Intervenção de Odete Santos na Assembleia de República

Declaração Política sobre a "Interrupção voluntária da gravidez"

Na sequência das nossas iniciativas legislativas de 1982 e 1984, que conduziram à lei actual, os Deputados do P.C.P. apresentaram em Junho do corrente ano, um novo Projecto de Lei sobre a Interrupção Voluntária da Gravidez.

Fizemo-lo porque a lei penal restritiva relativamente aos primeiros Projectos do P.C.P. sobre a matéria, manifestou-se totalmente ineficaz para por cobro ao flagelo do aborto clandestino, e daí a necessidade urgente da sua alteração.

Fizemo-lo em cumprimento do nosso programa eleitoral , e dando voz a cientistas, sociólogos, médicos, juristas e a organizações de mulheres, a documentos da própria Comunidade Internacional, como a Resolução do Parlamento Europeu de 1990 que apelava ao fim das perseguições penais contra as mulheres que recorressem à I.V.G.

Mas fizemo-lo fundamentalmente, para dar resposta a um problema dramático e angustiante das mulheres, nomeadamente das mulheres das classes economicamente mais desfavorecidas, privadas do direito a uma maternidade feliz, e que por falta de apoio a essa maternidade se vêem obrigadas á dolorosa decisão de recorrer ao aborto clandestino. Com graves riscos para a sua saúde física e psíquica, e mesmo para a sua vida.

Em qualquer dos momentos da apresentação dos diplomas, a celeuma instalou-se no hemiciclo. E o debate dirá, claramente, por que tal acontece, sempre que se trata de um problema dramático e angustiante do sexo feminino.

Esta última iniciativa do P.C.P. suscitou uma celeuma acrescida. Possuído de um inaudito frenesim referendário, criado pelas suas próprias dificuldades internas, o P.S.D. , desta feita, quer resolvê-las à custa de um referendo sobre problemas do foro íntimo das mulheres, problemas que tocam a própria liberdade de decisão, exercida em condições dramáticas e violentas.

O P.S.D. , diz querer um referendo, para saber se se vai decidir pela possibilidade de alargamento da interrupção voluntária da gravidez. Quer pôr mesmo em referendo a própria ciência médica no que toca ao aborto eugénico. Mas a forma como a questão é colocada, com a expressa advertência do líder do P. S. D., de que está contra o projecto de lei, de que está contra o alargamento, torna claro que o que se pretende é um julgamento moral das mulheres ( e são dezenas de milhares!) que se vêem forçadas a uma difícil e íntima decisão, violentando-se.O que consiste a mais confrontal condenação daqueles que se bastam com a consagração formal do direito à maternidade, lavando as mãos, como Pilatos, das consequências da não efectivação desse direito.

Este referendo,de interesse partidário, o referendo do P.S.D., mais não quer prosseguir senão o objectivo de distrair a opinião pública nacional (como acontece noutras matérias) da evidência de que este Partido, nas matérias mais importantes e decisivas, não tem nem quer assumir posições próprias.

O que o P. S. D. quer afinal é adiar a resolução do grave problema de saúde pública do aborto clandestino. A 2ª causa de morte materna. A causa de graves afecções físicas e psíquicas das mulheres, entre as quais muitas adolescentes.

Estar contra a resolução destes problemas é que é o cúmulo da imoralidade.

O referendo proposto contém em si o efeito perverso de contestação da própria lei existente,uma lei que ainda que tímida representa a assunção pela Assembleia da República do dever de pôr cobro a uma situação de violência sobre as mulheres.

Com a proposta referendária do P.S.D., este Partido manifesta-se incapaz de dar resposta a várias resoluções internacionais, desde a da Conferência Europeia realizada na Georgia em 1990 , até à Declaração da Conferência de Beijing, passando pela da Conferência do Cairo e pela Resolução do Parlamento Europeu de 1990, que consideraram o aborto Clandestino um grave problema de saúde pública a necessitar de resolução.

O P.S.D. vai às conferências internacionais sobre os problemas das mulheres, declara-se solidário com os princípios, para quê ? Para sujeitar as mulheres do seu País a um julgamento moral?

A questão da I.V.G. não é um problema moral.Todos estaremos de acordo, e as mulheres que interrompem a gravidez sentem-no, mais do que ninguém na altura em que tomam decisão tão grave, que o aborto não é um meio de contracepção. E que tem de investir-se no planeamento familiar e na efectivação dos direitos económicos sociais e culturais para uma maternidade/paternidade conscientes.

Mas postos perante o flagelo do aborto clandestino, os deputados que legislam para todas as cidadãs, aqueles que, chamados a decidir sobre a intervenção do direito Penal, possam ainda julgar, erradamente, que este ramo de direito acolhe normas morais, não têm mais do que reler uma parte da decisão subscrita pela maioria de Juízes do Supremo Tribunal dos EUA, tomada em 1992 sobre a interrupção voluntária da gravidez, na decisão que ficou conhecida como Planned Parenthood:

"Alguns de entre nós consideram, a título pessoal, o aborto como oposto aos nossos princípios fundamentais de moralidade, mas isso não pode comandar a nossa decisão. Nós temos a obrigação de definir a liberdade de cada um e não estamos investidos num mandato para fazer prevalecer o nosso próprio Código Moral".

De facto, o que os deputados têm de decidir, é se preferem uma solução como a da lei actual que permite ainda taxas elevadas de aborto clandestino, com todo o seu cortejo de graves consequências para a saúde física e psíquica das mulheres. Se preferem um sistema que torna possível para as mulheres bem situadas economicamente o chamado turismo abortivo, enquanto deixa sem solução os problemas das mulheres de classes desfavorecidas. Se querem uma lei que desprotege o próprio feto com as imprestáveis 16 semanas do aborto eugénico tornando possível, na dúvida sobre as malformações, o aborto de fetos sãos. Ou se são capazes de um debate sério, sem emoções, sobre uma lei que ponha cobro à clandestinidade, que ponha termo à mais vil condenação das mulheres. A condenação à invasão da sua própria liberdade e capacidade de decisão através da ameaça penal.

