A dignidade social da vida humana uma nova lei de despenalização do aborto - Maria José Mauricio

Ao ser considerado crime público, o aborto acarreta a estigmatização
social da mulher como criminosa. Os processos de investigação e
condenação formal, cuja denúncia faz passar as mulheres pela vergonha
de verem a sua vida exposta na praça pública, constituem um ultraje à
sua própria dignidade.
Apesar do Código Penal considerar admissível o aborto em determinadas
situações, o que se constata é a sua desadequação à realidade. Sendo
demasiado restritivas, tais situações não evitam que algumas mulheres
(as que não têm recursos económicos) recorram ao aborto clandestino,
correndo o risco de pôr em causa a saúde e a própria vida por ausência
de condições seguras em que este é praticado.

A defesa da vida: um princípio fundamental

A despenalização da IVG, a pedido da mulher até às 10 semanas (ou 12
semanas, como propõe o PCP), não significa a condenação da vida humana.
A defesa da vida, nos termos em que está consagrada no n.º 1 do Art.º
24.º da Constituição da República Portuguesa, no Art.º 3.º da
Declaração Universal dos Direitos do Homem, na Carta dos Direitos das
Crianças, no Pacto Internacional sobre os Direitos Económicos, Sociais
e Culturais e na Carta Social Europeia, é o quadro de referência dos
que defendem a despenalização do aborto. Dos que respeitam e assumem os
fundamentos democráticos e progressistas destes documentos como
património civilizacional, documentos proclamados à luz do direito e da
justiça na defesa da pessoa humana.
Nos seus diversos estádios, a vida humana é um processo de
desenvolvimento muito complexo onde interagem factores biológicos,
afectivos, sociais e culturais.  Neste contexto, o direito à vida
refere-se aos direitos e liberdades fundamentais do indivíduo e implica
o dever de respeitar a dignidade de todo o ser humano.
Nesta perspectiva, a vida humana assume uma dimensão política, social e
ética, que, além de outros, determina compromissos de natureza
económica e social aos futuros pais e mães, perante a responsabilidade
de assegurar as condições básicas para que a sua criança cresça feliz e
possa devir um cidadão/cidadã inserido socialmente, responsável e
pronto a trilhar, com dignidade, o seu próprio caminho. Mas, de igual
modo, compromete toda a sociedade e o Estado na realização das
condições que assegurem uma maternidade-paternidade livre, consciente e
responsável. 

