Intervenção de

Concordata entre a República Portuguesa e a Santa Sé, assinada a 18 de Maio de 2004, na cidade do Vaticano<br />Intervenção de António Filipe

Sr. Presidente, Sr. Ministro dos Negócios Estrangeiros, Srs. Deputa-dos: Quando, em 2001, foi votada nesta Assembleia a Lei da Liberdade Religiosa, o Grupo Parlamentar do PCP pronunciou-se desfavoravelmente, em votação final global, por discordar da opção, então toma-da, de isentar a Igreja Católica da aplicação desse diploma legislativo em condições de igualdade e de princípio com as demais religiões. Para o PCP nunca esteve em causa o respeito pela Concordata e pelos regimes especiais que dela decorrem. Sempre reconhecemos que, sendo a Concordata um Tratado Internacional, celebrado entre Portugal e a Santa Sé, a sua revogação, ou alteração, não poderia ser feita por simples aplicação de uma lei da República, mas mediante novo tratado entre os Estados signatários, cuja ratificação dependeria sempre da aprovação da Assembleia da República. Mas isso não era razão para isentar a Igreja Católica da aplicação da Lei da Liberdade Religiosa. É certo que a Igreja Católica tem em Portugal uma História, uma tradição e uma representatividade que a distingue das demais Igrejas e, obviamente, que essa representatividade deve ser reconhecida e deve ter consequências, porém isso não a deve isentar da aplicação, por parte do Estado, do princípio da igualda-de. A aplicabilidade deste princípio, que manda tratar como igual o que é igual e como diferente o que é diferente, não implica a negação da representatividade e da importância da Igreja Católica e é um impera-tivo do Estado de direito democrático. A solução, em nosso entender, não deveria passar pela criação de um regime supralegal de excepção para a Igreja Católica, mas pela regulação do relacionamento entre o Estado e essa Igreja, reconhecendo a sua especial representatividade, mas no respeito pelos princípios consagrados na Constituição da Repú-blica e na Lei da Liberdade Religiosa. Dito isto, importa referir que não negamos ao Estado Português e à Santa Sé o direito de negociar e aprovar a revisão da Concordata de 1940, nem negamos a necessidade de rever tal Tratado, tendo em conta a inadequação e a desactualização do texto aprovado nessa data. Porém, há aspectos concretos consagrados no texto da Concordata que hoje somos chamados a apro-var que merecem a nossa discordância. Referir-me-ei aqueles que consideramos fundamentais: em pri-meiro lugar, a disposição relativa ao divórcio. Consta do texto da Concordata em apreciação que «A Santa Sé, reafirmando a doutrina da Igreja Católica sobre a indissolubilidade do vínculo matrimonial, recorda aos cônjuges que contraírem o matri-mónio canónico o grave dever que lhes incumbe de se não valerem da faculdade civil de requerer o divórcio». Não podemos concordar com esta disposição. A Igreja Católica tem toda a legitimidade para recordar os deveres que entender aos cidadãos que perfilhem a religião católica, quer quanto à indissolubilidade do matrimónio, quer quanto a qualquer outra matéria, mas o Governo Português não pode subscrever, em nome de um Estado, que por imperativo constitucional é um Estado não confessional, a imposição de deveres que são única e exclusivamente do foro religioso. O Estado Português não pode subscrever nenhum documento sobre a indissolubilidade do casamento que contrarie o disposto na Constituição e na lei. O segundo aspecto diz respeito à educação moral e religiosa nas escolas públicas. O direito à existência de educação moral e religiosa católica nas escolas públicas deve ser reconhecido, tal como em relação às demais religiões, nos termos da lei. O que, em nosso entender, não tem justificação é o regime de privilégio da educação moral e religiosa católica, que faz com que seja obrigação do Estado nomear e contratar os professores desta disciplina de acordo com a autoridade eclesiástica competente, violando assim o princípio da igualdade que deveria existir nesta matéria. É que o Estado não assume idêntica responsabilidade de contratação e colocação de professores para com mais nenhuma confissão religiosa. Ainda em matéria de educação, não podemos deixar de referir, negativamente, o estatuto supralegal que, sua inclusão na Concordata, que por ser um tratado internacional adquire um valor supralegal, limita o Estado Português na sua capacidade, que deveria ser soberana, para regular o sistema educativo portu-guês, incluindo, obviamente, o estatuto das instituições universitárias existentes em Portugal. Em terceiro lugar, também se nos afigura discutível a solução encontrada quanto à con-servação, manutenção e restauro dos monumentos nacionais e imóveis classificados como de interesse público que sejam afectados permanentemente ao serviço da Igreja. À Igreja incumbe a sua guarda e regime interno, mas é sobre o Estado