Intervenção de Paulo Raimundo, Secretário-Geral do PCP, Apresentação do Programa de Emergência para o SNS

Em nome da redução do défice e da dívida, sacrificam-se serviços públicos, entre os quais o SNS

Em nome da redução do défice e da dívida, sacrificam-se serviços públicos, entre os quais o SNS

No momento em que vivemos no nosso País, e em particular em relação ao direito à saúde, é preciso responder a duas perguntas fundamentais. 

A primeira é a de saber se o Serviço Nacional de Saúde é fundamental para garantir este direito a toda a população.

A resposta é indiscutivelmente, sim! 

O SNS, uma das grandes conquistas da Revolução de Abril, é o instrumento indispensável para garantir o direito à saúde, como aliás a própria Constituição determina.

A segunda pergunta é se com a política do Governo da AD podemos esperar que o SNS cumpra plenamente esse papel. 

A resposta é sem dúvida negativa. A AD não tem como objectivo melhorar o funcionamento do SNS, mas continuar a desvalorizá-lo, tal como fez o Governo do PS nos últimos anos, com o objectivo de impulsionar ainda mais o negócio da saúde.

Para os democratas, para a maioria dos profissionais de saúde, para todos os que se preocupam com os direitos fundamentais e a justiça social, a reconstrução do Serviço Nacional de Saúde, retirando-o do caminho de enfraquecimento em que foi colocado, é uma questão decisiva da actualidade.

A reconstrução do SNS é uma exigência sanitária, sócioeconómica e democrática.

É uma exigência sanitária porque, tal como o SNS foi indispensável para a melhoria extraordinária dos indicadores de saúde no nosso País – na mortalidade infantil e materna, no aumento da esperança de vida, na prevenção de doenças evitáveis -, é absolutamente evidente que sem o seu papel fundamental o País não vai continuar a progredir. A sua rede de proximidade, a articulação dos cuidados, a capacidade de desenvolver a prevenção da doença e sobretudo o acesso de todos aos seus serviços sem discriminações, são características que só encontramos numa organização como o SNS.

É uma exigência sócioeconómica, porque sempre que o Serviço Nacional de Saúde recua, os mais prejudicados são os de menores recursos económicos. As dificuldades criadas ao funcionamento do SNS nos últimos anos evidenciam já esse efeito. O privado não responde nem nunca responderá a todos e não responde a todos da mesma maneira. 

É uma exigência democrática, porque o direito à saúde é essencial a uma sociedade que se queira justa e não discriminatória e porque criar discriminações no acesso aos serviços de saúde é atentar contra um dos aspectos mais básicos da igualdade entre os cidadãos, que queremos que exista no nosso País.

É por isso que tomamos a iniciativa de apresentar um programa de emergência para o Serviço Nacional de Saúde. Estamos de facto perante uma emergência, que exige resposta imediata e concreta, antes que a degradação, que se tem acentuado, se torne de mais difícil reversão.

Alguns questionarão, como o fizeram quando anunciámos a apresentação de uma moção de rejeição ao Programa de Governo, se não deveríamos esperar para ver o Plano de Emergência da AD, anunciado para daqui a cerca de um mês e meio. Mas tal como dissemos em relação ao Programa de Governo, não alimentamos nenhuma expectativa em relação ao que aí vem. Sabemos bem o que desejam PSD e CDS, como também IL e Chega, e isso ficou já muito claro no que está escrito e no que está omitido no dito Programa de Governo. E também conhecemos bem as hesitações e compromissos do PS com o fomento do negócio privado, que os últimos anos de governação puseram em evidência.

O Programa de Governo não deixa margem para dúvidas. O caminho que preconizam é o da concretização da ideia de sistema nacional de saúde, um conceito sem qualquer consagração na Constituição ou na Lei, visando a diluição do Serviço Nacional de Saúde, e um financiamento cada vez maior para os privados, deixando desprotegidas milhões de pessoas. 

Não se valorizam os profissionais de saúde, questão decisiva para a recuperação do SNS. Fala-se apenas de um plano de motivação. Mas não há motivação sem um compromisso concreto com a valorização das suas remunerações, com a redução das elevadas cargas de trabalho ou a melhoria das suas condições de exercício da profissão. E isso não quer o Governo, como não quis o Governo anterior.