As questões económicas e sociais

A decisão de interromper uma gravidez é um dilema profundo sobretudo
para a mulher, mas também para o casal. Não é por isso admissível que
alguém com o mínimo de bom senso, visando a exploração dos sentimentos
e das razões alheias, especule sobre os sentimentos e fundamentos que
originam uma decisão desta natureza, através da utilização de imagens
de fetos, exibidas sem qualquer pudor, como se de qualquer marca
dentífrica se tratasse. Tal atitude é inaceitável do ponto de vista
ético, imprópria como argumento em defesa da vida porque assenta na
estigmatização política e social das mulheres e envolve a acusação
subjacente de que lhes falta capacidade para tomar decisões
responsáveis em defesa da vida.
A decisão de interromper uma gravidez não é um acto leviano – é um
último recurso face à impossibilidade de uma maternidade-paternidade
responsável.
A maternidade não é apenas um acto biológico. Dar à luz uma criança,
fazer dela um ser humano completo implica, para o seu desenvolvimento
harmonioso, condições afectivas, psicológicas, económicas e sociais. É
um processo de duração ilimitada, um compromisso para a vida. 
Sobre a responsabilidade da maternidade-paternidade, a Declaração dos
Direitos da Criança, proclamada pela ONU em 1959, refere: «Toda a
criança deve crescer num ambiente de amor, segurança e compreensão. As
crianças devem ser criadas sob o cuidado dos pais, e as mais pequenas
jamais deverão separar-se da mãe, a menos que seja necessário (para bem
da criança)».
Quem pode ter a pretensão de obrigar as mulheres a serem mães, através
da coacção penal de uma lei que criminaliza a interrupção voluntária da
gravidez, quando sobre elas pesa, com especial acuidade, a
responsabilidade da maternidade e do apoio à família? Quando é sobre
elas que se colocam profundas implicações afectivas, sociais e laborais
que, face à incerteza do futuro, condicionam as suas decisões e a
concretização da sua realização enquanto mães? Quando é sobre elas que
recai a dificuldade em conciliar o seu trabalho (imprescindível ao
sustento dos seus) e a vida familiar? Quando se levantam todo o tipo de
obstáculos à sua independência económica e, consequentemente, à sua
capacidade de proporcionar uma educação sustentável e integral aos seus
filhos/filhas? Quando são elas que engrossam as estatísticas do
desemprego, ou que dificilmente recuperam a profissão que foi a sua
primeira escolha?
E as jovens que acabam os seus estudos académicos e não encontram
emprego? E as adolescentes a quem não foi dada a devida preparação para
assumirem a maternidade em plena consciência, como podem pretender
«obrigá-las» a ser mães contra a sua vontade?
É preciso, sem dúvida, dar prioridade à eliminação de todos estes
constrangimentos sociais e laborais. É preciso investir fortemente na
implementação do planeamento familiar e na educação sexual, defendendo
o conjunto dos direitos sexuais e reprodutivos. Mas tudo isto não
dispensa a eliminação da criminalização da mulher que aborta.
A despenalização do aborto, a pedido da mulher até às 10/12 semanas,
implica responsabilidade e respeito pela dignidade da vida dos outros
seres humanos. Ou seja, a responsabilidade da maternidade e paternidade
torna indispensável uma atitude de cidadania, na qual os pais e as
mães, e consequentemente a família, têm um papel fundamental na
formação e educação dos filhos/filhas com vista a uma integração
social, onde sejam respeitados os seus direitos e os deveres
fundamentais.
A defesa da vida em todas as dimensões é uma questão política e social,
reconhecida constitucionalmente, em que o indivíduo é considerado
cidadão/cidadã com direito à educação, à saúde, à habitação, ao
trabalho e à segurança social: «O Estado deve respeitar os direitos e
responsabilidades dos pais e da família alargada na orientação da
criança de uma forma que corresponda ao desenvolvimento das suas
capacidades». E, ainda: «Todas as crianças têm direito inerente à vida,
e o Estado tem obrigação de assegurar a sobrevivência e desenvolvimento
da criança». (Convenção sobre os Direitos da Criança, proclamada pela
ONU em 1989, e ratificada pelo Estado português em 1990).
Na ausência de condições que lhes permitam assumir os seus deveres e a
responsabilidade de assegurar a dignidade de uma vida que a mulher gera
na sua gravidez, as mulheres e os homens que assumindo a maternidade e
a paternidade têm a responsabilidade de garantir as condições mínimas
para acolhimento do novo ser (maternais/paternais, afectivas,
familiares e materiais) e as mulheres que estando sós têm de decidir
por si, deverão ter o direito de optar pelo melhor que a sua
consciência determinar, e em caso de a mulher decidir abortar não deve
ser incriminada por isso.

