Projecto de Resolução N.º 205/XI-1ª

Cessação de vigência do Decreto-Lei n.º 33/2010, de 14 de Abril (Bases da concessão da ANA Aeroportos)

O Decreto-Lei n.º 33/2010, de 14 de Abril, que aprova as bases da concessão da ANA Aeroportos é uma peça instrumental e um passo integrante da estratégia que o Governo delineou para privatizar a ANA Aeroportos e entregar aos interesses privados a gestão da rede aeroportuária nacional.
Tal facto pode ser confirmado pela leitura do cronograma apresentado pela Administração da empresa à agência Moody’s em 29-09-2008: nesse mesmo documento, disponível na página da NAER na Internet, o «Contrato de Concessão» é mencionado na listagem de «Documentos Jurídicos» na coluna intitulada «Privatização ANA». Dificilmente se poderia ser mais claro.
O PCP sempre afirmou que a rede aeroportuária nacional assume um papel estruturante e estratégico para o funcionamento da economia e inclusivamente para a soberania nacional. Estão em causa aspectos determinantes: a coesão territorial, as políticas de investimento em infra-estruturas espalhadas pelo continente e regiões autónomas, o desenvolvimento de sectores críticos ao nível do turismo, da logística, da ligação às comunidades portuguesas pelo mundo.
Por outro lado, o desempenho da ANA Aeroportos enquanto empresa pública, com resultados crescentemente positivos, é uma realidade que faz cair pela base o mito da "supremacia da gestão privada". Realizou-se um intenso investimento designadamente com o (várias vezes premiado) Aeroporto do Porto, com a modernização da Portela e novos investimentos em Faro e Ponta Delgada. Foram mais de 950 milhões de euros de investimento entre 2000 e 2010.
Mesmo com este significativo esforço de investimento, o resultado líquido da ANA chegou aos 350 milhões de euros no mesmo período, para além de uma receita para o Estado, só em impostos pagos pela empresa, no valor de 150 milhões de euros.
Segundo os dados mais recentes do INAC, o sector aeroportuário apresenta resultados líquidos positivos, aliás, os melhores entre todos os segmentos de actividade da aviação civil nacional.
Neste contexto, torna-se particularmente evidente como é ruinosa para o País a opção anunciada pelo Governo de avançar para a privatização da ANA Aeroportos e entregar a interesses privados a gestão da rede aeroportuária nacional.
Não se pode ignorar a estratégia que há muito vem sendo definida e prosseguida pelos sucessivos governos para abrir caminho a essa privatização. Nomeadamente, o decreto-lei n.º 404/98, de 18 de Dezembro, que antecedeu o diploma agora em apreço, ao determinar a cisão da ANA EP e sua transformação em sociedade anónima, já lançava as bases para a sua posterior privatização, conforme o PCP oportunamente denunciou através da Apreciação Parlamentar n.º 74/VII.
No momento presente, poder-se-á depreender que tal diploma actualmente em vigor não basta para a actual etapa da estratégia do Governo. Daí que tenha sido aprovado este novo decreto-lei agora em apreciação, no sentido de levar por diante o “próximo passo” para o processo de privatização da ANA: o contrato de concessão. Assim, o Governo mantém o que existia de negativo na legislação a este nível e acrescenta novas e mais graves malfeitorias.
Todo o decreto-lei em apreciação é atravessado por uma filosofia que, para todos os efeitos, já enquadra antecipadamente a «concessionária” do serviço aeroportuário como uma empresa privada, com a mesma teia de benefícios, poderes especiais e ataques ao interesse público a que já temos assistido em contratos de concessão a privados como os de auto-estradas, do “comboio da Ponte 25 de Abril” ou do Terminal de Contentores de Alcântara.
O presente decreto-lei compromete de uma forma profunda e perigosa qualquer lógica de definição estratégica e visão a longo prazo para o desenvolvimento, quer do sector aeroportuário e do transporte aéreo, quer das regiões e do território nacional como um todo.
Isso mesmo verifica-se com a Base V, que determina que «a concessionária tem o direito de incluir na concessão qualquer aeroporto ou aeródromo» que se situe no raio de 150 km dos aeroportos de Lisboa, Porto ou Faro, ou então nas ilhas de São Miguel, Santa Maria, Faial ou Flores. Pode ser construído um novo aeroporto em qualquer um destes “domínios” territoriais, sendo que a concessionária escolhe (!) se assume ou não a gestão desse equipamento.
