Intervenção de Ilda Figueiredo, deputada do PCP ao Parlamento Europeu

Debate “Estratégia da União Europeia 2020”

Áudio

Estamos a realizar este debate num momento particularmente grave em diversos Estados que são membros da União Europeia, como acontece na Grécia e em Portugal, consequência das políticas que têm sido praticadas, o que foi ampliado pela crise financeira internacional para a qual também contribuíram os líderes da UE, com o endeusamento dos mercados, a prioridade dada à livre concorrência, à liberalização do comércio internacional, à livre circulação dos capitais, à financeirização crescente da economia.

De entre os instrumentos políticos mais utilizados nos últimos anos para aprofundar a integração capitalista das economias, para além do Pacto de Estabilidade na zona euro, com os seus critérios irracionais, e das orientações do Banco Central Europeu, destaca-se a chamada Estratégia de Lisboa,  aprovada há dez anos, em Março de 2000, perante uma grande contestação dos trabalhadores numa manifestação promovida pela CGTP, enquanto o Conselho da Primavera decorria. Talvez por isso, os líderes europeus afirmaram que pretendiam atingir o pleno emprego e visavam a erradicação da pobreza. Mas, de facto, como então denunciámos, as políticas que apontavam de flexibilidade laboral e de liberalização de sectores estratégicos e serviços públicos essenciais, só poderiam conduzir a um agravamento da exploração dos trabalhadores, ao aumento do desemprego, da precariedade laboral e da pobreza e exclusão social.

A sua revisão em 2005 acentuou ainda mais o carácter liberal. E, agora, não só temos uma taxa de pobreza muito superior, já que passou de 15% em 2000 para 17% no final de 2008, tendo em conta os dados do Eurostat divulgados no início deste ano, como o desemprego continua a aumentar, enquanto a precariedade e os baixos salários são a realidade que enfrentam a maioria dos jovens e das mulheres que consegue um emprego.

Entretanto, a Comissão Europeia, indiferente a esta situação, e sem retirar as conclusões que se impunham da aplicação da estratégia de Lisboa, apresentou uma outra proposta com o pomposo subtítulo “Estratégia para um crescimento inteligente, sustentável e inclusivo”.

Depois de uma pseudo discussão pública, que decorreu até 15 de Janeiro passado, a Comissão Europeia apresentou a futura Estratégia “Europa 2020” e, embora ainda não esteja aprovada, são preocupantes as informações que resultaram do Conselho da Primavera. A aprovação surgirá no Conselho de Junho, depois de algum debate realizado no Parlamento Europeu, e quando a crise do capitalismo se faz sentir de uma forma muito dura em alguns dos nossos países.

O documento e o debate demonstram que a Comissão Europeia não quis analisar as causas da situação actual, nem retirar as consequências relativamente aos dois eixos fundamentais das políticas que seguiu na aplicação da referida Estratégia de Lisboa – liberalizações de sectores económicos, incluindo serviços, e a flexibilidade laboral, a que depois chamou “flexigurança”. Nem tão pouco refere as lutas importantes dos trabalhadores e outras camadas populares contra as liberalizações e a desregulamentação laboral, como aconteceu com a directiva Bolkestein, a liberalização dos correios e a tentativa de alterar para pior a directiva de organização do tempo de trabalho.

Embora reconheçam no documento que “a crise anulou anos de progresso económico e social e expôs as fragilidades estruturais da economia europeia”, não assumem a sua parte na responsabilidade da crise e esquecem que, há dez anos, lançaram a Estratégia de Lisboa afirmando que, com a sua aplicação, em 2010 teríamos a “economia do conhecimento mais competitiva e avançada do mundo, a caminho do pleno emprego e da inclusão social”. Os líderes da União Europeia teimam ignorar que são co-responsáveis pela maior crise económica e social das últimas décadas, a maior desde que iniciaram o projecto de integração capitalista europeia.

Mas estas políticas facilitaram a acumulação e centralização capitalista, abriram caminho a que os grupos económicos e financeiros aumentassem os seus lucros e tenham, hoje, com desemprego e a pobreza, maiores possibilidades de agravar a exploração através de maiores ataques aos direitos laborais e sociais, intensificando o ritmo de aplicação das medidas incluídas na estratégia Europa 2020, seguindo de perto as recomendações da organização do patronato europeu “ Business Europa” de defesa do aprofundamento da Estratégia de Lisboa.  Como aqui certamente irá ser desenvolvido, em Portugal, do que já se conhece dos lucros do 1º trimestre deste ano, os bancos e grupos económicos continuam com lucros de muitos milhões diários, enquanto o desemprego e as desigualdades sociais não param de aumentar, mesmo em Ano Europeu de Luta Contra a Pobreza.

