntimos.

- Permitir o reconhecimento e financiamento adequado de todas as organizações ligadas á produção, incluindo formas de organização coletiva dos pequenos produtores florestais de modo a permitir um aumento de rendimento das parcelas garantindo a manutenção e exploração das mesmas, sem quais-queres entraves burocráticos ou administrativos ou em nome de quais-queres outras soluções padronizadas e talhadas quase sempre á medida já existentes, desde que respeitem toda a legislação que regulamenta o sector cooperativo e das sociedades, adaptando as regras da portaria das O.P`s á realidade.

É verdadeiramente extraordinário, que um dos países proporcionalmente ainda com mais pequenos agricultores e pequena agricultura, tenha sem que se veja qualquer luz ao fundo do tunel, uma das legislações mais atrasadas, a empurrar claramente a agricultura familiar para as OP da grande produção, que tem o objetivo concreto e claro de eliminar a pequena produção, dominar também este sector, na produção de alimentos. É absolutamente extraordinário, que nenhum governo até agora, tenha decretado e atribuído, pura e simplesmente, e de forma automática, o estatuto de OP a todas as cooperativas e suas Uniões e Federações.

- Apoiar de forma específica e com medidas específicas que incentivem a continuidade das explorações familiares de geração para geração.

- Simplificar as formas de aquisição financiada de fatores de produção e alfaias agrícolas de uso coletivo, de modo a tornar o mais fácil possível a sua aquisição por grupos de agricultores.

- Assegurar o acesso à água de rega pública pela agricultura familiar a preço mais baixo, escalonando os seus custos, permitindo assim compensar este tipo de agricultura pelos benefícios que traz ao País.

- Uma segurança social escalonada de acordo com os rendimentos obtidos por cada exploração taxando mais quem mais pode, sem que os que menos podem e logo menos devem pagar, percam qualquer direito, a atual ajuda do RPB dada aos pequenos agricultores, devia no mínimo, ter um valor que lhes permitisse satisfazer a sua contribuição anual para a Segurança Social.

E aqui permitam-me uma referência muito especial para as mulheres rurais, que são mães, agricultoras, cozinheiras, domésticas, cuidadoras dos mais velhos e tudo o mais que possamos imaginar, e que na maior parte das vezes chegadas á á idade de reforma, nem direito a baixa ou reforma têm, precisamos, enquanto sociedade democrática, resolver estas situações injustas, injustificadas e muitas vezes imorais.

- Incentivar, (apoiando financeiramente), a recuperação física e a dinâmica de espaços de venda Nacionais, Municipais ou Coletivos de uso público, os Mercados, adaptáveis ou a adaptar, dando preferência nos apoios aos que sejam diretamente geridos pelos produtores de forma organizada, cimentando cada vez mais os embriões de novas formas de estruturas de comercialização e distribuição, que impeçam que as grandes superfícies sequem tudo á sua volta.

- Financiar circuitos curtos de abastecimento, de forma clara, transparente eficaz e útil, de modo a impedir que grandes OP do setor hortícola venham, como se preparam, a absorver estes apoios, assegurando-se o Estado, que apenas estruturas desta tipologia a eles tenham acesso.

- Assegurar meios financeiros públicos que permitam o acesso á terra por parte dos jovens que se queiram fixar na terra, mas com condições dignas e económicamente viáveis, e assim também contrariar a desertificação do interior.

- Facilitar a transformação da produção própria a partir da simplificação do modelo de licenciamento Municipal, assegurando que as exigências sanitárias são cumpridas sem que isso signifique a criação de uma fábrica para cada produtor, incentivando financeiramente por exemplo o poder local e as organizações de agricultores da agricultura familiar, a criarem estruturas coletivas de transformação da produção por parte dos seus munícipes, fregueses ou sócios.

- Incentivar financeira e tecnicamente estruturas de comercialização coletiva que venham a ser garante de ligação aos consumidores, tendo neles um parceiro de confiança.

- Adaptar a lei do arrendamento rural à fixação em condições de igualdade com todos os outros agricultores por parte de todos os rendeiros, incluindo muito especialmente os rendeiros de campanha, agora cada vez em maior número, pela presença e aumento das áreas regadas, e que estão fortemente limitados e descriminados atualmente, até nos apoios comunitários que não recebem.

É preciso assegurar um quadro legal de apoio ás estruturas associativas da Agricultura Familiar, que permita o desenvolvimento independente das suas atribuições técnico-sociais junto deste tipo de agricultura.

Em suma camaradas, é preciso coragem política para enfrentar os poderosos Lobies que sempre tentaram e tentarão aumentar as suas influências, é preciso repôr a justiça na repartição da riqueza produzida pelo aparelho produtivo agrícola, agro-industrial e artesanal, impedindo que o rácio seja de cerca de 10% para o agricultor, 20% para a indústria e 70% para a distribuição.

Esperamos que o poder central e a Assembleia da República, aprove medidas que passem à prática o actual Estatuto da Agricultura Familiar.

A Luta Continua.

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