Debate &#8220;Direitos Sexuais e Reprodutivos &#8211; direitos sociais do nosso tempo&#8221;<br />Intervenção de Odete Santos

AH! Galileu, Galileu O mundo assiste hoje a uma ofensiva sem precedentes contra direitos fundamentais dos seres humanos. Os direitos dos trabalhadores, conquistas duramente conseguidas, como as relativas à organização do horário de trabalho, à estabilidade no emprego, são postas em causa em nome dos interesses dos blocos capitalistas. Em nome da competitividade e da produtividade das empresas. Para o neoliberalismo capitalista as pessoas não contam, devendo submeter-se aos interesses económicos. Os interesses financeiros fundem-se com a governança política. A política coloca-se ao serviço da economia capitalista. O neoliberalismo vai revelando verdadeiramente a sua face, negando os direitos individuais sobre os quais construiu uma falaciosa doutrina política. Apregoando os direitos individuais mas negando-lhes a realização efectiva. Os direitos fundamentais dos seres humanos ficam subordinados aos interesses capitalistas. As próprias desigualdades são justificadas por doutrinadores do neoliberalismo com a célebre teoria das migalhas, que se sintetiza no seguinte: há desigualdades justificadas e morais. Podem tomar-se medidas que tornem os ricos mais ricos, se dessa riqueza resultarem migalhas para a mesa dos pobres. Justificam-se desta forma os níveis insuportáveis de pobreza registados em Relatórios das Nações Unidas, como o Relatório do Desenvolvimento Humano e o Relatório sobre o Estado da População Mundial. No mundo, 1,2 biliões de seres humanos vegetam com menos de 1 dólar por dia e 1,8 biliões só dispõem de 2 dólares por dia. Em Portugal, segundo os dados do Eurostat, 21% dos cidadãos correm o risco de se tornarem pobres; isto é, de passarem a ter um rendimento inferior a 60% do rendimento médio de um adulto. É a taxa mais elevada da União Europeia, apenas também atingida pela Grécia. A política de moderação salarial proposta pelo 1º Ministro, terá como resultado o empobrecimento da população trabalhadora. De facto, formar o salário dos trabalhadores a partir da taxa de inflação média prevista para a União Europeia- 1,6%, quando a taxa em Portugal é de 3,8%, contribuirá para ainda uma maior degradação do poder de compra dos trabalhadores portugueses. As mulheres, no mundo inteiro, e também em Portugal, são as mais afectadas pela pobreza. O que conduz inevitavelmente, à degradação do acesso aos cuidados de saúde, com consequências desastrosas no que toca às mulheres grávidas, às puérperas, e às crianças. Confluindo com estas consequências do agravamento da pobreza, a privatização da saúde, ou a gestão privada de hospitais nas áreas rentáveis, com a consequente degradação dos hospitais públicos para quem se reservam os cuidados de saúde de menor rentabilidade, contribuirá também para degradar a prestação de cuidados de saúde às mulheres, nomeadamente na área dos direitos sexuais e reprodutivos. A privatização ou a gestão privada de serviços de saúde, corresponde, aliás às exigências do neoliberalismo capitalista, quanto ao paulatino aniquilamento das funções sociais do Estado. O Estado para os que dominam o mundo, não deve garantir os direitos sociais, que, segundo eles, devem ser deixados à lógica dos mercados financeiros. Entretanto, exige-se que o Estado intervenha para proteger as empresas, reduzindo o nível de vida dos trabalhadores, tornando-os pobres ou mais pobres. Neste contexto internacional e nacional, de grande ofensiva contra os direitos dos trabalhadores, assiste-se simultaneamente a uma grande ofensiva contra os direitos das mulheres. Mas também contra a investigação científica, contra o progresso, contra o conhecimento.E é isso que procuremos sintetizar, quer a nível internacional, quer a nível nacional.A nível internacionalDominando o mundo, a administração Bush tem vindo a pôr em causa compromissos assumidos no Cairo e em Beijing, intervindo a nível internacional para pôr em causa tais compromissos, conduzindo uma verdadeira guerra contra as mulheres, o que faz também no plano nacional. Com efeito: 1. em Maio de 2002 na Cimeira das Nações Unidas sobre as Crianças, os E.U.A opuseram-se à educação sexual e ao uso de preservativos para combater o HIV 2. a administração Bush reteve 34 milhões de dólares, aprovados pelo Congresso, e destinados ao FNUAP- Fundo das Nações Unidas para a População, destinados a programas de planeamento familiar, de cuidados maternos e de cuidados com as crianças, e também a programas de prevenção da SIDA. 3. A administração Bush retirou o seu apoio à plataforma do Cairo no que diz respeito à proclamação de que todos os casais e indivíduos têm direito a decidir livre e responsavelmente sobre o número de crianças que querem ter e sobre o espaçamento dos nascimentos. 