Intervenção de

Critica à política governamental para a área da justiça e despedida da sua actividade enquanto deputada - Intervenção de Odete Santos na AR

Declaração política de critica à política governamental para a área da justiça e, aproveitando a oportunidade no dia em que cessa funções como Deputada, de exortação a todos os Deputados a lutarem por essa causa

 

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

Vivemos tantos anos sob a ameaça de um sebastianismo que se mostrava como um salvador do povo, que não nos podemos espantar quando, por detrás de uma ou de outra política, encontramos como fio condutor a crença de que o povo continua passivamente à espera dessa «manhã de nevoeiro» que lhe vai trazer o salvador, a pessoa que vai meter na ordem aquelas instituições que exercem um mandato constitucional de defesa dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

Estou a referir-me, como é óbvio, à área da Justiça, relativamente à qual, pelos problemas com que tem sido confrontada, nascidos muitas vezes de engenharias cirúrgicas, numa cirurgia trapalhona, como aconteceu, por exemplo, com a reforma da acção executiva, e também da judicialização da crise social, foi, de algum modo, fácil assacar culpas aos profissionais do foro. Muitos terão acreditado que os magistrados, durante três meses por ano, perdiam a chave do seu tribunal num qualquer paraíso de férias e outros terão acreditado que os tribunais obstruíam a acção do Executivo pelos «privilégios» de que usufruíam, e opunham-se a uma política igualitária.

Hoje, uma ou outra voz, cada vez mais isolada, neste ou naquele periódico, continua a mostrar saudosismo e a pugnar por uma magistratura amorfa, que não obstaculize o poder executivo. Esta é, de resto, uma posição consonante com a globalização neoliberal que, querendo um Estado amputado de funções sociais e mesmo dos seus poderes de soberania, sabe que é incompatível com os seus objectivos a independência do poder judicial, a autonomia do Ministério Público.

Mas se, de início, ainda foi possível ludibriar alguns que sentem que a justiça lhes tem sido denegada, os constantes atropelos aos direitos, repetidamente apresentados como privilégios, determinaram uma crescente judicialização da crise social. É assim que, confiando na independência do poder judicial, aos tribunais se recorre para que se ponha termo à co-incineração, para que se suspenda o encerramento de maternidades, para que se suspenda o encerramento de urgências hospitalares e para que se pare com a lesão dos direitos dos funcionários da Administração Pública, vítimas do famoso PRACE, que prossegue, sistematicamente, uma política homicida contra o Estado, em nome de políticas neoliberais.

A isto corresponderá, como é óbvio, um aumento de pendências processuais, que não estaria, em princípio, no horizonte do Ministério da Justiça. Enquanto tudo isto se tem passado, os responsáveis pela política da justiça, dilataram no tempo a alteração do diploma sobre o apoio jurídico e judiciário, que nem sequer mereceu honras de ser incluído no acordo entre os dois maiores partidos, vedando a muitos cidadãos de fracos recursos, nomeadamente nos conflitos laborais, o acesso aos tribunais.

Prometida, já há mais de dois anos, a alteração de uma lei, com uma negra experiência de aplicação, pois vedou a cidadania aos mais carenciados, só agora veio o Governo apresentar uma alteração à mesma, e, ao que parece, porque, em sede de fiscalização concreta de constitucionalidade, o Tribunal Constitucional, em Janeiro de 2007, julgou inconstitucional o anexo da Lei n.º 34/2004 e os artigos 6.º a 10.º da Portaria n.º 1085-A/84, relativos ao rendimento relevante.

Uma análise, ainda que sumária, da proposta de lei, recentemente entregue na Assembleia, revela que o Governo foi insensível aos argumentos vazados no Acórdão do Tribunal Constitucional, mostrando, aqui e além, o seu objectivo de poupar na despesa pública, ainda que isso signifique para muitos cidadãos a amputação de um direito fundamental, o direito de acesso ao Direito e aos tribunais; ainda que os números revelem, de acordo com um relatório do Conselho da Europa, utilizado, por sua vez, num recente relatório da auditoria do Tribunal de Contas - e convido-vos a ler este relatório - aos sistemas de gestão e controlo do financiamento do acesso ao Direito e aos tribunais, que, em Portugal, o valor per capita desse encargo com o apoio jurídico e judiciário - um encargo directo para o Estado - apenas alcançava 32% da média dos países europeus; ainda que o relatório do Tribunal de Contas revele, relativamente aos anos de 2003 a 2005 - já também neste Governo -, que os dinheiros utilizados foram mal geridos e foram geridos com falta de transparência; e ainda que o relatório mostre que o Estado não organizou, como devia, o sistema de acesso ao Direito e aos tribunais, dando razão às propostas do PCP nessa matéria.

