Intervenção de

O estado da Nação - Intervenção de Jerónimo de Sousa na AR

Debate sobre o estado da Nação 

 

Sr. Presidente,
Sr. Primeiro-Ministro,

Estava aqui a ouvir o seu discurso proclamatório e imaginei o que sentirão, com certeza, aquele meio milhão de desempregados, tomados individualmente, esses dois milhões de pobres que constam das estatísticas, esses 1,2 milhões de trabalhadores precários, esses milhares de pequenos e médios empresários, agricultores e comerciantes arruinados e asfixiados por dívidas ao ouvir esse discurso triunfal sobre um País que não existe. Essas pessoas, individualmente, com certeza, sentirão que talvez sejam eles que têm azar, que não são beneficiários do progresso, destas medidas espantosas que o Governo do Partido Socialista tem vindo a praticar. Só que a realidade não é essa: o País real é diferente daquele que foi aqui apresentado pelo Governo.

Em relação às medidas que apresentou, Sr. Primeiro-Ministro, a minha bancada tomará posição sobre elas ao longo do debate.

Uma primeira ideia que eu gostaria de colocar é a de que, neste «ano três» do debate sobre o estado da Nação, há um facto incontornável: o Governo perdeu o seu estado de graça.

No primeiro debate, com uma fresca e esperançosa maioria absoluta, foi fácil zurzir na direita pelo estado em que deixou o País, a economia e as contas públicas e passar incólume por cima de algumas promessas eleitorais, designadamente sobre o não aumento dos impostos.

Passado um ano, exercitou a propaganda em torno de anúncios de grandes projectos, planos, programas, o apelo aos sacrifícios dos portugueses em nome de um amanhã promissor e de um pragmatismo do possível e do inevitável. Teve um amplo benefício da dúvida. Só que era preciso avançar e tomar opções.

Num quadro de hostilização à Administração Pública e aos seus trabalhadores, atacando serviços públicos e reduzindo o papel do Estado nas suas obrigações sociais, retomando e alimentando dois vícios históricos do capitalismo português - a dependência do capital estrangeiro e a protecção aos interesses dos poderosos -, o Governo do PS abriu a caixa de Pandora, numa ofensiva social sem precedentes, atingindo já não só os trabalhadores da Administração Pública mas todos os trabalhadores por conta de outrem no plano dos salários, da segurança social, da segurança no emprego. Atingiu as populações, particularmente do interior, encerrando escolas, serviços de saúde e correios, a que se seguir-se-ão, pelos vistos, encerramentos de esquadras, de postos da GNR e de tribunais. Atingiu os pequenos e médios empresários no recurso ao crédito e aos apoios, no custo dos combustíveis, transformou a redução do défice das contas públicas num altar de sacrifícios.

O que marca o seu Governo, Sr. Primeiro-Ministro, é o determinismo e não a determinação, é o economicismo e não as medidas económicas necessárias.

E, nesse sentido, é fácil, com base nestes dois pressupostos, que se resvale perigosamente para o autoritarismo.

E não vá o Sr. Primeiro-Ministro usar aqui o truque de que dizemos sempre a mesma coisa, aliás, já o fez. Nós actualizamos os elementos de balanço e de análise, tendo em conta o ano político que passou e não aquilo que disse, ou que disse só, no seu discurso.

Gostaria de colocar-lhe esta questão: por que razão omitiu aos portugueses e a esta Assembleia que se agravam, com carácter estruturante, os nossos défices agro-alimentar e energético e que a dívida externa se transformou num problema mais grave do que o do défice das contas públicas?

Mais uma vez, veio aqui dar um «puxão de orelhas» à estatística do desemprego. Por muita manipulação que faça, Sr. Primeiro-Ministro, a verdade é que se atingiu uma percentagem de desemprego só igual à de há 20 anos.

Omitiu que 21,2% dos trabalhadores portugueses têm vínculos precários. Manipulou também o relatório do próprio Banco de Portugal, quando disse que as famílias viram crescer o seu poder de compra, os seus rendimentos, omitindo a segunda parte do relatório, que diz que os salários foram desvalorizados, tendo em conta a inflação.

