Intervenção de Odete Santos na Assembleia de República

O estado da justiça e política de segurança interna

Interpelação ao Governo nº 2/VIII

Ao reler a profusa análise sobre a crise da Justiça constante da comunicação social, pude constatar com espanto que houve quem afirmasse que o Parlamento tinha ignorado até agora a crise, e que só despertou da letargia com o processo do Aquaparque.

Costuma dizer-se que a memória das pessoas é curta.... Mas não pensávamos que a memória ficasse reduzida a um espaço temporal reduzido ao ano civil em curso.

De facto, em 15 de Abril do ano passado, o PCP agendou para Plenário, uma interpelação ao Governo centrada nas questões relacionadas com a Justiça. Nas intervenções do Grupo Parlamentar do PCP, que hoje poderíamos reler dada a sua actualidade, foi feito o diagnóstico relativamente à crise, onde nem faltou a referência às prescrições do procedimento criminal.

Pode ler-se na intervenção de abertura:

"Não há justiça, desabafa-se. O prato está desiquilibrado. É o que dizem os cidadãos quando são confrontados com as prescrições do processo penal

É o que dizem os cidadãos quando são confrontados com as prescrições do processo penal.E, dizíamos já em Abril de 1999,aquji estamos confrontados com outra das razões de desconfiança que incide sobre a Justiça. Na situação de conflitualidade vivida nas autoproclamadas democracias ocidentais, na situação de estrangulamento do aparelho judiciário que se vive em Portugal, é impossível que não se verifiquem prescrições. Mas esta não é razão que se apresente ao cidadão atingido pela morte do exercício da acção penal que solicitou ao recorrer aos tribunais.

Por outro lado, e repetimos sem necessidade de fazer alterações, quando os cidadãos vêem prescrever processos mediáticos que envolvem a criminalidade de colarinho branco, sentimos então avolumar-se o desabafo: Não há justiça".

Nessa altura, ainda havia quem fizesse da Justiça um retrato, senão cor de rosa, pelo menos de uma cor já intermédia entre o laranja e o rosado. Não havia, portanto, motivo para alarmes.

Ou havia mesmo quem afirmasse que o Governo nada podia fazer perante a denúncia mediática da crise, ocorrida já no ano ano passado.

Consultem-se os jornais de então e releiam-se as declarações do senhor Primeiro Ministro António Guterres.Para ele, o Governo nesta área pouco podia fazer porque se tratava dos tribunais.

Há muitos anos que os sintomas de uma doença profunda que se apoderou do aparelho judiciário, se vêm fazendo sentir. Tornando-se cada vez mais fortes.

E há muitos anos que os sintomas vêm sendo evidenciados porque quem mais sente na pele os efeitos da legislação.

Uma coisa é certa. A legislação que foi sendo profusamente aprovada, não visava a cura da doença. E desviava as atenções dos sintomas.

Por forma a que se foi assistindo a querelas que o cidadão não sentia como suas. Ainda que fosse do seu interesse um Ministério Público ainda mais autónomo, quando a realidade e os factos empurraram para a alteração do modelo processual penal.

Ainda que fosse do seu interesse o reforço da autonomia do Ministério Público como forma de tornar impraticável, fosse qual fosse o poder político, a utilização do direito penal como forma de controle da ordem social.

Ainda que do seu interesse fosse a criação de condições para a preservação da independência do Poder Judicial, que não passa só pela afirmação dessa independência, mas pelo municiamento dos magistrados, dos tribunais, com os meios para uma atempada administração da Justiça. Que os coloque ao abrigo da mediatização da crise que gera desconfiança dos cidadãos relativamente ao último reduto de defesa dos seus direitos e liberdades - Os tribunais.

Tudo chegou, a certa altura, a parecer reduzir-se, para a opinião pública, a querelas meramente corporativas.Tal foi o resultado de intervenções um tanto inábeis do Poder Político.

E o que é que sentia, e sente hoje, o cidadão relativamente aos tribunais?

Sente que se desemboca numa Justiça de classe, na qual encontram arrimo os mais ricos, e na qual se queixam, os desfavorecidos, da sua cegueira.

Já a longa distância do momento em que se iniciaram variadíssimas reformas( desde o aumento das custas judiciais e o afastamento da Justiça relativamente aos cidadãos- conseguido de várias formas, em que se incluem a teimosia num modelo de Tribunais de Círculo votado ao fracasso) até à alteração da Lei processual penal( que guardava na esquadra,antes do julgamento, contra o que esta Assembleia decidira, os autores dos pequenos delitos a julgar em processo sumário o que deu origem a uma prolongada greve em torno dos Tribunais de turno) a longa distância podemos concluir que` a uma judicialização das questões sociais correspondeu uma investida contra um ordenamento jurídico da Democracia na área judicial. Que se traduziu na correspondente resistência e na busca de soluções que inviabilizassem a investida.

Fomos sendo confrontados com vários factos indesmentíveis. A única solução seria acabar com os Tribunais de Instrução Criminal porque não funcionavam. A única solução seria colocar a investigação nas mãos do Ministério Público, e, mias tarde, porque o combate á criminalidade cabia nos poderes do Governo, a única solução seria retirar alguns poderes ao Ministério Público.