Mas, enquanto o cidadão de parcos recursos é praticamente abandonado à sua sorte, mesmo na nova proposta de lei, o Governo acautela-se perante a eventualidade de necessitar de uma intervenção forte e «musculada» na área da prevenção e investigação criminal.

E aqui também não é difícil canalizar o descontentamento dos cidadãos, face à insegurança e à criminalidade, contra os tribunais, tanto mais que, com a lei-quadro da política criminal, o Governo criou a aparência de dotar o Ministério Público com os instrumentos adequados ao combate à criminalidade.

Mas o anteprojecto da lei da política criminal, já duramente criticado pelo Conselho Superior do Ministério Público, prova que a mesma abre as portas a uma outra leitura - sempre que tal se revelar necessário para o Governo - do Estatuto de Autonomia do Ministério Público, através de orientações concretas para o Ministério Público, dimanadas do Procurador-Geral da República, mesmo em sede de alegações orais em julgamento - pasme-se! Aí temos a possibilidade de entorses àquela autonomia, condicionando-se, dessa forma, a própria independência da magistratura judicial.

Se compaginarmos as soluções do esboço de lei, com o que tem sido anunciado quanto à projectada reforma do sistema de segurança interna, verificamos que se adensam as ameaças. A tentação de comandar a acção concreta do Ministério Público, do Procurador-Geral da República e, por seu intermédio, dos juízes é tão forte que está projectada a criação de um órgão de coordenação da investigação criminal integrado por dois ministros, presidido pelo Primeiro-Ministro, colocando no mesmo plano o Procurador-Geral da República e os chefes de polícia!!...

As soluções que espreitam na nuvem sebastianista não respeitam o figurino constitucional.

Sr. Presidente, agora é a parte solene!

Mas chegou a altura - e tenho isto aqui escrito - de pôr termo a esta intervenção e, consequentemente, a uma actividade política, que não de profissão, de mais de 26 anos. Já sinto, por sobre o meu ombro, o olhar vigilante do Sr. Presidente, sempre atento aos papéis que daqui vamos desfolhando ou ao improviso que se desenrola construindo uma frase, sempre «a última frase à Saramago» - como dizia, com uma fina ironia, o Presidente Dr. Almeida Santos -, ou sempre uma última frase, que ficava por vezes suspensa e entupida na garganta pelo rigoroso cumprimento dos acordos regimentais por parte do Presidente Mota Amaral.

Se vou ter saudades deste trabalho, Sr. Deputado Manuel Alegre, mesmo dos violentos debates em que me vi envolvida não raras vezes? As áreas que ocuparam a minha actividade - os direitos das mulheres, ainda há pouco referidos, os direitos dos trabalhadores e a justiça - são aquelas que suscitam debates apaixonados e acesos. É claro que vou sentir saudades, sobretudo da aprendizagem que iniciei no já remoto mês de Novembro de 1980!! E não hei-de chorar a pensar na minha juventude nessa época!

Mas tenho também saudades do futuro, para usar uma expressão de um cientista, que foi levada para a poesia por José Gomes Ferreira e divulgada na música de Os Trovante e na voz de Luís Represas. As saudades do futuro nascem da necessidade de transformar o mundo e na antevisão desse mundo futuro a partir das realidades que conhecemos, das utopias de hoje, que serão as realidades de amanhã.

E seria bem pobre a intervenção humana nessa transformação, se ela se limitasse à política institucional.

Um vastíssimo rio de intervenção política corre lá fora, nas horas empolgadas de vitórias, como aconteceu na luta pela despenalização do aborto, mas também nas horas amargas, que, como disse António Aleixo, nos dão lições de filosofia. Melhor do que eu também o diria o nosso poeta que levou a canção para a praça...!