Sei que é a «teoria do meio frango», porque houve muita gente em Portugal que teve muito lucro, que ganhou muito dinheiro, mas as famílias mais modestas, essas, perderam, tendo em conta o aumento do custo de vida.

Sr. Primeiro-Ministro, queria colocar-lhe uma outra questão.

O senhor omitiu a proposta de alterações profundamente graves ao Código do Trabalho por via de uma comissão que foi pelo Estado nomeada e financiada. Neste sentido, como é que pode entender-se essa visão de modernidade - às recuas, diria mesmo -, tendo em conta as propostas que ali estão vertidas, dos despedimentos sumários, da liquidação do horário de trabalho, da possibilidade de redução de férias, de ataque à liberdade sindical, de ataque à contratação colectiva? Poderá dizer que é um relatório de uma comissão. Veremos! Mas faço já esta chamada de atenção.

Hoje mesmo, as confederações patronais resolveram reunir e tomar uma posição profundamente grave: querem rasgar a Constituição, querem que seja permitido novamente, neste país de Abril, que os despedimentos se façam por razões políticas ou ideológicas, querem liquidar a contratação, querem liquidar o direito de negociação e o direito à greve. Isto arrepia, Sr. Primeiro-Ministro, porque eles são estimulados precisamente por esta política que o Governo está a realizar.

Um outro aspecto. Falou-se aqui das questões da democracia e da liberdade. Ontem, a administração da empresa Metropolitano de Lisboa resolveu levantar 60 processos disciplinares a trabalhadores porque fizeram greve. Não acha que isto são sinais a mais? Não acha que este sentido de prepotência, de autoritarismo, bole directamente com a própria democracia?

Sr. Primeiro-Ministro, quero dizer-lhe, com toda a franqueza, que o seu discurso pode ser triunfante e levar à euforia esta maioria absoluta, mas com certeza que, porque o País está mais injusto, mais inseguro e menos democrático, este estado de graça que agora está a terminar, um dia, há-de ser resolvido pelo povo português.

(...)

Sr. Presidente,
Sr. Primeiro-Ministro,
Srs. Membros do Governo,
Sr.as e Srs. Deputados:

O traço mais marcante da nossa vida colectiva é o da continuação de uma preocupante e persistente crise económica e social, que continuou a agravar-se nestes quase dois anos e meio de Governo do Partido Socialista.

Na verdade, o País hoje é mais desigual e mais injusto do que o era em 2005, quando este Governo tomou posse.

No que era importante e decisivo avançar, o País e os portugueses continuaram a marcar passo e, nalguns casos, a andar para trás, batendo novos recordes de regressão social.

Novo recorde de desemprego com a elevadíssima taxa de 8,4%. Há muitos anos que o desemprego não atingia tal valor.

Novo recorde no desemprego de longa duração, que não pára de crescer e que atinge, hoje, mais de 50% dos desempregados, enquanto os jovens com menos de 25 anos são já quase 100 000 os que não conseguem um emprego. A emigração é agora novamente a saída para milhares de portugueses - só não é feito «a salto», como antes de Abril, mas muitos fazem-no e trabalham em condições deploráveis.

Novo recorde de aumento da precariedade das relações de trabalho. No último ano, mais de 12,6% dos trabalhadores ficaram nesta situação e já são mais de 1,2 milhões os trabalhadores que têm vínculos precários. Ou seja, com o actual Governo, Portugal consolida-se no pódio dos países da União Europeia com mais precariedade.

Batemos novo recorde no ataque aos salários e aos rendimentos do trabalho. Portugal, que já era o país da União Europeia com a maior desigualdade na distribuição do rendimento, com o actual Governo, consolidou essa triste liderança, com a redução dos salários reais, em 2006.

Batemos novo recorde no endividamento das famílias, enquanto se degrada o poder de compra da generalidade da população, em resultado da acção conjugada do agravamento dos impostos dos bens de consumo popular e do aumento inaceitável dos bens e serviços essenciais.

Trata-se de um endividamento que conhecerá novo agravamento, à medida que se impõe o sistemático aumento das taxas de juro, que o actual Governo não só aplaude como, inexplicavelmente, se assume como defensor do fundamentalismo monetarista do Banco Central Europeu.