As consequências das liberalizações e privatizações em sectores estratégicos e em serviços públicos, designadamente nos serviços financeiros, na energia, nos transportes, correios e telecomunicações, a contínua desvalorização do trabalho com a multiplicação da precariedade do emprego, o agravamento do desemprego, ultrapassando já os 23 milhões de desempregados a nível da UE, com destaque para os jovens cuja taxa de desemprego ultrapassa os 23%, o crescimento da pobreza que ameaça mais de 85 milhões de pessoas, demonstram que os beneficiários da referida Estratégia de Lisboa não foram os trabalhadores e as populações, mas sim os grupos económicos e financeiros a quem interessam as liberalizações e a desregulamentação laboral.

Agora, em vez de rever o programa de liberalizações e suspender a aplicação de directivas, designadamente da directiva de liberalização dos serviços, dos correios e outras, o que propõe é continuar todo o processo, insistindo também na “segunda parte da agenda da flexigurança”, anunciando tentativas de alteração da legislação laboral (directiva de tempo de trabalho e destacamento dos trabalhadores), novas tentativas de aumento da idade para obter o direito à reforma, mais ataques à segurança social e maior desregulamentação do trabalho, dos direitos laborais e sociais, mesmo que já tenha sofrido uma significativa derrota, nas vésperas do 1º de Maio, na Comissão do Emprego e Assuntos Sociais, com nova rejeição da proposta de directiva sobre o trabalho no sector dos transportes rodoviários.

Nos cinco grandes objectivos anunciados pela Comissão pode rapidamente perceber-se a diminuição dos seus conteúdos quando se compara com as promessas feitas à dez anos. Já não falam de pleno emprego nem da erradicação da pobreza, mas apenas do emprego de  75% da população em idade activa  e de uma redução de 20 milhões de pobres até 2020.

Quanto à metodologia, a Comissão insiste (e pelos vistos o Conselho da Primavera esteve de acordo) numa “governação económica reforçada”, em que “serão dirigidas aos Estados-Membros recomendações específicas e, em caso de resposta inadequada, poderão ser emitidas advertências”. Assim, propõe que os relatórios da estratégia Europa 2020 e as avaliações do Pacto de Estabilidade e Crescimento sejam elaborados em simultâneo, apesar de continuarem a ser instrumentos distintos.. Aliás, basta ver o PEC português para se perceber bem como o governo de Portugal se sente confortável com este apoio da Comissão Europeia. E o mesmo acontece, como sabemos, noutros lados, com destaque para a Grécia.

Isto significa que, após a entrada em vigor do Tratado de Lisboa, a Comissão Europeia e o patronato europeu consideram que chegou o momento de impor aos Estados-membros, aos trabalhadores e às populações o acelerar do processo de destruição dos direitos sociais e laborais, das conquistas históricas dos trabalhadores e dos povos ao longo do século XX, com a justificação da interdependência, da globalização e da livre concorrência.
Mas sabemos que terão pela frente as lutas dos trabalhadores com o apoio das forças progressistas e revolucionárias, em que a Grécia está a dar um importante exemplo, que daqui saudamos.

Apesar dos graves problemas sociais que se vivem em diversos Estados-membros da União Europeia, com destaque para o desemprego, o trabalho precário e a pobreza, lamentavelmente as respostas do Conselho da Primavera foram sobretudo para a chamada sustentabilidade das finanças públicas, esquecendo a necessidade de medidas para a sustentabilidade social. Mesmo as medidas em torno da Grécia contradizem tudo quanto propagandearam sobre as virtudes do euro e as benesses resultantes de pertencer à zona euro, de se estar no tal “pelotão da frente” de uma moeda forte dos países ricos. Pertencer à zona euro, diziam-nos, era um seguro contra as crises financeiras, evitando o recurso aos empréstimos e às receitas do FMI.

