Intervenção de

Conta Geral do Estado de 2002 - Intervenção de Bernardino Soares

Sr.ª Presidente,

Srs. Deputados:

A Conta Geral do Estado que hoje analisamos é sui generis , porque é relativa a um ano dividido por dois governos, um ano em que foi apresentado um Orçamento rectificativo pelo meio que alterou factores fundamentais do Orçamento do Estado inicial e em que, na parte que coube ao Governo PSD/CDS-PP, houve uma obsessão em inflacionar o défice, pelo menos formalmente, em cortar na despesa pública, em corrigir uma situação, que de facto existia, de sobreavaliação das receitas e de desorçamentação de algumas despesas, mas recaindo este Governo nalguns dos mesmos erros que criticava ao governo anterior.

É verdade também que a Conta Geral do Estado de 2002 que hoje analisamos se refere a um ano de uma política de incentivo à crise, a um ano de corte no investimento público, de aumento do imposto sobre o valor acrescentado, de imposição de cortes e de dramatização do cenário económico e orçamental para justificar as medidas gravosas que depois vieram a ser tomadas, não sem se manterem todos os privilégios, designadamente em relação à não tributação das mais-valias e outros benefícios fiscais, que se mantiveram intactos, apesar da crise invocada e, de facto, incentivada por este Governo, que já foi responsável por boa parte do ano 2002.

De facto, o Tribunal Constitucional volta a apresentar algumas das críticas que tem feito em pareceres relativos a várias Contas, designadamente sobre informação insuficiente, informação em falta, ou tardia, ou hermética, ou com pouca fiabilidade em muitos dos seus elementos, com destaque para o carácter provisório das contas da segurança social, o que é amplamente referido pelo Tribunal de Contas, assumindo este Tribunal uma posição de reserva sobre o orçamento da receita e de crítica à falta de registo da despesa.

De facto, também se verificam, apesar de, na altura e posteriormente, terem sido sucessivamente negados pelo Governo, fenómenos de assunção de encargos sem dotação e de desorçamentação.

Aqui temos a comprovação da passagem de dívidas contraídas em 2002 para 2003, no valor de 112 milhões de euros, que, aliás, levaram também — e estão ligadas — aos congelamentos que o Ministério das Finanças impôs a vários sectores da Administração Pública e que eram aqui, na Assembleia, sucessivamente negados, quer pelos então membros do Governo, quer pelos Deputados da maioria. Quando dizíamos que estavam a ser dadas orientações para que as escolas não pudessem comprar bens e serviços indispensáveis ao seu funcionamento, para que pusessem em causa alguns pagamentos, para que, no sector da saúde, horas extraordinárias e outros pagamentos ao pessoal fossem postos em causa, especialmente no final de 2002, o que nos respondiam era que não era verdade e que não havia qualquer orientação neste sentido.

Ora, o parecer do Tribunal de Contas vem comprovar que havia essa orientação e que, de facto, o Governo impediu o funcionamento normal de muitos dos serviços públicos, com sérios prejuízos para aquilo que fazem e para os cidadãos que deles dependem.

Estes congelamentos e a passagem das dívidas para o ano seguinte, certamente, motivaram a existência de juros de mora, cujo quantitativo não sabemos, e configuram uma situação grave. Aliás, no Orçamento rectificativo, agora apresentado pelo Governo, pelo Ministério das Finanças, há ainda um pagamento de dívidas de anos anteriores. É preciso que seja especificado pelo Governo a que anos se reportam estas dívidas, porque é legítimo suspeitar que elas não sejam apenas do Orçamento anterior e que algumas delas, que já transitaram de 2002, ainda estejam por pagar e venham agora a corrigidas no Orçamento rectificativo de 2004.

Por isso, é indispensável que, também por esta razão, sejam discriminados os anos a que correspondem as dívidas que o Governo agora se propõe pagar, passando-as para a dívida pública. É apontada igualmente a continuação da insuficiente orçamentação das despesas com pessoal.

Um outro factor importante e significativo é o crescimento das dívidas fiscais nos impostos sobre o rendimento — mais 17,7% —, o que indicia que todo o discurso do combate à fraude e à evasão fiscais pouco efeito teve, porque aumentam as dívidas fiscais no ano de 2002. Por outro lado ainda, do ponto de vista do investimento, temos uma baixa execução do financiamento nacional do Capítulo 50 do PIDDAC, com prejuízos, designadamente, para a área da saúde — e foi um prejuízo grave —, onde o incumprimento da regra n+2, em relação aos fundos comunitários, custou ao nosso país a perda de 1,1 milhões de euros; dinheiro perdido em fundos comunitários para investimentos na saúde, porque este Governo não investiu a contrapartida nacional suficiente para dar resposta ao aproveitamento destas verbas.

Outra nota significativa é, evidentemente, a comprovação de que já em 2002 a dívida pública tinha ultrapassado 60% do PIB, apesar dos reparos ao Tribunal de Contas feitos agora pela bancada do PSD.

Este é, realmente, um factor que não se pode esconder e que será muito importante para a análise do Orçamento que começará a ser discutido hoje à tarde e que discutiremos nas próximas semanas.

Uma outra nota tem a ver com a importância que neste Orçamento rectificativo teve o aumento de verbas para a saúde — é um problema que se verificou em 2002 e que mantém plena actualidade, porque continuamos a ter uma situação de suborçamentação do sector da saúde —, para mostrar, na altura da apresentação dos orçamentos, grandes vantagens das medidas da política da saúde tomadas pelo Governo mas que, depois, se verifica que não correspondem à realidade, acabando por ter de se compensar o aumento dos gastos quando já não é possível escondê-lo mais, como acontece novamente este ano com os orçamentos do Serviço Nacional de Saúde e da Saúde.

Finalmente, uma nota para os atrasos na realização do capital social nas sociedades Polis, mas, especialmente, nos hospitais SA. Esta é uma matéria que, sucessivamente, tendo vindo a ser levantada pela Assembleia e que sucessivamente tem sido negada pelo Ministério da Saúde. Provamos agora que, de facto, o capital social, que teria, obrigatoriamente, de ser transferido para os hospitais SA, não foi realizado na data prevista pela lei, e isto mesmo o Tribunal de Contas acaba por constatar. Aliás, suponho que o Tribunal de Contas continua — e continuará — a ter muita dificuldade em verificar a situação real do capital social de cada hospital sociedade anónima, em saber quanto desse capital foi utilizado para pagar dívidas, quanto desse capital está empenhado em tal endividamento, porque continuamos a não ter dados seguros do Ministério da Saúde, nem do Ministério das Finanças, sobre esta matéria.

Termino dizendo que as Contas do Estado devem ter um paradigma de rigor e de clareza, porque isso é indispensável não só para o controlo jurisdicional que o Tribunal de Contas faz mas também, e sobretudo, para o controlo democrático que a Assembleia da República tem de fazer. E deste ponto de vista continuamos a estar muito aquém daquilo que seria desejável e exigível.

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