Anuncia-se uma cada vez maior desresponsabilização do Estado, com o prosseguimento da entrega de serviços aos privados, incluindo o seu reforço em áreas como os cuidados continuados e paliativos, a saúde oral, as cirurgias, consultas e meios de diagnóstico e tratamento e até os cuidados primários de saúde, com a privatização de USF e outras medidas que se adivinham nas entrelinhas do Programa do Governo. Apresenta-se também uma maior responsabilização das autarquias.

Consagra-se no Programa do Governo do PSD e CDS uma lógica de suposta competitividade entre serviços públicos e privados para a prestação de serviços e o financiamento pelo Estado, o que é mais uma mal disfarçada forma de privatizar novas parcelas do SNS. É que no sector da saúde, aliás como noutros, pelas suas características próprias, a concorrência é uma ilusão. O que teremos é o privado a fazer apenas o que lhe for mais lucrativo, a seleccionar os utentes que considera mais vantajosos e a capturar o Estado em todas as áreas em que for insuficiente a resposta do sector público. 

Nada disto é novo, já se fez noutros países com resultados muito negativos. São conhecidas e estudadas as consequências das políticas de privatização de serviços públicos: selecção adversa de doentes e patologias, altas precoces, cobranças excessivas sem controlo efectivo, entre outras matérias.

Aliás a experiência do nosso País é já bem demonstrativa de que o privado não é a solução. Todos nos lembramos que o País não contou com os privados para enfrentar a COVID-19; contou sim com o Serviço Nacional de Saúde. Todos registámos a disponibilidade dos privados para receber grávidas dos hospitais públicos, mas desde que sem risco e complicações; essas ficam para o SNS. Todos conhecemos as histórias de grávidas ou doentes enviados para os hospitais públicos quando a situação se complica ou já não podem pagar o internamento. Ou das cobranças de exames e procedimentos que ninguém pediu mas aparecem na factura.

A realidade também desmente o mito de que uma grande parte da população já recorre fundamentalmente a seguros de saúde. O programa eleitoral da AD diz que 3,1 milhões de pessoas já estão neste campo, mas omite o facto de este sector segurador suportar menos de 4% do total da despesa. O mesmo programa eleitoral refere que as pessoas suportam directamente cerca de 35% das despesas com a sua saúde. Curiosamente esta referência desapareceu do Programa de Governo.

O privado não vai resolver os problemas do acesso à saúde dos portugueses. E independentemente do recurso pontual e transitório a alguns dos seus serviços, só com o reforço do SNS e dos seus serviços seremos capazes de garantir cuidados de saúde a todos os portugueses.

Para o Governo e para a direita em geral, aproveitando o terreno fértil deixado pelo PS, trata-se apenas de aplicar a cartilha do capitalismo neoliberal, da liberalização da economia e da sociedade, para favorecer os grandes grupos económicos, designadamente os que operam na área da saúde. O objectivo é claro: fazer da saúde um negócio.

No PCP não nos conformamos com este caminho. E apresentamos de imediato um Programa de Emergência para o SNS, que não esgota as medidas necessárias, mas elenca uma primeira base essencial para o início da sua recuperação.

Para recuperar o SNS é preciso financiar e investir mais nos seus serviços. A despesa em saúde no nosso País é inferior à média da União Europeia (seja em percentagem do PIB, seja per capita) e a despesa pública per capita é, por exemplo, apenas 30% da que se verifica na Alemanha. Isto quer dizer que não gastamos a mais com a saúde; gastamos é a menos com o SNS.

Ao longo dos últimos anos a percentagem efectivamente executada do investimento previsto no Orçamento do Estado para a saúde, já de si um valor reduzido, foi extremamente baixa. Na média dos últimos três anos, executou-se menos de 40% do orçamento previsto. São equipamentos que não se compram, instalações que não se renovam, novos hospitais que não se constroem.

Em paralelo os serviços públicos de saúde, em particular os hospitais, continuam a acumular dívidas por financiamento insuficiente e, pior do que isso, a estarem sujeitos a um garrote financeiro que os impede de resolver problemas e de aumentar a qualidade da sua resposta.

Para recuperar o SNS é por isso necessário mais financiamento e mais investimento.

Mas é evidente que a questão dos profissionais de saúde é essencial para a recuperação do SNS. Sem profissionais não há SNS e foi a degradação das condições dos trabalhadores da saúde que fomentou uma expressiva saída dos serviços públicos e a menor atractividade para novas contratações.

