(Publicado no Diário da República, I Série, n.º 250/2016, 3.º Suplemento, de 30-12-2016)
Exposição de Motivos
Com a publicação do Decreto-Lei n.º 86-D/2016, de 30 de dezembro, o Governo «atribui ao município de Lisboa a assunção plena das atribuições e competências legais no que respeita ao serviço público de transporte coletivo de superfície de passageiros na cidade de Lisboa, transfere a posição contratual detida pelo Estado no Contrato de Concessão de Serviço Público celebrado com a Carris, e transmite a totalidade das ações representativas do capital social da Carris do Estado para o município de Lisboa».
O PCP participou empenhadamente na luta contra a política levada a cabo durante o anterior Governo PSD/CDS-PP, cujas linhas centrais no tocante aos transportes públicos foram a degradação da oferta, o aumento de custos para os utentes e o incremento da exploração dos trabalhadores.
Durante anos, foi imposta uma política destinada a entregar a Carris à exploração dos grandes grupos económicos e a mercantilizar mais um sector de serviços públicos essenciais. Com essa política, entre 2010 e 2014, a oferta da Carris em veículos-quilómetros foi reduzida em 23% (de 41,4 para 31,8 milhões); a frota de autocarros foi reduzida em 18% (de 755 para 619); o número de trabalhadores reduziu-se em 23% (de 2771 para 2141, sendo a redução de tripulantes de 1836 para 1412) e houve um aumento brutal de preços (entre 30 e 100%) que significou um aumento de receitas de 15% (de 78,8 milhões para 90,9 milhões). Esse aumento de receitas é também indissociável da alteração de padrões de mobilidade das populações neste período, traduzida num incremento substancial da compra de bilhetes ocasionais em detrimento dos passes, muito para lá da realidade do turismo, e resultante também dos aumentos de preços dos transportes.
A incessante resistência dos trabalhadores e utentes, entre 2009 e 2015, e a alteração na correlação de forças na Assembleia da República depois das eleições de 4 de outubro de 2015, permitiram travar o processo de privatização em curso, acabar com uma parte significativa dos roubos dirigidos aos trabalhadores da Carris e suas participadas (mas não todos) e criaram as condições para que, também no plano da oferta, da sua fiabilidade e do seu preço, se procedesse a uma mudança profunda de políticas.
No entanto, o que se verificou foi a grave situação sentida pelos utentes até ao presente, e agora a determinação de um processo de municipalização, a que o PCP sempre se opôs e que considera profundamente negativo para o futuro da Carris e do serviço público de transportes na Área Metropolitana de Lisboa.
O PCP é contra a municipalização da Carris, ou seja, contra a transferência da Carris para a posse da Câmara Municipal de Lisboa, por três razões essenciais.
Em primeiro lugar, porque é o Estado Central que tem a capacidade e a responsabilidade de assegurar o financiamento deste serviço público: é o Estado Central que arrecada o grosso dos impostos e o essencial das mais valias potenciadas pelo transporte público. A municipalização da Carris, como está previsto no Decreto-Lei (Artigo 7.º, número 2) acabará por transformar-se numa nova oportunidade para impor taxas, tarifas e impostos aos cidadãos – pelas mais diversas vias, desde o aumento do IMI ao pagamento do estacionamento –, quer aos munícipes de Lisboa quer àqueles que à cidade se deslocam por questões de trabalho, escola, lazer ou outras.
Em segundo lugar, porque nas áreas metropolitanas os transportes devem ter uma resposta metropolitana, e a Carris é um elemento nuclear da rede metropolitana de transportes. A Carris é uma das mais antigas e prestigiadas empresas da Cidade de Lisboa e tem um papel insubstituível no acesso dos lisboetas à mobilidade. Daí, como o PCP sempre defendeu, a Câmara Municipal de Lisboa deve ter um papel mais ativo na empresa, nomeadamente ao nível da rede e da oferta. Mas a Carris não serve apenas a cidade de Lisboa. Serve diretamente outros concelhos, como Almada, Amadora, Loures, Odivelas e Oeiras. Tem até a sua sede em terrenos de outro concelho. E, no quadro da reorganização da oferta que necessariamente ocorrerá em 2019 (quando, por força do Decreto-Lei 35/2015, de 6 de março, todas as concessões às rodoviárias privadas terminarão), deveria mesmo ponderar-se alargar essa oferta. Mas além disso, a Carris é um elemento central da mobilidade metropolitana, já que a maioria das deslocações na região continuam a ter a cidade de Lisboa como destino ou ponto de passagem. Os transportes públicos duma região metropolitana como Lisboa não podem ser desenhados sem ter em conta os municípios, nem podem sê-lo município a município: têm que ser concebidos e geridos numa lógica metropolitana. É por isso que o PCP sempre defendeu, e continua a defender, a criação de verdadeiras Autoridades Metropolitanas de Transportes, que cumpram esse papel, a saber, o de coordenação dos vários modos de transporte, de gestão dos interfaces entre esses vários modos e de interligação desses com toda a área metropolitana – e não somente com uma área municipal. A municipalização da Carris vai, portanto, no sentido errado. Quanto muito, poder-se-ia admitir a regionalização da Carris, no momento em que Portugal começasse a cumprir a sua própria Constituição e fossem criadas as Regiões Administrativas Metropolitanas, diretamente eleitas e com competências e recursos próprios diretamente transferidos do Orçamento do Estado.
