Intervenção de

Debate sobre o Estado da Nação -Intervenção de Jerónimo de Sousa na AR

Debate sobre o Estado da Nação

 

Sr. Presidente,

Quase estive tentado a usar — e a abusar — da sua tolerância democrática para fazer uma interpelação sobre a condução dos nossos trabalhos, já que julgávamos que vínhamos aqui debater o estado da Nação, saber como e onde estamos para saber como e para onde vamos. Mas, com a intervenção do Sr. Primeiro-Ministro e, agora, com este esclarecimento complementar(e com a própria intervenção da bancada socialista), creio que incorremos no risco de transformar esta sessão numa auto-elogiosa conferência de imprensa de balanço da acção governamental.

Embalado e contente com as sondagens, que lhe dão uma boa posição, embevecido pelo apoio, estímulo e aplauso dos poderosos e pelas mesuras da «corte» subserviente de analistas, comentadores e assessores, desfrutando da regalada ciumeira do Partido Social Democrata por ver o PS fazer, no Governo, a política que eles não podiam mas gostariam de fazer, confiante que ainda vai rendendo a tese das inevitabilidades, dos sacrifícios necessários, visando a neutralização e o conformismo de muitos portugueses, aqui temos um Primeiro-Ministro a subestimar o tempo, a realidade e os problemas do País e dos portugueses.

E poderia constituir um bom ponto de partida agarrar nas notícias do dia.

Podemos ler, por exemplo, que a economia volta a «arrefecer», que a GM Opel da Azambuja quer tornar irreversível o encerramento sumário da empresa (e lá se vão as suas «endeusadas» décimas de crescimento económico!), que há 1 milhão de portugueses sem médicos de família, isto segundo um jornal de reconhecido mérito, ou ainda que bancos conseguem, «num ano de sacrifícios para todos», diz o Ministro das Finanças…

Aliás, Sr. Ministro das Finanças, deixe-me fazer-lhe a seguinte pergunta: V. Ex.ª acredita mesmo no que disse, «no sacrifício para todos os portugueses»? V. Ex.ª não sente que nos conselhos de administração da banca, dos grandes grupos económicos houve uma gargalhada cínica em relação à sua declaração de que os sacrifícios foram para todos, tendo em conta, por exemplo, que a banca conseguiu, 1600 milhões de euros no ano de 2005, no tempo de sacrifício para todos?!

Um debate sobre o estado da Nação pressupõe saber, de facto, onde estamos e para onde vamos.

Não explicou o Sr. Primeiro-Ministro as causas e razões da estagnação da economia, as causas e razões da existência de 750 000 desempregados, de 1,3 milhões de trabalhadores com vínculo precário, dos milhares de reformados e idosos que pagam os medicamentos a prestações ou nem sequer os compram, do insuportável aumento do custo de vida dessas centenas de milhares de micro, pequenos e médios empresários e agricultores asfixiados pela banca, pelos preços dos combustíveis, da energia, pela falta de apoios prometidos e compromissos assumidos.

Também não falou das razões que levam ao abandono do interior — aliás, o Sr. Primeiro-Ministro nunca mais falou do serrano que tinha nascido numa aldeia… —, tendo em conta as desigualdades regionais que existem hoje num País cada vez mais inclinado para o oceano.

O Sr. Primeiro-Ministro não pode falar desta realidade, e não o pode fazer porque todos estão de acordo, a bancada do PSD e a bancada do CDS-PP, que com esta política, feito o balanço, de facto, há aqui uns beneficiados, uns privilegiados, uns que não fizeram sacrifícios, uns que hoje somam fortuna a fortuna e querem mais em termos da privatização de empresas de serviços públicos e de funções sociais do Estado.

O Sr. Primeiro-Ministro não pode falar desta política, não pode falar desta realidade! E nem sequer o responsabilizamos por tudo o que está mal neste país. Há, de facto, problemas estruturais que são da responsabilidade da política de direita de outros governos, mas o problema é que o senhor, o Partido Socialista e o Governo do PS têm hoje um papel fundamental na execução e concretização de políticas neoliberais.