Tudo isto, apesar de Portugal pagar uma das mais altas taxas de juro da zona euro e de apresentar as maiores dificuldades de retoma da sua economia.

Ninguém foi tão longe, como o foi o Governo português, no ataque às reformas e às pensões com a sua contra-reforma da segurança social. Os trabalhadores vão ter de trabalhar mais tempo e receber uma reforma mais pequena - a prazo, receberão menos 20% segundo o Banco de Portugal e menos 30% segundo a OCDE.

Ninguém foi tão longe no ataque às funções sociais do Estado, nomeadamente aos direitos à saúde e à educação. Os portugueses têm hoje mais dificuldades na acessibilidade aos serviços de saúde, com a política de encerramentos e de aumento dos custos para as famílias. São custos que já hoje atingem mais de 30%, enquanto se subalterniza o Serviço Nacional de Saúde para abrir espaço ao negócio da saúde sob o comando dos grandes grupos económicos.

Na educação, vivemos um tempo marcado pela mais vasta ofensiva contra a escola pública, pelo mais forte ataque aos direitos dos professores e estudantes e, mais recentemente, atinge-se também o ensino superior e a sua autonomia.

São estes os resultados de uma governação que vai já a meio do seu mandato e, não tarda, chega ao fim, deixando o País pior do que o encontrou, com agravados problemas de injustiça social, mais assimétrico no plano regional, menos solidário, e sem ter resolvido nenhum dos grandes problemas estruturais do País.

É esta a verdadeira natureza de uma esquerda que se diz moderna, mas que põe a andar para trás a roda da história dos direitos civilizacionais. Esquerda que se apresenta como paladina da modernidade, mas que inevitavelmente alimenta o sonho da direita dos negócios, que aspira o regresso ao originário capitalismo do poder absoluto do dinheiro e de um mundo do trabalho sem direitos sociais e laborais, cujo exemplo acabado é a proposta «ultramontana» das confederações patronais, que já propõe que se rasgue a Constituição laboral!

É este Governo que rivaliza, diz agora, sem complexos, na conquista do título de campeão dos campeões da política de direita em Portugal, ao perspectivar também um dos mais graves ataques de sempre aos direitos laborais dos trabalhadores com a chamada flexigurança. Iníqua «medalha» esta para o Partido Socialista!

Ouvimos aqui o Sr. Primeiro-Ministro a falar de diálogo e de concertação, mas o que se propõe é a guerra aberta a direitos fundamentais dos trabalhadores em sede de Código do Trabalho. Propostas que visam facilitar os despedimentos, liberalizar os horários de trabalho, permitir a redução dos salários, atacar o direito a férias, fragilizar a contratação colectiva, os sindicatos e a organização dos trabalhadores em geral, com o claro objectivo de desregulamentar e de tornar ainda mais precárias as relações de trabalho.

São estas as soluções de uma política que estende o «tapete vermelho» das facilidades aos grandes interesses económicos e financeiros. O «tapete vermelho» por onde passam os seus escandalosos lucros e os impostos pagos a taxas reduzidas, enquanto o País que trabalha vive pior e se lhes reserva uma vida de crescentes sacrifícios.

Sr. Presidente e Srs. Deputados, mas se a situação social é grave em resultado das opções políticas deste Governo, a situação económica do País continua na senda da apatia e do marasmo. Seria demolidor fazer o levantamento dos planos e dos programas anunciados aqui, da tribuna, e não cumpridos ou mal concretizados.

Não são apenas os trabalhadores as vítimas de uma política que teima em reproduzir, no essencial, as soluções da ortodoxia neoliberal e monetarista erguida obstinadamente em orientação inquestionável e única, é o País, também, no seu conjunto que paga.

Uma política que se mostra cada vez mais incapaz de inverter a inquietante evolução económica destes últimos anos e de defender os sectores produtivos nacionais: a nossa agricultura, as nossas pescas, a nossa indústria.

Em primeiro lugar, porque o saneamento financeiro das contas públicas, realizado de uma maneira cega e segundo as absurdas regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento, continua a travar a economia, acentuando as dificuldades para milhares de micro, pequenas e médias empresas.