4. A administração Bush suspendeu mais de 200 milhões de dólares para programas destinados a apoiar as mulheres do Afeganistão e a prevenir a Sida. 5. A Administração Bush congelou a remessa de 3 milhões de dólares para a OMS, em resposta às reclamações de organizações ditas pro-vida que se opuseram ao programa de investigação sobre reprodução humana daquela organização. 6. A Administração Bush decidiu incrementar os fundos destinados apenas a programas de educação sexual baseados tão só na abstenção de actividade sexual. 7. Numa Conferência regional ocorrida na Ásia, em Dezembro de 2002, Bush avançou a posição de que a vida de pessoa humana começa logo na concepção. 8. A Câmara dos Representantes dos E.U.A aprovou a Lei sobre as Vítimas de violência ainda não nascidas, que constitui mais um passo para a inversão da histórica decisão do Supremo Tribunal Federal sobre o aborto. no caso Roe versus Wade.Culmina toda esta ofensiva contra as mulheres, a decisão da Administração Bush aprovada já na Câmara dos Representantes, de proibir toda a investigação científica baseada na clonagem terapêutica, apenas permitindo a mesma com linhas de células estaminais embrionárias já existentes. O que quer dizer que os embriões excedentários que posteriormente venham a ser obtidos, não poderão ser utilizados na investigação científica, nem poderão ser obtidos embriões através da clonagem terapêutica.É de salientar que esta investigação científica através de células do blastocisto, se revela de uma inegável importância para a humanidade, dado que doenças incuráveis como a doença de Parkingson, poderão conhecer a cura. Representa tal investigação um enorme progresso no combate ao sofrimento humano. Segundo a lei aprovada na Câmara dos Representantes Americana, os cientistas infractores ficam sujeitos a pesadas penas de prisão. Esta posição retrógrada contra a investigação científica, tem na sua base o mesmo argumento usado no combate à despenalização do aborto: a vida de pessoa humana começa logo com a fecundação .Qualquer acto humano que impeça o produto da concepção de se tornar um embrião, e de nascer é um crime. Assim, a luta das mulheres é indissociável do combate dos cientistas e da humanidade pelo progresso da ciência.A nível europeu e a nível nacionalEm 2001, o Parlamento Europeu rejeitou, em boa hora, o Relatório sobre Genética Humana e outras Novas Tecnologias da Medicina Moderna, que acrescentaria mais um entrave à investigação científica com células estaminais embrionárias. O Relatório exortava à proibição de actividades que utilizassem células estaminais embrionárias ou embriões humanos, quando o embrião tenha sido criado "in vitro" para qualquer fim que não o de induzir uma gravidez. E chegava mesmo a propugnar a adopção por casais estéreis de embriões supranumeràrios. Sendo de salientar que para os autores do Relatório e para a minoria que votou a favor, até as posições de George W Bush deviam influenciar a aprovação do documento , pois na fundamentação destaca-se que o Presidente americano apenas tinha autorizado a utilização de Fundos Federais para a investigação em células estaminais adultas e numa série de linhas celulares obtidas a partir de embriões supranumeràrios jà utilizados em laboratório. Este Relatório não só foi rejeitado, como viria a ser seguido de um outro relativo à despenalização da interrupção voluntária da gravidez, no qual se fazia um apelo a que os Estados da União Europeia não perseguissem criminalmente as mulheres. A aprovação deste Relatório foi uma vitória para as Mulheres.Contudo, a ofensiva da direita no Parlamento Europeu não desarmou. Já neste ano, um Grupo de Deputados entre os quais os eleitos pelo PSD, questionaram o Comissário Nielsen sobre a atribuição de Fundos da União Europeia à IPPF( Internacional Planned Parenthood Federation) e à organização internacional Mary Stoppes, considerando tais deputados que tais organizações eram pro-abortistas e não deveriam beneficiar dos fundos europeus. Ontem mesmo ( dia 27 de Junho) no Conselho da Europa foi discutida uma Resolução apresentada pelo deputado de Malta, e também subscrita pelo PSD, na qual se incita os governos europeus a instituir uma moratória à investigação científica com células estaminais embrionárias. Na exposição de motivos que antecede a proposta de resolução, e que tem 56 parágrafos, 24 são dedicados à questão do começo da vida, insistindo o Relator na afirmação de que a vida começa com a concepção; 6 parágrafos dizem respeito à magna questão de saber quando é que o embrião humano adquire uma alma, 25 parágrafos referem-se em especial à autoridade da teologia católica acerca das noções sobre vida, alma