Por isso, esta é uma despedida que o não é; é um até sempre, mesmo que em barricadas opostas, e estaremos em barricadas opostas, com certeza.

Permitam-me que, agora sim, a terminar, me dirija de uma forma especial ao meu grupo parlamentar, ao meu partido, a quem devo os meus mandatos e a aprendizagem de mais de 26 anos: até amanhã, Camaradas!!

Aplausos gerais, de pé.

(...)

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

Em primeiro lugar, gostaria de esclarecer que só fiz referências pessoais a pessoas que foram Presidentes da Assembleia e a um poeta, o Manuel Alegre, porque nunca mais me esqueço do dia, durante o fascismo, em que li para o meu pai e para a minha mãe um notável prefácio de um livro que fala da sua mãe e do hábito que ela tinha, salvo erro no dia dos seus anos, de lhe oferecer umas rosas. E devo dizer que comecei a chorar enquanto estava a ler aquilo. Os tempos eram outros... De facto, vivi muitos dos meus melhores anos nos tempos do fascismo.

Não fiz mais referências pessoais, mas não se considerem excluídos pelo facto de não se terem revisto na intervenção que fiz. Com certeza estão lá. E estão quando falo da aprendizagem que aqui fiz, porque todos agradeceram o meu contributo, mas eu tenho dito sempre que, desde que para aqui entrei, trazendo apenas a tarimba de uma advogada de província, portanto, com um horizonte limitadíssimo, aprendi muitíssimo no mundo do Direito e, de facto, enriqueci-me - não monetariamente, como devem compreender... É melhor esclarecer isto, porque senão depois, lá fora, começam a dizer que saio daqui carregada de ouro...!!

Mas enriqueci os meus conhecimentos, criei mais neurónios, mais sinapses de neurónios, portanto, criei outras possibilidades de interpretar a vida. Queria que isto ficasse muito marcado e que todos estão lá, naquela intervenção.

Propositadamente, não fiz apenas uma intervenção de despedida - aliás, nem queria fazê-la, devo dizê-lo, e tenho testemunhas disso no meu grupo parlamentar -, mas resolvi trazer aqui um problema, não como uma antecipação de um debate em que já não vou estar mas porque é um tema que sempre me interessou. Estive no congresso do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público, onde temas deste género foram muito bem tratados. Foi por isso que resolvi optar por este estilo de intervenção, porque sair daqui, sair deste Parlamento, é uma coisa natural. É tão natural como entrar e sair em qualquer altura...

Num outro dia, achei graça a um Sr. Deputado do Partido Socialista - peço desculpa por não saber o nome mas a minha cabeça já não dá para tanto... - porque, quando eu estava a falar de trabalho temporário, ele disse qualquer coisa, resmungou, não sei o que foi, ao que respondi: «Ah, não acha? Se tivesse trabalho temporário...» e ele começou a dizer «Mas eu tenho, pois este é um trabalho temporário ».

(O Sr. Ricardo Gonçalves (PS): - Fui eu!)

Foi o Sr. Deputado, sim senhor.

Mas este é bom que o seja... E é trabalho temporário.

Agradeço muito as vossas palavras. Detesto chorar, devo dizer, porque acho que é um sinal de fraqueza terrível. Portanto, vou resistir, apesar do que digam para aí. Vou resistir.

Só quero esclarecer o Sr. Ministro dos Assuntos Parlamentares, porque não estava a ver-me: é que, quando falei nas «barricadas opostas», olhei expressamente para a direita, não olhei para o Partido Socialista! Não olhei para a bancada do PS, olhei, sim, para a bancada da direita.

Mas, Sr. Deputado Alberto Martins, às vezes, temos estado em barricadas opostas. E, Sr. Deputado, ainda temos umas contas a ajustar por uma provocação que me dirigiu numa das portas de entrada do Hemiciclo. Ainda vamos ajustar essas contas! Aliás, ajustamos já! Sabe como é que respondo? Acha que já chegou ao fim da História, como o outro dizia?

Não chegámos ao fim da História.