Transformar o Partido Socialista num elemento de contenção, de amortecedor dos conflitos sociais, levanta problemas a muitos portugueses e portuguesas que, votando no PS, sabem que o Governo está a governar mal. O problema de consciência deles é este: confiam neste PS para mudar mas verificam que, afinal, isso não acontece.

Nesta fase interpelativa, permita-me que lhe coloque uma ou duas questões concretas e uma preocupação de fundo, Sr. Primeiro-Ministro.

Ontem, tivemos a notícia da decisão «férrea» da multinacional GM Opel da Azambuja de encerrar definitivamente a empresa, com todos os dramas, problemas sociais e futuras consequências económicas. E, pelo comunicado do Governo, parece que há uma ideia de surpresa e de aceitação, de conformismo.

E nós perguntamos: nem assim o Governo vai agir na União Europeia? Isto para impedir a impunidade destas empresas que se instalam, exploram, sugam apoios e se deslocalizam quando muito bem entendem.

E não se argumente que esta é uma questão que o Governo não pode resolver e que só a União Europeia o pode fazer, porque pode haver legislação nacional que impeça que isto aconteça!

Não tenha receio de assustar os investidores estrangeiros, porque o bom investimento não tem medo de medidas de fundo que impeçam esta situação. Só os «beduínos», só aqueles que querem aqui montar a «tenda», explorar e depois levantá-la é que podem ter receio de medidas nacionais que impeçam esta situação.

Sr. Primeiro-Ministro, gostaria de colocar-lhe uma outra pergunta em relação à segurança social. Ouvi-o falar com entusiasmo dessa reforma, mas nós entendemos que é uma contra-reforma.

Explique aos portugueses aqui, neste debate, como é possível deixar intocáveis as empresas, não lhes pedindo um esforço mínimo, em particular àquelas que têm grandes lucros, quando as suas medidas prevêem o aumento da idade da reforma e a desvalorização das pensões. Neste sentido, entende isto como uma reforma? Não entende que não é por acaso que o grande capital, as empresas aplaudem esta medida, que deixa, de facto, intocáveis os seus lucros, o valor acrescentado bruto, exigindo aos trabalhadores e aos reformados mais penalização?

Estas medidas não são de um governo de esquerda, não são de um governo que quer resolver os problemas sociais. É por isso que recebe o aplauso dos senhores, dos poderosos e sente esta incapacidade da direita para contestar a sua política, e isto por parte de uma força que devia ser de esquerda.

Não se gabe disso!

No fundamental, acho que está a fazer o «frete» a esta direita social e política que temos no nosso país.

(…)

Sr. Presidente,
Sr. Primeiro-Ministro,
Srs. Membros do Governo,
Sr.as e Srs. Deputados:

A verdadeira situação do País não confirma as previsões do Governo nem tãopouco a imagem meticulosa e ilusoriamente construída de um país no bom caminho a resolver os seus problemas e a andar no sentido do desenvolvimento económico e social.

De facto, a realidade está cada vez mais distante das idílicas encenações de modernidade do Simplex, do PRACE, do Plano Tecnológico e, se há disfarces que momentaneamente possam criar e sustentar um mundo de ilusões, não há discursos de optimismo e peças de propaganda que mudem a dura realidade com que Portugal está confrontado: a realidade da estagnação e da letargia, que se manterá por muito tempo se continuarmos com a mesma política.

Sinal destes tristes tempos é o facto exemplar de o Governo convocar trompetas e fanfarras não porque o PIB está a crescer acima da média europeia, como era necessário, mas para festejar
apenas a subida de umas periclitantes décimas, que ora sobem, ora descem.

Não há razões para sorrir, quando o desemprego atinge a maior cifra dos últimos anos. Não há razões para aplaudir, quando o défice das contas externas continua a agravar-se. Não há razões para celebrar, quando a produção industrial continua a cair. E nem sequer se pode saudar o tão anunciado e encarecido aumento do investimento estrangeiro e os apregoados grandes projectos de investimento de interesse nacional. Ao contrário, o que se vê é o investimento estrangeiro a cair e o perigo de novas deslocalizações com os seus dramas sociais, como a que acabamos de tomar conhecimento da GM/Opel.

Mas há quem aplauda, festeje e celebre estes tristes tempos — a oligarquia dos banqueiros, da direita das negociatas, das chorudas reformas e dos suculentos dividendos.

