Projecto de Lei

Defesa e valorização das embarcações tradicionais portuguesas

 

Institui um regime especial de defesa e valorização das embarcações tradicionais portuguesas enquanto património cultural nacional

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Exposição de motivos

A tradição naval portuguesa é fruto de uma História nacional caracterizada em grande medida pela relação do povo português com o mar e com a utilização dos rios como estruturas naturais de grande importância no trabalho e no lazer da população ao longo dos tempos.

Existem, um pouco por todo o país e essencialmente nas regiões de interface estuarino ou costeiras, um vasto conjunto de embarcações que ilustra a diversidade das suas formas e usos, reflectindo também as práticas de outrora, quer comerciais, piscatórias, de trabalho ou mesmo de transporte ou lazer. De norte a sul do país, seguindo a linha da costa ocidental e meridional e os seus estuários, verifica-se a persistência de embarcações tradicionais, que têm as suas origens em épocas remotas. No entanto, muitas dessas embarcações preservam ainda hoje as características essenciais do seu passado, servindo como testemunhos históricos de práticas e momentos passados.

Os rabelos, moliceiros, galeões, iates, botes, aiolas, catraios, canoas e fragatas, entre muitas outras tipologias de embarcações tradicionais são alguns dos que ainda navegam nas águas de rios, estuários ou da costa portuguesa. Graças à perseverança e gosto de associações náuticas, de municípios ou de artífices, algumas embarcações de hoje reproduzem na íntegra as características originárias da sua classe.

Por tudo isso, a valorização das embarcações típicas portuguesas deve ser encarada como uma forma de protecção também de um valor histórico. Mas mais do que isso, a valorização e salvaguarda deste património cultural, artesanal e histórico é também uma forma de protecção e promoção de ocupações saudáveis de tempos livres, estímulo que são à participação e fruição colectiva e popular da natureza e dos bens culturais.

No entanto, a preservação dos hábitos relacionados com estas embarcações, das artes artesanais de fabrico, e das embarcações propriamente ditas, pode estar em causa tendo em conta a cada vez maior dificuldade de proceder à sua manutenção, ao seu fabrico, fruto da falta de apoio e do desincentivo involuntário por omissão de programas de apoio e de legislação específica. A prática artesanal de concepção, desenho e fabrico; as formas de fruição cultural; as artes de pesca artesanal e outras práticas associadas a estas embarcações ficam também fragilizadas num quadro de ausência de políticas específicas de apoio.

A aplicação de normas e taxas, a exigência a estes barcos típicos de vistorias e licenciamentos que em nada se diferenciam das embarcações comuns de recreio resulta afinal num obstáculo efectivo para a sua preservação e divulgação. A exigência de cumprimento de normas que são ajustadas a barcos de recreio motorizados, feitos em fibra de vidro, plásticos e carbono, não se coaduna com a preservação das características essenciais de uma embarcação da "Marinha do Tejo", por exemplo. Da mesma forma, as aplicações e usos de uma aiola de Sesimbra não podem ser comparadas com as de uma lancha ou de um semi-rígido.

O papel histórico que desempenharam as embarcações típicas, adequando-se e simultaneamente moldando os hábitos das populações ao longo dos tempos deve ser hoje lembrado como forma de preservar o património histórico-cultural que se lhes associa. Promover e defender esse património é também uma importante forma de valorização do turismo, do lazer e da fruição da popular da natureza, dos rios, estuários e do mar. Além da "Marinha do Tejo", cujo papel histórico na vitória contra o invasor francês em 1810 é sobejamente conhecido, embora nem sempre relembrado, muitas embarcações típicas portuguesas desenrolaram papéis centrais na história nacional, servindo de meio de transporte vital para a economia nacional, ligando populações e moldando a geografia humana e física do país.

A actuação do Estado não pode, no entanto, ser encarada numa perspectiva espartilhada ou orientada num sentido estreito. Pelo contrário, só com a promoção de uma política de intervenção vasta poderá o rumo da desvalorização ser contrariado.

Para que a relação tradicional e saudável entre as populações e as zonas ribeirinhas não só se mantenha como se aprofunde é, no entanto, necessário que para tal exista um estímulo e que cesse a política de afastamento e alheamento. É necessária uma política de acompanhamento aos cursos de água, de regularização das suas margens e de manutenção da sua navegabilidade, nomeadamente através de operações de desassoreamento, revertendo o processo de "morte lenta" a que muitos rios e ribeiras portugueses estão actualmente sujeitos.

É vital uma política de agilização e democratização da gestão das zonas ribeirinhas, através da promoção de uma maior intervenção das autarquias, possibilitando uma planificação urbana integrada nos tecidos e estratégias urbanas de planeamento do território, contribuindo para a coesão nacional e para a fruição democrática dos espaços ribeirinhos.

No mesmo sentido, o Estado não pode demitir-se das suas funções no que toca à garantia da acessibilidade das populações à água, margens de rios e zonas costeiras, criando e planificando estruturas de apoio à náutica de recreio e de apoio à pesca tradicional de subsistência e semi-subsistência.