Uma questão de justiça

A despenalização do aborto, até às 10/12 semanas, a pedido da mulher,
representa também uma questão de justiça. Porque, com a lei actual, ela
é forçada a recorrer ao aborto clandestino, com consequências
incalculáveis para a saúde e a sua própria vida. Dados oficiais referem
que chegam aos hospitais portugueses com problemas de saúde, em
consequência de aborto praticado clandestinamente, uma a três mulheres
por dia. E porque, à custa da saúde das mulheres cresce um negócio
imoral, que passa à margem da lei sem qualquer controlo. Sobre esta
questão, Álvaro Cunhal, na sua obra O Aborto. Causas e Soluções,
refere: «O aborto clandestino é em geral praticado por indivíduos sem
escrúpulos e sem conhecimentos […]. A clandestinidade do aborto
substitui médicos especializados por «profiteurs» sem escrúpulos […]. A
repressão sobre o aborto, longe de diminuir o seu número, não faz mais
do que agravar as suas consequências».
Do ponto de vista ético, uma lei que condena mulheres que recorrem ao
aborto está longe de constituir uma fundamentação jurídica consistente
para o evitar. A este propósito, Peter Singer, na sua obra Ética
Prática, refere: «É um erro presumir que a lei deve sempre impor a
moral. Pode acontecer, como se alega no caso do aborto, que as
tentativas para fazer cumprir um comportamento moralmente correcto
tragam consequências que ninguém deseja e não diminuam o comportamento
reprovável; e também pode acontecer […] que exista uma zona de ética
privada na qual a lei não deve interferir».
Para o autor, a lei deve ter um efeito prático, sancionar infracções e
não impor a moral. A lei não deve interferir nas decisões que são do
foro íntimo de cada um. Isto chama a atenção para a observância do
respeito pelos princípios constitucionais no diz respeito aos direitos
fundamentais do indivíduo e reforça a ideia de que, além das razões
objectivas que devem estar presentes na decisão das mulheres que
recorrem à IVG, razões de natureza pessoal e íntima devem ser
respeitadas por uma lei que despenalize o aborto.
A Assembleia da República dispõe de condições institucionais e
políticas para decidir e resolver esta questão e ao remetê-la para
referendo não vem favorecer a sua resolução. Declinando a legitimidade
constitucional de que está investida pelos cidadãos/cidadãs que a
elegeram, remete a questão para debate público e ideológico,
facilitando os interesses da direita conservadora na manipulação da
opinião pública ao servir-se, de forma desleal, dos sentimentos e
emoções das pessoas. Mas este debate não tem carácter de discussão
pública ou ideológica. É, sim, do foro jurídico-penal e a sua resolução
deveria caber exclusivamente à Assembleia da República. 
O direito de lutar contra esta injustiça é um direito de cidadania.
Temos o direito e o dever de nos indignar contra uma situação injusta,
numa sociedade em que tanto se proclama pelos direitos de igualdade e
de igualdade de oportunidades. Lutamos para que estes direitos sejam
efectivados, para que sejam implementados programas educativos sobre
saúde reprodutiva e educação sexual. Lutamos para que a
maternidade-paternidade seja assumida como um valor social, onde a
decisão de ser pai e mãe seja partilhada por ambos. O desejo de ter
boas condições de vida e proporcionar conforto e segurança à família é
uma aspiração legítima do ser humano.
A luta pela despenalização do IVG não é a liberalização do aborto (como
falsamente os seus opositores pretendem fazer crer), e nenhuma mulher é
obrigada a fazê-lo. Com a nossa luta pelo Sim não queremos impor a
«nossa lei». O que queremos é a igualdade de oportunidades para todas
as mulheres que necessitem de praticá-lo e a introdução de um
instrumento jurídico adequado à realidade do país que respeite a
dignidade das mulheres, que valorize a função social da
maternidade/paternidade e que cumpra a Plataforma de Acção de Pequim:
«As mulheres com gravidezes não desejadas devem ter acesso rápido a
informação fidedigna e a um aconselhamento compreensivo. Quaisquer
medidas ou alterações relacionadas com o aborto no âmbito do sistema de
saúde só poderão ser determinadas, a nível nacional ou local, em
conformidade com o sistema legislativo nacional. Nos casos em que o
aborto não é contrário à lei, deve ser realizado em condições de
segurança. Em todos os casos, as mulheres devem ter acesso a serviços
de qualidade para tratamento de complicações resultantes de aborto.
Devem ser fornecidos com prontidão serviços de aconselhamento
pós-aborto, de educação e de planeamento familiar, os quais ajudarão
também a evitar a repetição dos abortos. Considerar a possibilidade de
rever as leis que prevêem medidas punitivas contra as mulheres que
abortam ilegalmente».
Esta luta é ao mesmo tempo uma mensagem de esperança para todas as
mulheres que se vêem confrontadas com este dilema e que, por vezes na
mais profunda solidão e abandono, recorrem a práticas contrárias ao seu
desejo. Para essas mulheres, onde quer que elas estejam, dizemos que
esta é uma acção de solidariedade na defesa das mais desfavorecidas,
porque são elas as que mais sofrem e é sobre elas que recaem as
condenações.
A defesa de uma lei que despenalize o aborto, a pedido da mulher, até
às 10/12 semanas, envolve pessoas que estão empenhadas em dignificar a
cidadania, em contribuir para a construção de melhor democracia, onde
as relações entre cidadãos/cidadãs, e entre estes e as instituições,
sejam reguladas por princípios de ética responsável e de solidariedade
social. 

Bibliografia

Cunhal, Álvaro, O Aborto. Causas e Soluções, Campo das Letras, Porto, 1997.
Gomes Canotilho, J. J. & Moreira, V. Constituição da República Portuguesa, Coimbra Editora, Coimbra, 1998.
Plataforma de Acção de Pequim (1996-2005), CIDM, 2005.
Singer, Peter, Ética Prática, Gradiva, Lisboa, 2000.
http://www.gddc.pt/direitos-humanos/portugal-dh/portugal-relatorios.html
http://www.dhnet.org.br/direts/sip/onu/doc/pacto1.htm

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