Em segundo lugar, porque a sua política deixou em roda livre e em posição privilegiada de domínio monopolista os sectores vitais que são essenciais para assegurar a competitividade da economia do País. E ainda vão vender mais.

Os exemplos dos esbulhos são inúmeros, e o mais recente é o dos combustíveis e da energia: o preço do barril de petróleo desce e os preços da gasolina e do gasóleo sobem. Os custos da energia eléctrica e do gás continuam a arruinar as empresas portuguesas e o bolso dos consumidores. É assim que se favorece a centralização e a concentração da riqueza à custa do País.

Marcamos passo no crescimento económico e no investimento. As perspectivas de crescimento para o presente ano, segundo o Banco de Portugal, vão ficar-se por um modesto 1,8% do PIB. O Governo promete, agora, a convergência para 2009, mas é sempre, sempre, sempre lá mais para a frente!

O investimento, que era decisivo para relançar a economia, continua sem inverter a tendência recessiva que se prolonga há demasiado tempo, sempre à espera dos grandes investimentos prometidos e copiosamente anunciados como instrumentos de propaganda. A dívida externa continua a crescer a olhos vistos e atinge 80% do PIB.

Esta é a verdadeira expressão de uma política que condena à ruína os seus sectores produtivos, que promove a crescente substituição da produção nacional pela estrangeira e inflaciona o sector financeiro.

O País, em vez de ter uma política económica e monetária ao serviço do crescimento e do emprego, continua a trilhar o caminho da ampliação dos factores recessivos, nomeadamente com os brutais cortes no investimento público, a contracção do mercado interno e o aumento dos impostos, sempre em nome do sacrossanto desígnio do combate ao défice.

Poderemos ter, por este andar e de tanto cortar no investimento e nos direitos sociais, em 2010, um défice zero nas contas públicas, mas também uma economia arruinada e cada vez mais destroçada e subalterna.

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

O País tem vindo a assistir, com mais visibilidade nos últimos tempos, ao acentuar dos comportamentos antidemocráticos a partir do poder governamental e das suas ramificações.

Esta é uma ofensiva que, a par da restrição acentuada dos direitos sociais mais elementares, se traduz num cada vez mais ostensivo e frequente exercício dos poderes públicos de forma partidarizada e arbitrária.

O Governo quer avançar na limitação dos direitos de actividade sindical, tenta condicionar o exercício do direito à greve, como ainda recentemente ocorreu na greve geral convocada pela CGTP, dá orientações de tal forma restritivas que conduzem às chocantes e aberrantes decisões de juntas médicas no que respeita à aposentação extraordinária, e nem se coíbe de mandar identificar manifestantes que protestam contra o Primeiro-Ministro ou de vigiar de forma ilegal, e que continua a não estar esclarecida, os dirigentes das associações militares.

Mas este é também o Governo que ao mesmo tempo, e tal como os anteriores, «coloniza» a Administração Pública a partir do seu aparelho partidário, mantendo a nomeação como regra e o concurso como excepção.

É por ter uma política de direita e anti-social que o Governo lança mão de inaceitáveis meios e instrumentos para condicionar quem se opõe, quem protesta e quem luta contra as suas medidas.

Atacada a democracia social, económica e cultural, fácil e perigosamente se passa ao ataque da democracia política.

Sr. Primeiro-Ministro, parafraseando o cantor, «hoje é o primeiro dia do resto do seu mandato». Sabemos que deste debate resultará muito daquilo que o Governo quer que resulte. Hoje e amanhã, veremos e leremos o que o Governo quer que se oiça e leia, desfocando a realidade e os verdadeiros problemas nacionais.

Enquanto nega a esperança e mina a confiança, delas falará em nome de um amanhã que continuará adiado e comprometido se persistir nesta errada e injusta política.

Temos hoje um País mais injusto, menos seguro e menos democrático. E, ao contrário do que o Sr. Primeiro-Ministro pensa, inquieta-nos que seja um Governo do PS a fazê-lo.

Porque não há-de ser sempre assim, nós temos uma outra esperança e uma outra confiança, a que não fica à espera, a que reside na aspiração e na luta por uma vida melhor para o País e para os portugueses. Lá estaremos como sempre.

 

 

 

 

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