O direito Penal, apesar das alterações introduzidas em 1984, continua a revelar-se ineficaz para combater o aborto clandestino. A Lei penal não atinge ainda os objectivos que diz visar. Pelo que, apesar dos avanços conseguidos com a lei 6/84, pode continuar a usar-se a respeito da mesma, o que os Professores Figueiredo Dias e Costa Andrade referiam a propósito da anterior lei incriminatória do aborto: esta "para além de funcionar como guarda-nocturno da boa consciência de alguns, acaba por redundar num indesejável desserviço aos valores fundamentais da própria vida humana. "

De facto, senhor Presidente e Senhores Deputados, torna-se necessário legislar por forma a que o direito penal surja legitimado pela sua eficácia, sob pena de , nesta matéria, apesar da lei 6/84, continuarmos a ter um sistema penal falso, altamente selectivo, gerador de desigualdades e discriminações,entre as próprias mulheres, e ainda sustentáculo das condições degradantes e riscos do aborto clandestino. Ineficaz para proteger a promessa de vida que é a vida intra-uterina.

O nosso Projecto de Lei contém dois pontos fundamentais. Propomos que o aborto eugénico, o aborto devido a malformações graves ou doenças graves do feto, possa ser realizado até às 22 semanas.

Esta foi a proposta da Comissão Revisora do Código Penal recusada pelo Governo do P.S.D.

Comissão constituída por consagrados penalistas como os Professores Figueiredo Dias , Costa Andrade e o Conselheiro Sousa Brito do Tribunal Constitucional.

A propósito deste alargamento, proposto pela Comissão Revisora porque, como disse o Professor Figueiredo Dias na audição realizada pela Comissão de Assuntos Constitucionais Direitos Liberdades e Garantias, o estado dos conhecimentos da Medicina impunha o prazo de 22 semanas, a esse propósito disse textualmente o conhecido e destacado Penalista:

" Se se considera que não deve haver interrupção da gravidez por razões eugénicas, esta Câmara tomará essa decisão política; se se considera que deve, então não deve cair no farisaísmo de, permitindo-a, através da limitação do tempo em que é permitido, afastar as hipóteses mais graves."

O P.S.D. recusando a Proposta, assumiu o farisaísmo. Também por isso, não tem qualquer legitimidade política para propor o seu referendo.

No nosso Projecto de Lei propõe-se também que nas primeiras doze semanas o aborto seja feito em estabelecimento hospitalar, a simples pedido da mulher.

Este sistema de prazo que propomos não representa a liberalização do aborto.

Ele terá de fazer-se em estabelecimento hospitalar.

Mas é o sistema que mais facilmente enquadra a I.V.G pedida com base em causas económicas e sociais.

E, sobretudo, é o sistema que mais combaterá o aborto clandestino.

Na verdade, a realidade demonstra que nas primeiras doze semanas, contra as indicações restritivas da actual lei, se recorre ao aborto clandestino, aqui ou no estrangeiro , para as mais bafejadas, apesar da ameaça penal.

Mas então se o sistema penal em vez de prevenir, atinge efeitos perversos como os de provocar os graves riscos do aborto clandestino, então esse sistema tem de retirar-se , aliás em obediência às balizas que lhe são colocadas pelo artigo 18º da Constituição da República.

A nossa proposta contém o Direito Penal nessas balizas. É preciso alterar o sistema penal nesta matéria. Porque é um sistema que ainda assume , apesar de tudo, presunções sociais seculares sobre o lugar da mulher na sociedade.

Na verdade, a lei penal, porque não leva em conta a interrupção voluntária da gravidez por causas económicas e sociais, na base de tantos abortos clandestinos, porque contra a realidade da nossa prática médica adopta quanto ao aborto eugénico um prazo impossível de cumprir, porque desconhece outras realidades dramáticas tratadas no nosso Projecto de Lei, não atinge com os seus meios os fins que diz prosseguir. Nalguma desconexão entre entre aqueles meios e estes fins, pode sempre encontrar-se a ideia que o Estado faz , e que tem dominado o curso da história sobre o papel da mulher. Aquela que tem de sujeitar as suas decisões mais íntimas à violência da lei penal. Aquela que deve suportar todos os fardos, aquela a quem se nega muitas vezes, o direito a uma maternidade feliz e consciente, aquela que deve suportar todos os calvários, mesmo o do aborto clandestino.

O direito comparado, indica-nos, no entanto, que apesar da celeuma que a questão da I.V.G. sempre levanta( porque se trata, afinal de questionar o papel da mulher na sociedade) por toda a parte avança o movimento de descriminalização. É que, como alguém já escreveu:

" A liberdade da mulher está em causa de uma forma única para a condição humana, e assim única para o direito.A mãe que leva uma gravidez a termo está submetida às ansiedades, ás pressões físicas, às dores que só ela é chamada a sofrer. A ideia que o Estado faz, e que dominou o curso da história, do papel da mulher, deve ceder numa larga medida à concepção que a mulher constrói dos seus imperativos espirituais e do seu lugar na sociedade"

É condenável que alguém pretenda utilizar questões tão importantes como as relacionadas com a I.V.G. como um instrumento de guerrilha político-partidária.

Pela parte do P.C.P. continuaremos a debater e a posicionar-nos nesta matéria com a profundidade exigida, com serenidade e com seriedade.

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