Intervenção de

Enriquecimento ilícito - Intervenção de António Filipe na AR

Crime de enriquecimento ilícito

 

Sr. Presidente,
Sr. Deputado Fernando Negrão,

Em primeiro lugar, gostaria de saudar a iniciativa do PSD, porque nos parece que a questão do enriquecimento ilícito ou injustificado (a designação, neste caso, é de somenos) é, de facto, relevante.

O facto de alguém apresentar um nível de vida elevado e ostentar património e rendimentos manifestamente desproporcionados relativamente àquilo que aufere e declara é, do nosso ponto de vista, muito relevante. E, não havendo um instrumento legislativo eficaz para lutar contra esse fenómeno, torna-se muito difícil perseguir provavelmente a maior parte dos crimes por corrupção. Portanto, consideramos que esta ideia tem mérito.

Mas também é preciso dizer que, do nosso ponto de vista, o PSD acordou um tanto tarde para esta questão, uma vez que a mesma esteve em discussão quando, no dia 22 de Fevereiro, debatemos o chamado pacote de iniciativas sobre corrupção. Nesse debate, o PCP propunha já a criação de um tipo de crime de enriquecimento injustificado. Na altura, o PSD usou um argumento contrário à consagração da proposta por nós apresentada, dizendo que a mesma invertia o ónus da prova e que não aceitava essa inversão.

Ora, a perplexidade que sentimos hoje é esta: se o PSD considera que esse projecto de lei do PCP inverte o ónus da prova (algo que nós não consideramos), não sei como é que o PSD consegue explicar que o diploma do PCP faça a inversão do ónus da prova e o do PSD (projecto de lei n.º 374/X) não faça.

Creio que, no essencial, há uma questão fundamental, que é a seguinte: quando debatemos aqui o nosso projecto de lei, dissemos que o preenchimento do tipo de crime dá-se quando se demonstra que há uma desconformidade manifesta entre os rendimentos declarados por um determinado cidadão e os seus sinais de riqueza e o seu modo de vida. Só que tal tem de ser demonstrado, sendo isso que corresponde ao preenchimento do tipo de crime. No entanto, se o cidadão demonstrar a licitude da obtenção desse património e desses rendimentos, isso constitui uma causa de exclusão de ilicitude.

Ora, segundo percebi, da leitura do projecto de lei do PSD e da exposição que o Sr. Deputado Fernando Negrão acabou de fazer, o que o PSD propõe é, basicamente, o mesmo. Ou seja, o  preenchimento do tipo de crime dá-se quando se demonstra (e é a acusação que tem de demonstrar) que há uma desproporção entre o que foi declarado e o que existe efectivamente.

Portanto, também considero que o projecto de lei do PSD não corresponde a uma inversão do ónus da prova, pelas razões que o Sr. Deputado explicitou. Mas o que não consigo perceber é que se diga que há um diploma que não inverte o ónus da prova e que o outro inverte. Em suma, penso que há uma contradição em relação ao que o PSD diz.

No entanto, quero manifestar a nossa disponibilidade para encontrarmos uma boa solução, em sede de especialidade, que consagre aquilo que para nós é essencial.

(...)

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

Como tive oportunidade de referir há pouco quando pedi esclarecimentos ao Sr. Deputado Fernando Negrão, consideramos que a questão em debate é pertinente. Aliás, não é uma invenção nossa, isto é, não é uma invenção de parlamentares portugueses, nem do PCP nem do PSD, e inclusivamente a possibilidade da existência de um crime desta natureza tipificado está prevista na chamada Convenção de Mérida.

Importa notar que o Governo já apresentou nesta Assembleia - embora tardiamente acabou por o fazer - uma proposta de resolução no sentido da aprovação, para ratificação pelo Parlamento, da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção. E a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção prevê precisamente que os Estados-membros, de acordo, como é evidente, com as suas normas constitucionais - já vamos a este aspecto -, procedam à tipificação de um crime de enriquecimento ilícito.

Portanto, estamos de acordo com a Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção e consideramos pertinente, que tem todo o cabimento na legislação portuguesa, que seja criado um tipo de crime com estas características.