A única solução seria reduzir ao mínimo o número de Juizes de Instrução para aumentar o número de Juizes de Julgamento. Com o que se veio, afinal, a criar um maior caos em comarcas de grande movimento, onde os magistrados não chegam para as encomendas e suportam um tremendo fardo.

Depois foi preciso novos instrumentos que municiassem o Ministério Público para o combate á grande criminalidade, e pela nossa parte, com dúvidas e interrogações nomeadamente quanto á forma de nomeação dos magistrados, aprovámos essas medidas. Que, segundo anunciado, permitiriam a racionalização dos recursos humanos nos Tribunais, libertando magistrados de espinhosas tarefas, que os tornariam mais disponíveis para processos a que não podiam dedicar-se da mesma forma.

Isto parece não ser ainda suficiente dada a gravidade da crise.

Agora clama-se pelo princípio da oportunidade, pondo em causa a autonomia do Ministério Público e a própria independência dos tribunais. Clama-se por uma revisão constitucional.

Mas são estas as medidas imediatas, as medidas fundamentais de que necessita a democracia?

A adopção de modelos estrangeiros que não têm conferido dignidade à justiça, dificilmente poderão recriar a confiança dos cidadãos, e é quase certo que não contribuirão para a sua aproximação relativamente a estes.

De resto, impõe-se que se diga que a morosidade da justiça é um facto noutros países da Europa.

É um facto mesmo no Tribunal Europeu que condena os países pela morosidade na tramitação processual.

De um relatório feito na Itália em relação a tribunais criados para acabar com as pendências, retira-se um dado que só não se transforma em hilariante por ser muito trágico. Em determinado tribunal italiano, as pendências demorariam 500 anos a liquidar!

É nesta situação que desemboca a falta de mecanismos que resolvam o problema a montante da intervenção judicial. A judicialização exacerbada das questões sociais. A ausência de soluções informais de resolução de conflitos.A ponderar devidamente, de resto. Para que não fica reservada apenas aos mais favorecidos a resolução dos conflitos.

Assim, pode concluir-se que apesar da profusa legislação aprovada, não foram tomadas as medidas necessárias ao combate da doença.Para adoptar uma metáfora da área da saúde que o Senhor Ministro da Justiça introduziu no debate público em torno da crise, por vezes ministra-se uma aspirina ao doente. E às vezes um medicamento errado. Naquele caso a febre reaparece.Neste, a doença avoluma-se.

Hoje, de uma maneira geral, e salvo, certamente, algumas excepções, muito excepcionais, trabalha-se quase em regime de trabalhos forçados nos Tribunais.

E apesar das estatísticas, sempre utilizadas, revelarem que aumentou o número dos processos findos, a verdade é que aumentou muito mais o número de processos entrados. E a verdade é que, por mais que se formem novos juizes, nunca serão suficientes para pôr a Justiça em dia..

É preciso preparar desde já, medidas de fundo que garantam ao cidadão o menor risco quando peticiona a intervenção dos Tribunais. Tanto na área da formação de magistrados, como na área da modernização dos tribunais, ou ainda na busca da solução informal dos conflitos. Nunca esquecendo a resposta aos problemas sociais, muito a montante do aparelho judiciário.

Se nos ficarmos por soluções meramente pontuais,poderemos vir a assistir ao agravamento da crise, com nefastas consequências para a independência do poder judicial e para os Direitos liberdades e garantias dos cidadãos.

A situação já é deveras preocupante.

Um milhão e setecentos mil processos a circular por ano nos Tribunais.Quarenta mil processos prescritos que ficaram por julgar, por estarem prescritos.Cento e trinta e dois mil processos crime parados só no Distrito de Lisboa. Mais de vinte mil perícias por realizar no laboratório de polícia científica. Seis mil relatórios por fazer de autópsias já realizadas.Um défice de 1000 funcionários n os tribunais e 700 na Polícia Judiciária.

Esta é uma radiografia a exigir especiais cautelas. As medidas devem ser bem ponderadas por forma a que não possam criar-se novos mecanismos de judicialização de questões. Será que o que se passa com os actos notariais e a sua privatização é prudente?

O PCP anunciou o ano passado que apresentaria um projecto de lei para criação dos julgados de paz. Que consideramos uma medida estruturante. E a quem a classificou de fisga ou funda, recordarei que David com tanto se bastou para vencer o gigante.

Não somos de tal maneira arreigados ao articulado que não entendamos que o mesmo possa ser melhorado. Pode e deve. Porque sendo os Julgados de paz, neste momento da nossa história, uma inovação, consagrada constitucionalmente, muito haverá que debater para encontrar a solução mais apropriada que consagrará uma Justiça de proximidade.

E muito poderá ajudar a restaurar a confiança dos cidadãos no Poder Judicial. O cidadão é que verdadeiramente deve estar no cerne das preocupações de todos nós, e não esta ou aquela classe de operadores judiciários.

E então poderemos falar de um autêntico Poder Judicial.

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