e lei natural; 2 parágrafos condenam o aborto. Citando, abundantemente o Vaticano, a Congregação para a doutrina da Fé, o Cardeal Ratzinger, S. Tomás d´Aquino, encíclicas papais, o Relatório tem apenas uma única finalidade: afirmar que a pessoa humana começa com a concepção, e que desde esse momento o produto dessa concepção goza de direitos como os de qualquer pessoa humana. Em Portugal, a política deste Governo tem sido a de privilegiar os apoios aos movimentos pro-vida que se opuseram á despenalização do aborto. A política defendida para a educação sexual nas escolas, é muito semelhante à propugnada nos E.U.A Relativamente à investigação científica correm-se sérios riscos de que os cientistas portugueses venham a ser alvo de proibições muito semelhantes às impostas nos E.U.A Com efeito, um dos membros do Conselho da Ética para as ciências da Vida, muito conhecido pelas suas posições retrógradas, foi encarregado de apresentar um Livro Branco sobre a matéria. E não se espera dele outra coisa senão a afirmação das posições da Conferência episcopal a que pertence: a afirmação de que a vida de pessoa humana começa com a concepção. Cinco anos após o referendo do aborto, referendo que foi imposto às mulheres pela traição de dirigentes do Partido Socialista, são piores as condições políticas em que se desenha o quadro das nossas reivindicações de mulheres. E em que se desenha o quadro destinado à investigação científica. Porque temos uma direita no poder- uma direita que se perfila nos piores modelos da direita- totalmente enfeudada a posições retrógradas relativamente às matérias em questão. Na Assembleia da República foi aprovada uma Resolução decidindo a realização de um Estudo sobre a realidade do aborto em Portugal. Mas os Estudos existem. Como o constante da Revista Portuguesa de Saúde Pública. Desse Estudo, que deveria estar pronto até finais do ano passado, nem rasto. Os factos demonstram que a Resolução era um faz de conta. A Assembleia disse: Faz de conta que estamos a fazer qualquer coisa pelas mulheres. Mas de facto, nada se está a fazer. E continua o sofrimento das mulheres, nomeadamente das mulheres pobres que abortam nas situações mais humilhantes. É esta realidade dramática que tem de continuar a conduzir a luta. Não perfilhamos as posições neo-liberais que fazem do direito ao corpo o núcleo- central da defesa do aborto. São as dramáticas condições sociais das mulheres, e os graves problemas de saúde pública daí resultantes que estão no cerne das nossas posições. O Estado tem de ser laico. Não pode impor a toda a sociedade, concepções religiosas, morais ou filosóficas sobre as quais não há consenso. Porque aos que invocam a doutrina da Fé para afirmar que a vida de pessoa humana começa com a concepção respondem outros que não há provas científicas de tal facto. No dia 4 de Março do ano passado, 16 cientistas italianos, alguns dos quais católicos, publicaram no Corriere della Sera uma Declaração, onde aos argumentos dos que afirmam que a vida humana é um contínuo e que se inicia na concepção, contrapuseram que “a questão não está na afirmação de que a vida humana é um contínuo, facto que já há muito tempo está adquirido. Diversa é a questão acerca da vida do indivíduo humano.” E acrescentam: “Como pode considerar-se o produto da concepção como um ser humano em desenvolvimento se:1) são tantas as anomalias do genoma incompatíveis com a vida, no primeiro estádio de desenvolvimento, que se verifica nesse estádio uma selecção massiva que determina a paragem do processo de formação do indivíduo em mais de 80% dos casos; 2)a individualidade biológica do novo indivíduo não se forma instantaneamente no acto de fecundação. A individualidade da pessoa humana, segundo alguns cientistas, só começará com a implantação do blastocisto no útero. 3)os aspectos que mais caracterizam e qualificam a pessoa humana- as faculdades cognitivas e comunicativas- não são determinadas apenas pelo genoma mas por uma interacção genoma-ambiente. Pensar que a pessoa depende unicamente do genoma, significaria perfilhar uma espécie de determinismo biológico que não encontram qualquer apoio nos conhecimentos disponíveis. “ Não é de somenos, a confluência da luta das mulheres com a luta pelo progresso científico. Os seres humanos afectados por doenças incuráveis desejam seriamente o avanço da investigação científica com células estaminais. Embrionárias. Ainda que tais pessoas sejam, por vezes, de direita. Como acontece com Nancy Reagan. Nesta luta, Eva assume-se, de novo, como impulsionadora do progresso e do conhecimento científico. E aos que querem um retrocesso da humanidade em todos os campos, apetece dizer: Deixai estar Galileu.

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