Intervenção de

Declaração política sobre a política do Governo na saúde<br />Intervenção do Deputado Bernardino Soares

Senhor Presidente, Senhores Deputados,Tal como se anunciou no Programa de Estabilidade e Crescimento, entregue na União Europeia, a política do Governo na saúde continua a ter como prioridade a criação das melhores condições para os negócios privados. Falava-se no referido programa da necessidade de “libertar recursos produtivos para o sector privado”. É uma orientação que o Governo tem seguido à risca. A atribuição de novos hospitais do Serviço Nacional de Saúde a grupos privados, cujas condições essenciais estão longe de ser conhecidas, apesar de se anunciar o arranque para breve do primeiro concurso, é a primeira preocupação do Governo. Anunciam-se agora mais dois importantes benefícios para os futuros titulares privados destes hospitais: a assumpção da dívida dos hospitais que vão ser substituídos pelo Estado e a possibilidade de utilizar as suas instalações antigas para fins comerciais.Quanto à divida, que independentemente de problemas de gestão, resulta em boa parte da situação de sub financiamento em que há muitos anos vivem os hospitais portugueses, é escandaloso que se proporcionem condições para a futura gestão privada que nunca foram proporcionadas à gestão pública. Ou será que o Governo também vai assumir as dívidas dos hospitais que permanecem públicos para que a gestão beneficie dessa base zero?O que é espantoso é que nem os novos hospitais S.A., cujo capital social seria para utilizar em parte no pagamento das dívidas, puderam lançar mão desse recurso. Até agora, ao que se sabe, esse capital social não foi transferido para os hospitais, continuando as dívidas por pagar. Foi mais uma “manigância” para garantir o cumprimento, pelo menos formal, dos critérios de convergência.É igualmente chocante a possibilidade de os grupos privados utilizarem as instalações antigas dos hospitais para “fins comerciais”. Lembre-se que se trata na maior parte dos casos de valioso património público, muitas vezes até situado em zonas de elevado valor imobiliário e que poderia ser utilizado pelo Serviço Nacional de Saúde. Trata-se da entrega de mais uma fonte de rendimento aos grupos privados.Sabe-se também que a concepção dos novos hospitais será também entregue aos concorrentes privados. Lembre-se que na área da saúde esta concepção significa a elaboração do programa funcional de cada unidade, definindo questões importantes como a capacidade dos serviços e das respostas em cada área dos novos hospitais. É uma função que deveria estar reservada ao Estado e que ao ser entregue aos próprios concorrentes, estará sujeita sobretudo a estritos critérios de rendibilidade e de lucro, que se sobreporão às prioridades de saúde.E assim se vai completando o proteccionismo do governo ao lucro dos privados, agindo o Governo como um verdadeiro representante dos seus interesses.A privatização dos hospitais públicos lesa o interesse público e significará um aumento de gastos com estas unidades e um prejuízo para a prestação de cuidados de saúde. Não se trata de ser profeta da desgraça, mas de verificar que é a este resultado que têm conduzido experiências semelhantes.Basta aliás olharmos para o que se tem passado com o Hospital Amadora Sintra em que o governo, aliás em sintonia com o Grupo Mello, continua a ignorar entre outros o relatório produzido pela Inspecção-Geral de Finanças e a tentar reduzir o caso ao apuramento que vier a ser feito pelo Tribunal Arbitral entretanto criado, o que muito agrada àquele grupo privado.Mas não podem igualmente ser ignoradas as graves consequências do desenvolvimento desta política de privatização de unidades públicas noutros países, nomeadamente no Reino Unido. A experiência britânica mostra que nos esquemas PFI (semelhantes aos que o Governo pretende fazer) a média de aumento do custo real em relação ao inicialmente projectado foi de 72%. Os novos hospitais passaram a ter geralmente menos 20-40% de camas do que aqueles que substituem. Para além disso os custos da negociação destes contratos foram 7 vezes superiores aos da tramitação tradicional. Os próprios encargos do endividamento público são 2 a 4% mais baixos do que o privado. Além disso, os vastos e complexos contratos das PFI’s requerem dispendiosos serviços de consultadoria que representam normalmente 8% dos custos do projecto. Para além da questão política de fundo, continua a não estar à vista o cumprimento das condições básicas para que exista o mínimo de credibilidade e transparência neste processo. Mesmo os requisitos considerados indispensáveis pelo Tribunal de Contas, em estudo de Dezembro de 2002, e pela própria Lei de Enquadramento Orçamental, estão longe de estar cumpridos.Onde estão os indicadores de comparabilidade da gestão pública em que se terá de fundamentar a opção pelo privado, sendo indispensável a prova das suas vantagens; onde estão os estudos de viabilidade financeira; onde estão as condições de defesa do interesse público face à mais do que previsível escassez de concorrentes; onde está a avaliação transparente do impacto orçamental destas privatizações. Ninguém sabe; e contudo o negócio avança.É o Governo que tem de provar que há vantagens no privado, designadamente tendo em conta que lhe está a atribuir benefícios, como a assumpção de dívidas e a utilização dos imóveis libertados que nunca foram atribuídos à gestão pública. Que terá de justificar o recurso ao investimento privado quando sabe que as taxas de mercado são mais altas do que as taxas de crédito público. Que terá de explicar por que entrega nas mãos do sector privado toda a definição das características das infra-estruturas a construir. Que terá de garantir a melhoria dos cuidados de saúde manifestamente em dúvida face às outras experiências.Entretanto, e prosseguindo a sua política de desmantelamento de serviços públicos e de sectores sociais decisivos para a vida dos portugueses, o Governo vai deixando ao abandono os hospitais públicos. Agudiza-se todos os dias a situação financeira dos hospitais públicos, com o aumento das dívidas, a falta de recursos até para necessidades básicas, o constrangimento do crédito junto de importantes fornecedores (caso dos medicamentos), numa verdadeira situação de pré ruptura financeira que cada vez mais afecta a qualidade e a segurança dos cuidados de saúde prestados nestas instituições.Ao mesmo tempo vai claudicando perante os interesses privados, como aconteceu no recentemente assinado novo protocolo com a ANF em que às entradas de leão anunciadas se seguiram saídas de sendeiro, com a aceitação dos interesses fundamentais daquela entidade.O Governo transforma assim o Serviço Nacional de Saúde numa espécie de instituição em saldo, em que os privados levam tudo o que for lucrativo, com chorudas ajudas do Estado e em que a saúde dos portugueses é apenas um incómodo empecilho aos negócios e ao lucro dos interesses privados. É indispensável que o governo recue imediatamente neste escandaloso beneficio dos privados e que defenda o interesse público como é seu dever. Pela nossa parte, cá estaremos para denunciar este ruinoso caminho e para combater a destruição e o saque do Serviço Nacional de Saúde.

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