Tenho muita inveja dos Srs. Deputados que falaram e que já cá me encontraram. Sabem porque é que tenho inveja? Porque são muito mais novos do que eu, portanto, ainda têm um amplo campo de trabalho aqui. Eu vou ter lá fora, mas também já não é uma perspectiva muito grande. Isto é assim! O caminho vai-se estreitando, e é natural e normal.

Mas eu conheci também aqui o pai do Sr. Deputado Montalvão Machado, com quem tive o grande prazer de trabalhar. Conheci o filho, não conheci o neto e esse, se calhar, já não conhecerei. Mas, Sr. Deputado Montalvão Machado, agradeço as suas palavras, bem como as do Sr. Deputado Nuno Magalhães, e desejo-lhes que empreguem a vossa juventude a bem do povo. É claro que não acredito...

Isso é mais ali para o Deputado Nuno Magalhães, porque na área da justiça e dos tribunais eu e o Sr. Deputado Montalvão Machado temos muitos pontos em comum. Ainda pertence ao Conselho de Acompanhamento dos Julgados de Paz, ou já não?

Mas eu vou continuar lá e podemos vir a encontrar-nos lá. Até já fui convocada para uma reunião, amanhã, às 10 horas e 30 minutos.

Veja lá que queria descansar um bocadinho e não posso!...

Faço gosto em registar que a lealdade que sempre usei no debate parlamentar também a aprendi na advocacia em Setúbal, uma grande lealdade. Penso que o Sr. Dr. Juiz... aliás, aqui não é juiz mas Deputado Fernando Negrão há-de reconhecer que é verdade que entre os advogados mais antigos da Comarca de Setúbal sempre houve uma grande lealdade.

E eu isso já trazia da minha actividade profissional.

Gostava de ter tido a possibilidade... Fui para Direito, porque era a maneira de... Depois, não gostei, mas como fui passando todos os anos e tinha pena de inutilizar um ano e de mudar de curso lá o fui tirando, com grande esforço. E hoje, não estou arrependida, porque é uma coisa maravilhosa.

Mas devo dizer que, quando tiver tempo - pode ser que tenha proximamente! -, vou comprar a Odisseia.

Só a conheço daqueles resumos que havia antes e que o meu pai me comprou para eu ler aquela história.

O Sr. Ministro usou imagens extraordinárias de uma grande poesia e de um grande significado. Só queria que essa poesia fosse utilizada em prol dos interesses do povo, que as palavras do Governo nos Diários da República também fossem «palavras com asas». No entanto, acho que nem sempre são e aí é que estamos separados.

A palavra barricada acha que é feia? Não é! Há lá coisa mais bonita do que ir ler a História: as barricadas da Comuna de Paris, a barricada defendida pelas mulheres em Paris?! Não é nada feia.

Não, ali era a Louise Michelle, da Comuna de Paris. La Pasionaria é outra, mas não me referia a essa, porque estava precisamente a lembrar-me daquela belíssima canção Le temps dês cerises - o tempo das cerejas.

E, como vou ter de terminar, porque penso que foram momentos que, ao fim ao cabo, acabaram, se calhar, por revelar certas coisas acerca da maneira de ser de algumas pessoas, queria fazê-lo, referindo que não tenho essa cultura das literaturas clássicas, mas li uma tragédia numa tradução para português, na Biblioteca Cosmos, dirigida então pelo saudoso Bento de Jesus Caraça, que era Prometeu Agrilhoado.

A certa altura, Prometeu diz mais ou menos isto «eu sei que virá um dia em que humilde Zeus será, por mais soberbo que tenha o coração»!

Acho estas palavras admiráveis, porque justificam lutas por causas e lutas incessantes até ao fim da História, até ao fim do universo. Só nessa altura é que haverá o fim da História...!.

É esta a luta que sempre me encantou, mesmo aquando da década de 60 - que, parece, agora é muito mal vista por certas pessoas... Mas eu sou de outra, sou de 62, não sou da sua, Sr. Deputado Alberto Martins...

Mas já que o Sr. Deputado parafraseou Jorge Palma, terminaria dizendo que, quanto a mim, em relação à intervenção política, posso cantar (canto muito mal) uma letra dele: «Enquanto houver estrada para andar, eu vou continuar»!

Aplausos gerais, de pé.

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