Só num quadro de valorização da interacção entre populações e cursos de água, de defesa dos valores e recursos naturais e de democratização da sua fruição podem, efectivamente, ser consolidadas políticas de salvaguarda do conjunto dos interesses envolvidos na presente proposta do PCP.

O Projecto de Lei que o Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português ora apresenta visa exactamente estabelecer as regras para a preservação desse valiosíssimo património, valorizando as artes e práticas com ele relacionadas, distinguindo de entre as embarcações aquelas que naturalmente se afirmam pela sua história.

Para que seja possível aos proprietários das embarcações, sejam pessoas singulares ou colectivas, aplicar os princípios da própria Carta de Barcelona, para que o Estado não só reconheça como apoie as actividades, as artes associadas e proteja o valor histórico das embarcações típicas como monumentos, integrando o património marítimo flutuante português.

Nestes termos, ao abrigo das disposições legais e regimentais aplicáveis, os Deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte Projecto de Lei:

Artigo 1.º

Objecto e âmbito

1 - A presente lei institui um regime de defesa e valorização das embarcações tradicionais portuguesas.

2 - São abrangidas pelo regime definido na presente lei as embarcações que constem do elenco de embarcações tradicionais e, cumulativamente,:

a) sejam fabricadas através de processos artesanais;

b) sejam utilizadas para fins recreativos, turísticos, culturais ou para pesca artesanal.

Artigo 2.º

Regime específico de taxas e licenças

1 - As embarcações tradicionais abrangidas pela presente lei beneficiam de um regime específico de licenciamento e de isenção de taxas.

2 - O regime específico de licenciamento previsto no número anterior deve:

a) garantir as condições de segurança e navegabilidade das embarcações preservando a sua natureza tradicional e artesanal;

b) salvaguardar as características próprias das embarcações tradicionais no que se refere aos materiais e técnicas utilizados para a sua construção, manutenção ou restauro, incluindo as pinturas e decorações típicas;

c) adaptar as exigências de apetrechamento às características próprias das embarcações tradicionais.

3 - O regime de isenção de taxas previsto no n.º 1 abrange todas as taxas e emolumentos, incluindo os que se referem ao processo de licenciamento e à actividade das embarcações.

Artigo 3.º

Construção, manutenção ou restauro de embarcações

A construção, manutenção ou restauro de embarcações tradicionais que se destinem a fins recreativos, turísticos, culturais ou à pesca artesanal beneficia de um regime específico de apoio do Estado que consiste, nomeadamente:

a) No apoio económico e no incentivo fiscal ao desenvolvimento de actividades artesanais de construção, manutenção e reparação de embarcações tradicionais em madeira e às entidades que desenvolvam tais actividades, designadamente estaleiros de construção e reparação naval, clubes náuticos ou autarquias locais;

b) Na promoção do ensino e da formação profissional que contemplem planos de acção para a transmissão de saberes e técnicas tradicionais e para o estímulo às actividades profissionais envolvidas na construção, manutenção e restauro das embarcações tradicionais;

c) Na valorização e promoção social de actividades profissionais ligadas à construção e reparação naval artesanais e às demais actividades tradicionais associadas.

Artigo 4.º

Valorização do património cultural das embarcações tradicionais

1 - As entidades que desenvolvam actividades no sentido da preservação e valorização das embarcações tradicionais e das comunidades em que se inserem são apoiadas pelo Estado.

2 - Os apoios previstos no número anterior assumem, entre outras, as seguintes formas:

a) Apoio ao desenvolvimento de projectos de investigação, inventariação e musealização do património cultural material e imaterial das comunidades fluvio-marítimas;

b) Apoio ao desenvolvimento de projectos de parcerias nacionais e internacionais de promoção da cultura fluvio-marítima e de democratização das condições de acesso a essas expressões culturais;

  • c)Apoio ao desenvolvimento de projectos nas áreas de turismo cultural, de educação e sensibilização para o património, de promoção e reforço de identidades culturais e de diversificação da economia relacionados directamente com embarcações tradicionais.

3 - O Estado deve promover o estudo e a investigação sobre as embarcações tradicionais portuguesas, nomeadamente integrando esta matéria como objecto de estudo nos planos curriculares na escolaridade obrigatória.

Artigo 5.º

Regulamentação

1 - O elenco de embarcações previsto no artigo 1.º da presente lei é definido por Portaria do Governo, a publicar no prazo de 60 dias a contar da publicação da presente lei.

2 - O disposto nos artigos 2.º, 3.º e 4.º é objecto de regulamentação pelo Governo nos 90 dias posteriores à publicação da presente lei.

3 - Para efeito da regulamentação prevista nos números anteriores, o Governo procede previamente à audição das associações e instituições ligadas ao sector, bem como dos municípios e freguesias onde se desenvolva actividade de construção, manutenção e restauro de embarcações tradicionais.

Artigo 6.º

Entrada em vigor

A presente lei entra em vigor com a Lei do Orçamento do Estado subsequente à sua aprovação.

Assembleia da República, em 11 de Fevereiro de 2009

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