Em terceiro lugar, porque é no Sector Empresarial do Estado que os direitos dos trabalhadores da Carris melhor estão garantidos (não esquecendo que o melhor garante dos direitos dos trabalhadores são os próprios trabalhadores, a sua unidade, a sua determinação e a sua luta). As transferências de competências para as autarquias sem os devidos recursos financeiros têm sido um primeiro passo preparador de “inevitáveis” privatizações/concessões e da imposição de um caminho de crescente mercantilização dos serviços públicos, com uma pressão constante para arrancar mais receitas aos utentes e pagar menos aos trabalhadores. A Carris tem estado nos últimos 40 anos no Sector Empresarial do Estado. E os trabalhadores têm sabido construir e defender um quadro de direitos que, apesar de todas as dificuldades, é ímpar no sector rodoviário nacional. Por outro lado, o PCP tem a convicção profunda de que a municipalização da Carris, independentemente da vontade expressa pelos atuais protagonistas do processo, é um passo para a sua futura privatização/concessão.
A oposição de fundo à municipalização da Carris encontra-se espelhada nos pontos anteriores. Mas a forma como o processo está a ser conduzido faz levantar ainda mais sérias objeções.
Desde logo, porque o Decreto-Lei evidencia a preocupação em criar as condições para que a situação da CarrisBus e da CarrisTur se mantenha, sendo artificial este regime de separação de empresas, criadas essencialmente para permitir uma maior exploração dos trabalhadores. Depois porque esta municipalização, feita de forma apressada e enviesada, fica semeada de perigos para o futuro, sem as necessárias salvaguardas para a Carris, os seus trabalhadores e os seus utentes. Por exemplo, o Decreto-Lei estabelece a utilização exclusiva de tarifas intermodais na Carris e no Metro, mas não define a forma de distribuir essas receitas pelos dois operadores, o que agora poderá ser utilizado para financiar a Carris – mas amanhã poderá ser usado para a estrangular financeiramente.
Esta municipalização tem sido acompanhada de um conjunto de promessas, quase sempre anunciadas antes mesmo de aprovadas em qualquer órgão municipal, e que se destinam a valorizar a opção da municipalização, quando nenhuma das medidas anunciadas necessitava, para ser aplicada, de uma Carris municipalizada. Muitas dessas medidas são, naturalmente, de sinal positivo (ou não se destinassem, essencialmente, à promoção desta opção) mas a forma opaca como o processo está a ser conduzido e apresentado reforçam as nossas preocupações com esta municipalização. Os transportes públicos são um elemento fundamental da vida das populações e do país, e não devem nem podem ser tratados de forma menos rigorosa e mais propagandística.
Para citar exemplos concretos: é positiva a ideia de voltar à redução do preço do passe para reformados na cidade, mas o PCP propôs essa medida para todos os transportes públicos em todo o território abrangido pelos passes em causa… e o PSD, PS e CDS-PP chumbaram essa proposta na Assembleia da República no dia 27-10-2016; é interessante a ideia de alargar a gratuitidade até aos 12 anos, mas não faz sentido restringir essa medida à Carris (mesmo na cidade as deslocações são intermodais, incluem o Metro e a CP), e se for alargada ao Metropolitano e à CP, cuja tutela é do Estado Central, não faz sentido restringir a medida a Lisboa; é positiva a ideia do alargamento da oferta, mas a forma como deve ser alargada exige uma discussão séria e ponderada, pelas razões já expostas do carácter fundamental da Carris para a rede metropolitana; é positiva a ideia de contratar mais 220 trabalhadores para a Carris, mas o que é preciso é contratá-los – e não podemos esquecer que o Primeiro-Ministro anunciou em Março de 2016 mais 30 maquinistas para o Metro e ainda não entrou um.
Por outro lado, colocam-se as questões relativas às exceções que este Decreto-lei faz à Lei do Regime do Sector Empresarial Local, exceções de muito duvidosa legalidade e constitucionalidade, quer quando pretendem garantir aos administradores desta empresa municipal a continuidade com os direitos e regalias do Sector Empresarial do Estado ou, mais grave ainda, quando isenta esta operação (e as futuras de fusão, cisão ou alienação) do visto prévio do Tribunal de Contas exigido para operações similares no SEL. Finalmente, temos em conta as questões levantadas pela própria Autoridade da Mobilidade e Transportes, que se queixou publicamente de não lhe ter sido enviada a documentação para a emissão de parecer vinculativo.
Em suma, para além das razões de fundo para uma inequívoca oposição do PCP à municipalização da Carris, a forma como esta municipalização tem sido conduzida faz crescer as nossas preocupações, sendo evidentes os riscos para os utentes, os trabalhadores, e o próprio sistema metropolitano de transportes.
Nestes termos, os Deputados do Grupo Parlamentar do PCP, ao abrigo da alínea c) do artigo 162.º e do artigo 169.º da Constituição, bem como dos artigos 189.º e seguintes do Regimento da Assembleia da República, requerem a Apreciação Parlamentar do Decreto-Lei n.º 86-D/2016, de 30 de dezembro, que «atribui ao município de Lisboa a assunção plena das atribuições e competências legais no que respeita ao serviço público de transporte coletivo de superfície de passageiros na cidade de Lisboa, transfere a posição contratual detida pelo Estado no Contrato de Concessão de Serviço Público celebrado com a Carris, e transmite a totalidade das ações representativas do capital social da Carris do Estado para o município de Lisboa».
Assembleia da República, 27 de janeiro de 2017