Para recuperar o SNS é preciso qualificar as remunerações e melhorar as condições de trabalho dos profissionais de saúde. Precisamos de mais profissionais, de mais especialidades e isso só se consegue garantindo melhores salários, proporcionando a dedicação exclusiva com majoração da remuneração, desde logo a médicos e enfermeiros, valorizando as carreiras e garantindo uma efectiva progressão. É preciso garantir que o SNS é um sítio onde vale a pena trabalhar.

Disto não se desliga a forma como são geridas as entidades públicas da saúde. A falta de autonomia destas instituições, a ausência de qualquer democraticidade e representatividade dos seus dirigentes é um forte travão a uma boa gestão em saúde e é também um sério motivo para a desmotivação e o abandono de muitos profissionais. Garantir que os dirigentes máximos são escolhidos por concurso, valorizando a transparência e a sua capacidade, assegurando que os restantes são eleitos pelos seus pares, o que é uma garantia acrescida de qualidade e competência, são elementos indispensáveis para a melhoria do SNS. O cartão partidário ou a proximidade a grupos económicos e a outros grupos de interesses não podem continuar a ser critério de escolha.

O fundamental é que o SNS responda melhor às populações. O SNS tem de fazer mais e comprar menos ao privado. Tem de valorizar os seus recursos, humanos e técnicos, melhorá-los e aumentá-los. Tem de reduzir e eliminar as listas de espera, garantir médicos e enfermeiros de família, valorizar a saúde mental, a saúde oral, a saúde visual, promover a saúde e não só tratar a doença. Isso só o SNS está em condições de fazer!

Por isso a hora é de avançar. É hora de colocar desde já em contraponto uma alternativa democrática e progressista à destruição do SNS. É o tempo de com a proposta e sobretudo com a luta das populações e dos trabalhadores, em particular os da saúde, defender o Serviço Nacional de Saúde e o direito à saúde de todos os que vivem no nosso País.

Luta fundamental e insubstituível para retomar o trilho de Abril, com a política patriótica e de esquerda que propomos.

Um trilho do qual a política de direita nos afasta cada vez mais, e que o novo Governo pretende intensificar ainda mais, acatando os ditames de Bruxelas.

Aí vemos esta submissão no programa de estabilidade.

Submissão a imposições da UE e do Euro que constituem renovados obstáculos e são um bloqueio ao investimento público e ao desenvolvimento económico do País.

Em nome de uma acelerada redução do défice e da dívida, sacrificam-se salários, pensões, serviços públicos, entre os quais, claro, o Serviço Nacional de Saúde.

Pois nós vamos apresentar um projecto de resolução propondo a rejeição deste programa de autêntica instabilidade, um mau programa por tudo o que implica, não só, mas também na área da saúde.

Uma vez mais, vamos forçar a votação, tal como fizemos com o programa de Governo, vamos forçar que os outros partidos tomem posição e se pronunciem sobre estas opções.
Opções que também estão em confronto na campanha eleitoral que se avizinha.

Vão fazer de tudo para agitar medos e papões. Vão fazer de tudo para atirar a discussão lá para longe. Vai valer tudo menos discutir como os efeitos da integração europeia nos atingem, na vida de todos os dias. Vai valer tudo menos discutir o que cada uma das forças políticas está disposta a fazer em relação a isso.

Sim, o que é que PS, PSD, CDS, aos quais se querem juntar agora Chega e IL, vão fazer, quando a UE determinar, como já determinou, que é preciso continuar a cortar no investimento público em nome da dívida e do défice.

O que é que eles vão fazer quando propusermos, como já propusemos, o aumento do financiamento da Política de Coesão e do Fundo Social Europeu.

O que é que eles vão fazer quando propusermos, como já propusemos, uma maior centralidade no financiamento de áreas sociais e laborais.

E eles não vão querer discutir isso, porque vão votar contra. Por isso discutem e perdem tanto tempo com o acessório.

Pois nós aproveitamos e aproveitaremos todos os momentos para afirmar o caminho alternativo que precisamos de percorrer. Com coragem, de forma coerente e consequente, desde o primeiro momento contra a política de direita, venha ela de onde vier.

Hoje damos mais um passo neste combate, apresentando este programa de emergência para o Serviço Nacional de Saúde. Veremos quem nos acompanha.