Afinal, bastou a primeira crise a sério para demonstrar que não existe solidariedade na zona euro e que a chamada “coesão económica e social” não passa de uma expressão de mera propaganda em campanhas eleitorais para o Parlamento Europeu, esquecendo que a Alemanha foi e é a grande beneficiária da política de um euro forte, por ser o estado com a economia mais desenvolvida e com maior volume de exportações, enquanto outros, como Portugal viram destruída parte significativa da sua produção em todos os sectores.

Os líderes da União Europeia, sob o comando da Alemanha, com o exemplo do acordo com o governo da Grécia, e, na prática, o seu controlo político, acompanhado da imposição de um retrocesso social de décadas, pondo em causa todos princípios que sempre proclamaram de coesão económica e social, de convergência, de solidariedade e de modelo social europeu, quiseram dar um exemplo. As novas medidas anunciadas vão num sentido idêntico.

Diziam-nos que havia fundos comunitários para apoiar o desenvolvimento de Portugal e evitar que o “peixe grande” comesse o “peixe pequeno”. Mas esses fundos não só foram muito insuficientes, como foram mal aproveitados e, neste momento, correm o risco de nem sequer serem utilizados se não alterarem as regras que obrigam a uma parte de co-financiamento português. O que tende a agravar as divergências, as assimetrias e as desigualdades sociais, não só entre as diversas camadas e classes sociais mais também entre os Estados, pois quem tem dinheiro próprio utilizará os fundos até ao fim (Alemanha, França, etc) e quem não tem não o poderá fazer, sejam estados ou micro e pequenas empresas, por não terem a parte obrigatória para o co-financiamento.

Assim, tal como a Estratégia 2020 defende, não só teremos mais “parcerias público-privadas”, normas e directivas necessárias, incluindo no “repensar dos sistemas educativos e dos mercados de trabalho”, como os orçamentos comunitários e dos Estados-membros estarão cada vez mais ao serviço dos interesses dos grupos económicos e financeiros mais poderosos, para conseguirem uma economia competitiva num quadro de livre concorrência, mesmo que isso signifique a destruição de micro, pequenas e médias empresas dos vários sectores de actividade (industrial, agrícola, pescas e serviços) e maior desemprego. Eles sabem que mais desemprego facilita a mobilidade, o emprego de curta duração, a “flexigurança”, o chamado “emprego independente”, propostas que fazem para conseguirem a desvalorização do trabalho, a maior exploração e os menores direitos em protecção e segurança social.

Afinal, o que pretendem é continuar a abrir caminho a uma maior concentração e centralização capitalistas, através de diversas directivas que facilitem privatizações de sectores estratégicos da economia e a sua desregulamentação (serviços financeiros, energia, transportes e comunicações), ataques a fatias de serviços públicos essenciais que interessam ao capital em áreas como a saúde, segurança social, educação, cultura, justiça e tudo o que possa dar lucro, para o que já contam com a famigerada directiva Bolkestein, e que agora querem aprofundar, designadamente na área da saúde.

Com o Tratado de Lisboa, a Comissão Europeia quer retomar a mesma estratégia neoliberal, e, com o pretexto da crise e da globalização, quer ampliá-la ao comércio internacional e a autênticas políticas neocoloniais, visando eliminar quaisquer impedimentos à livre circulação do capital, para facilitar o acesso dos grupos económicos e financeiros a novos mercados e a maiores lucros à custa da exploração dos trabalhadores e dos povos.      

Pela nossa parte, não restam dúvidas quanto à resposta a tal estratégia. Mais uma vez afirmamos que o que se impõe é uma ruptura com tais políticas. A experiência demonstrou que a nossa denúncia e a luta dos trabalhadores e das populações obrigaram a alguns recuos. É o caminho que continuaremos relativamente a esta estratégia 2020.

Reafirmamos a nossa oposição a estas estratégias e insistimos na necessidade de ruptura com estas políticas. Defendemos uma outra Europa de coesão económica e social, respeitadora dos direitos dos trabalhadores e dos povos, que aposte na produção e no emprego com direitos, que promova serviços públicos de qualidade, que respeite o direito soberanos dos povos a escolherem a sua opção em termos de organização económica, social e política, na defesa da paz e da cooperação com os povos de todo o mundo.

É o caminho do futuro construído com a intervenção das forças progressistas e revolucionárias, com a luta dos trabalhadores e das camadas populares.

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