Para estes, isto nunca esteve tão bem. Mas para milhares de portugueses e para o País a situação é bem outra. Neste «pára, arranca» entre a estagnação e as décimas, o País continua a acentuar o seu declínio e a agravar a sua situação social e estrutural.

É tempo de olhar para as verdadeiras causas da difícil situação que o País atravessa, deixando de tornear, e nalguns casos dissimular, a origem dos males que o assolam.

Em primeiro lugar, eles assentam na política neoliberal e monetarista que privilegia e valoriza o sector financeiro e especulativo em detrimento das actividades produtivas — o que a direita tentou fazer, mas não teve força social para realizar.

Assentam na «financeirização» da economia e na concentração da riqueza, na liquidação das actividades produtivas nacionais, na entrega ao estrangeiro das principais alavancas da economia do País, nos dogmas da concorrência, do menos Estado, da mão invisível, da flexibilidade e do equilíbrio automático.

É esta política que permite e garante a brutal contradição que se exprime na comparação entre o desmesurado crescimento dos lucros da banca em 2005 e as dificuldades crescentes da generalidade das micro, pequenas e médias empresas das diversas áreas económicas, em particular dos sectores produtivos.

Talvez por isso, também estejamos a assistir ao aumento insustentável do endividamento das famílias e das empresas não financeiras.

A economia portuguesa tem sido comandada pelas actividades puramente financeiras e especulativas e pela completa secundarização das actividades produtivas.

O Estado tem-se demitido das suas funções constitucionais no plano económico e social e tem rejeitado qualquer papel de protecção dessas funções e actividades, tal como tem negligenciado o papel positivo das empresas públicas.

Tem posto o acento tónico das políticas no défice orçamental, em detrimento do crescimento económico, quando era necessário precisamente o contrário até para combater depois o défice de forma segura e sustentada.

Assim não vamos lá!

São estas as causas essenciais e não o Estado social, os serviços públicos ou os trabalhadores da Administração Pública, que são hoje alvo, por parte do Governo PS, do pior ataque de todos os tempos.

O que está em curso pela mão do Governo é a concretização da agenda e objectivos do capital financeiro e dos grandes grupos económicos, não se tratando, já e tão-só, de uma política justificada a pretexto de«reformas» mas de uma acção que constitui um verdadeiro programa dirigido contra os direitos dos trabalhadores, os serviços públicos e as funções sociais do Estado.

Programa que o fórum empresarial e neoliberal do Convento do Beato inspirou em muitas das suas medidas.

Programa que se tem traduzido num desbragado ataque aos serviços públicos, a coberto da restrição forçada e absurda da despesa, onde avança o encolhimento geral dos serviços, a sua concentração e afastamento das populações e do território, a sua degradação por falta de meios e que é, em relação à Administração Pública, uma verdadeira «política de terra queimada» para as populações e para os trabalhadores.

Mas esta política não visa apenas diminuir a despesa do Estado, com todas as consequências que daí advêm. Atrás disso vem também a entrega de importantes áreas em quase todos os sectores do Estado ao sector privado. É ver o entusiasmo com que os grupos económicos privados se lançam ao novo mercado que o Governo lhes abre e, na maior parte dos casos, lhes subsidia. É ver os negócios chorudos que se preparam na saúde com a entrega de hospitais e centros de saúde a privados ou das farmácias nos hospitais. É ver na educação a restrição e a desvalorização da escola pública e o avanço dos privados. É ver o avanço da mercantilização da água sob o eufemismo de concessão da exploração.

Os grandes grupos económicos e financeiros, como predadores de luxo, sempre à espera do lombo, deixando o risco e as incertezas para as micro, pequenas e médias empresas.

Assim, continuaremos a ser campeões da acentuação das desigualdades. Continuaremos a ter os senhores do dinheiro nos lugares destacados da revista Fortune, enquanto os mesmos de sempre pagam a factura que se alarga, agora também, com a contra-reforma da segurança social que vem pôr em causa o direito à reforma aos actuais trabalhadores e às gerações futuras, a contínua redução dos seus valores e a sua incerteza no futuro.

O caminho não é reduzir despesas com o corte de direitos mas impulsionar o aumento das receitas, promovendo também o crescimento e o desenvolvimento económico.