que recai exclusivamente o encargo da sua conservação, reparação e restauro. É óbvio que a Igreja Católica possui um património imobiliário com um valor cultural, artístico e monumental incomensurável e que o Estado não deve abster-se de cooperar na salvaguarda desse patri-mónio, mas não é a solução mais proporcionada que a Igreja fique com os direitos e o Estado com os deveres, situação que não se verifica designadamente relativamente a autarquias locais que detenham edifícios em condições semelhantes. Justificar-se-ia, assim, a adopção de uma solução mais equilibrada quanto à conservação e restauro dos monumentos e edifícios de interesse público na posse da Igreja. Nestes termos, Sr. Presidente, Srs. Deputados, tendo em conta o conteúdo concreto da Concordata, que contém aspectos importantes de que discordamos e tendo igualmente em conta a questão de princípio que nos levou a discordar da Lei da Liberdade Religiosa, o Grupo Parlamentar do PCP vai votar desfavo-ravelmente a proposta de resolução em apreço, sem que esta posição represente qualquer hostilização da Igreja Católica, dos valores que esta Igreja representa ou dos inúmeros cidadãos que, em Portugal, pro-fessam a religião católica e que merecem obviamente a nossa consideração e respeito e sem que, também, esta posição represente qualquer contestação da especial representatividade da Igreja Católica na socie-dade portuguesa, facto que deve ser reconhecido, mas sem que tal reconhecimento se traduza em viola-ções do princípio da igualdade constitucionalmente consagrado. (...) Sr. Presidente, Sr. Deputado José Vera Jardim, Muito obrigado pelas questões que me colocou. Começando por responder à sua questão inicial, a do divórcio, o que entendemos é que o Estado por-tuguês subscreveu o que não deveria subscrever. Volto a ler o texto que é submetido à aprovação da Assembleia da República: «Reafirmando a doutrina da Igreja Católica sobre a indissolubilidade do víncu-lo matrimonial, recordo aos cônjuges que contraíram matrimónio canónico o grave dever que lhes incum-be de se não valerem da faculdade civil de requerer o divórcio». Ou seja, é feito um apelo aos cidadãos para que não exerçam direitos que a lei civil lhes confere! Ora, que a Igreja Católica possa formular esta imposição ou recomendação aos seus crentes, às pes-soas a quem se dirige, porque professam essa religião, está no seu legítimo e pleno direito (e tudo estaria bem se se tratasse de um documento unilateral), mas o Estado português não deveria subscrever uma formulação desta natureza, em obediência aos princípios constitucionais por que se rege. Até porque não fica bem apelar aos seus próprios cidadãos para que não exerçam os direitos que a própria legislação civil, desse Estado, lhes confere, para além de que entendemos que os valores que estão presentes devem ser deixados à plena liberdade das pessoas. Se fosse um documento unilateral da Igreja Católica, estaria muito bem para quem o quisesse acatar no exercício da sua liberdade; sendo um documento bilateral e sendo subscrito pelo Estado, entendemos que o Estado português não teria constitucionalmente o direito de subscrever um texto com este teor. O Sr. Deputado José Vera Jardim referiu ainda que há condições de igualdade entre a educação moral e religiosa católica e a educação moral e religiosa de outras religiões no sistema educativo português. Ora, quero dizer-lhe que sei, por experiência própria, que isso não é verdade, porque tenho filhos em idade escolar e conheço como as coisas se processam. Um filho meu, por opção, não quis ter educação moral e religiosa católica e, Sr. Deputado, pura e simplesmente, nessa hora, não tinha qualquer aula! E os pais são confrontados com a seguinte opção: ou inscrevem os filhos na educação moral e religiosa católica ou, então, durante uma hora, não sabem muito bem onde eles estão, se a brincar no recreio da escola ou fora dela. Portanto, esta não é uma opção séria, para além de haver, obviamente, uma promoção feita pela pró-pria escola – uma promoção activa – para que os alunos se inscrevessem. Não contestamos a existência da educação moral e religiosa católica, consideramos que ela deve exis-tir, como é óbvio, mas o Estado, nessa matéria, deve adoptar uma posição de neutralidade entre as possi-bilidades de as várias confissões religiosas poderem ter educação moral e religiosa das suas religiões. De facto, não é o que acontece e esta formulação na Concordata, que vai para além do que dispõe a Lei da Liberdade Religiosa em relação à generalidade das religiões, cria um regime de privilégio que, em nosso entender, não tem justificação. Creio que respondi às suas perguntas, Sr. Deputado. Agradeço que as tenha colocado, pois penso que só valorizam o debate que deve ser travado nesta Casa, com toda a seriedade e responsa-bilidade.

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