Não consideramos que os projectos de lei apresentados sobre esta matéria na Assembleia da República, quer o do PCP quer o do PSD, constituam uma inversão do ónus da prova que ponha em causa o princípio constitucional da presunção de inocência dos arguidos. Aqui corrijo aquilo que há pouco referia o Sr. Deputado Ricardo Rodrigues, porque a nossa crítica ao PSD não foi a de dizer que este projecto de lei viola o artigo 32.º da Constituição. Pelo contrário, criticámos o PSD por ter considerado isso relativamente ao nosso projecto de lei, pois pensamos que nenhum deles viola o princípio da presunção de inocência e que é perfeitamente possível encontrar uma solução técnica, quer a que propomos, quer aquela que o PSD nos propõe e que nos parece menos boa, quer uma outra. Ou seja, é possível, do nosso ponto de vista, tipificar um crime de enriquecimento ilícito ou injustificado na nossa ordem jurídica sem violar o artigo 32.º da Constituição. Caso contrário, não teríamos, obviamente, apresentado o projecto de lei que apresentámos.

Parece-nos que a criação deste crime se justifica perfeitamente por se tratar de um instrumento poderoso de combate à corrupção. Porque não é aceitável, de facto, que um cidadão que aufere um determinado vencimento e que não tem outro meio de vida conhecido se passeie, depois, de iate ou em avião particular entre Cascais e o Mónaco. Não é possível fechar os olhos a isto!

E «quem não deve não teme»! Creio que um cidadão que aufira os seus rendimentos e que obtenha o seu património por meios lícitos não tem qualquer problema em demonstrá-lo. Aliás, os cidadãos são obrigados a demonstrar a forma de obtenção dos seus rendimentos, designadamente para efeitos fiscais.

Inclusivamente, a declaração de IRS de cada cidadão até já vem preenchida com as informações que a administração fiscal obtém, e muito bem. Do nosso ponto de vista, não há qualquer problema em haver uma exigência com carácter geral no sentido de os cidadãos deverem justificar a obtenção dos rendimentos e do património que têm. Não é proibido ser rico, mas é proibido obter riqueza por meios ilícitos.

Portanto, achamos que «quem não deve não teme» e não temos qualquer problema em que haja um dever geral de transparência de todos os seus cidadãos relativamente à obtenção dos seus rendimentos e do seu património.

Quer parecer-nos que PS tem nesta matéria uma posição semelhante à que tem o PSD relativamente às incompatibilidades na Região Autónoma da Madeira, que é a de dizer: «achamos que é inconstitucional e, portanto, como achamos que é inconstitucional, não vamos discutir o fundo da questão ». O PS está agora a fazer aqui o mesmo, dizendo: «não, não vale a pena discutir isso porque é uma inversão do ónus da prova». Isto é, quanto à possibilidade de haver cidadãos que apresentem um nível de vida e sinais exteriores de riqueza absolutamente injustificáveis e desproporcionados em relação ao que ganham o PS diz: «bem, isso não é problema, porque para combater isso tínhamos de inverter o ónus da prova e, portanto, não vale a pena discutir o assunto».

Srs. Deputados, vale a pena discuti-lo, do nosso ponto de vista. E achamos que o PS, com as responsabilidades que tem enquanto partido maioritário e até com o empenhamento que afirmou no combate à corrupção quando aqui discutimos, no passado dia 22, várias iniciativas legislativas sobre essa matéria, vai mal em fugir a essa discussão refugiando-se apenas na afirmação de que, do seu ponto de vista, esta matéria é inconstitucional.

Vale a pena discutir a bondade das soluções aqui apresentadas na sua substância. E, portanto, se o PS considera que as iniciativas legislativas apresentadas sobre esta matéria violam o artigo 32.º da Constituição mas que substancialmente são bem fundamentadas, então, que contribua para um solução que possa levar ao objectivo de combater a corrupção com um meio legislativo eficaz e que não viole aquele dispositivo. Creio que a contribuição do PS era bem-vinda para esta causa.

Quero aqui dizer que o Grupo Parlamentar do PCP vai votar favoravelmente esta iniciativa legislativa, embora nos pareça que a solução encontrada pelo PSD não é a melhor. Quer parecer-nos que a criação de um tipo de crime de perigo abstracto é um pouco forçada relativamente àquilo que se pretende atingir, mas, como consideramos que do ponto de vista substantivo este é um problema relevante, é algo que está previsto e recomendado aos Estados-membros das Nações Unidas pela sua convenção e como pensamos que não há um obstáculo constitucional a que um tipo de crimes destes seja considerado na ordem jurídica portuguesa, vamos votar favoravelmente o diploma em questão, até porque pensamos que no debate na especialidade que terá lugar muito em breve sobre as várias matérias de combate à corrupção aqui apresentadas este é mais um contributo que a Assembleia da República não deve desprezar.

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