Com o forte contributo da política do Governo, podemos dizer que vivemos numa sociedade cada vez mais precária. Uma sociedade com uma crescente precariedade dos rendimentos de quem trabalha ou vive da sua reforma, crescentemente diminuídos ou engolidos pelo galopante aumento do custo de vida. Uma sociedade em que o direito à habitação é cada vez mais precário, seja com a subida das taxas de juro que faz aumentar as prestações de quem tem habitação própria, seja com a aplicação da nova lei das rendas onde os direitos de muitos inquilinos ficarão seriamente comprometidos.

Esta é uma sociedade onde diariamente está a aumentar a precariedade laboral. No nosso país, os trabalhadores com contratos não permanentes eram já, em 2005, 750 000, sendo esta apenas a realidade visível, porque hoje, para além da precariedade protegida pela lei, há um mundo infindável de abusos de figuras contratuais, de trabalho temporário de facto permanente, de trabalho a tempo parcial para esconder diminuições reais de salário, de trabalho ilegal e sem contrato. Um mundo de exploração desenfreada e desumana.

Tal como o temos sublinhado à medida que a ofensiva contra a democracia social e económica se desenvolve, vemos inflectir também num sentido antidemocrático a democracia política e o próprio regime democrático é empobrecido e adulterado com preocupantes restrições das liberdades e garantias dos cidadãos.

Ofensiva que se expressa já nas intenções e nos projectos de revisão das leis eleitorais, na alteração anunciada nas políticas de segurança interna e no chamado pacto de regime para a área da justiça, que PS e PSD se dispõem a viabilizar — ofensiva que leva já os poderosos a afirmarem, com arrogância, que querem rasgar a Constituição e liquidar o regime democrático consagrado na Constituição da República. E é estranho — ou, pelo menos, creio que é significativo — que o Partido Socialista, sempre tão determinado, se cale perante estas vozes que procuram fazer o nosso regime recuar ao antes do 25 de Abril de 1974, rasgando particularmente a Constituição da República Portuguesa.

Tal como são cada vez mais frequentes as acções de limitação de direitos e restrição de liberdades de acção política, de propaganda e de acção sindical, a que se juntam repetidos actos de intimidação junto de dirigentes sindicais e políticos, como, aliás, foi aqui referido pelo meu camarada António Filipe em relação a dois dirigentes do meu partido.

Sr. Presidente,
Srs. Deputados,
Sr. Primeiro-Ministro:

O Governo pretende convencer os portugueses de que as suas políticas são as únicas possíveis, inevitáveis e justas num mundo crescentemente globalizado e determinado pelo poder e a chantagem das grandes multinacionais.

Nem isso é verdade, nem a globalização e o poder das multinacionais podem explicar as opções políticas do Governo.

Certamente que hoje se enfrentam mais dificuldades e o País se confronta com a tripla ameaça do contínuo crescimento dos juros altos, da tendencial revalorização do euro perante a aceitação cúmplice do próprio Governo e do aumento do preço do petróleo, mas não são nem a globalização nem o poder das multinacionais que explicam a inactividade e a ausência de propostas na União Europeia face à chantagem do leilão das deslocalizações, tal como não explicam nem justificam a privatização, por exemplo, da TAP e da ANA.

Não é a globalização nem o poder das multinacionais que obrigam o Governo a ser cúmplice da fuga legal aos impostos dos sectores financeiros, nem tão-pouco a não propor o fim dos offshore.

Eis quatro medidas, de entre muitas mais que nos distinguem e que, na sua concretização, apenas estão dependentes da vontade política de quem governa.

É nossa profunda convicção de que o País não está condenado ao pensamento único, à alternativa dos partidos do Bloco Central, que tem conduzido o País ao atraso e ao aprofundamento das desigualdades económicas e sociais. No verdadeiro interesse dos portugueses é possível realizar uma outra política alternativa.

E talvez inspirado nas permanentes e eruditas citações de poesia nesta Câmara, lembramos aos poderosos e aos mandantes um verso singelo de António Aleixo: «Vós que lá do vosso império/prometeis um mundo novo/cuidado que pode o povo/querer um mundo novo a sério».

 

 

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