Trata-se de um critério sem qualquer credibilidade ao nível do planeamento estratégico, que coloca os interesses da concessionária no centro de processos de decisão de importância determinante para as actividades económicas, a vida das regiões inteiras e das populações, o desenvolvimento integrado e a própria soberania.
Aliás, na Base L, o Governo chega ao ponto de admitir a possibilidade de uma gestão segmentada e parcelar da rede aeroportuária, ao decretar que a concessionária pode subcontratar alguma ou algumas das prestações objecto do contrato de concessão. Mesmo afirmando que tal pode suceder «excepcionalmente», essa referência é totalmente ambígua e imprecisa, já que nada esclarece sobre os limites da excepção face à regra, seja em termos temporais, territoriais, sectoriais ou outros. Apenas se refere que tais subconcessões podem ocorrer por vontade da concessionária e com autorização do Governo.
Este diploma consagra a priori a lógica do máximo lucro privado de uma forma clamorosa, definindo – na Base XXIX – regras para a «reposição do equilíbrio económico-financeiro» que seriam um verdadeiro seguro de vida para quem pretendesse comprar o capital da empresa.
Assim, qualquer situação que, na perspectiva da concessionária, resulte em perda de receitas ou aumento de despesas (incluindo leis ambientais ou de segurança a nível nacional!) leva à notificação do Governo e a um processo de negociação. Tal processo, num prazo de 90 dias, define o que supostamente «de boa fé seja estabelecido entre o Estado e a concessionária», podendo resultar em pelo menos uma das seguintes «modalidades»:
 Aumentos das taxas aeroportuárias, penalizando passageiros e empresas;
 Pagamentos directos pelo Estado à concessionária;
 Aumentos do prazo da concessão (que à partida é de 40 anos, prorrogável por mais 10);
 «Qualquer outra forma que seja acordada entre o Estado e a concessionária».
Entretanto, a Base XXV abre expressamente a possibilidade de criação e imposição de novas taxas, relativas a actividades aeroportuárias que o não prevejam ainda, ou até mesmo a desregulação de uma ou mais actividade e respectiva taxa, passando assim esta a ser livremente determinada pela concessionária. Basta para isso que haja uma proposta da concessionária que seja aceite pelo Instituto Nacional da Aviação Civil.
Finalmente, o decreto-lei em apreço permite atribuir “carta-branca” à concessionária (que, recorde-se, o Governo quer privatizar) para o exercício de poderes de autoridade de Estado, poderes esses de enorme alcance, principalmente em matéria de gestão e ordenamento do território. Isso mesmo está patente nas Bases XXXVI e seguintes.
São reforçados os poderes da empresa, já hoje absolutamente desproporcionados, em relação a «medidas preventivas” e a outras restrições da ocupação e uso dos solos. É declarada a priori e de forma generalizada a utilidade pública de toda e qualquer expropriação de bens e direitos, a constituição de todas as servidões, medidas de restrição, etc. Mais do que a privatização de um sector estratégico para o país, esta perspectiva abre o caminho à privatização de poderes de autoridade do Estado.
O presente decreto-lei refere a construção do Novo Aeroporto de Lisboa e a integração do Aeroporto de Beja na rede aeroportuária e respectiva concessão. No entanto, não é por deixar de estar em vigor este diploma que esses novos aeroportos podem ou devem deixar de se incluir na gestão nacional e na rede nacional. Pelo contrário: o quadro normativo em vigor, nomeadamente o já citado decreto-lei n.º 404/98, de 18 de Dezembro, prevê expressamente a inclusão de novas infra-estruturas aeroportuárias na concessão da ANA Aeroportos quando assim for determinado pelo Governo – o que confirma que a expansão da rede de aeroportos não carece de nova legislação.
O PCP, considerando o adequado faseamento do Novo Aeroporto, reafirma a defesa do projecto do Novo Aeroporto de Lisboa e do seu carácter assente num modelo de financiamento, construção, gestão e exploração público, num quadro de valorização da ANA e da TAP, respeitando integralmente o poder local democrático e as suas competências. Por outro lado, o pleno aproveitamento do Aeroporto de Beja e das suas potencialidades não pode ser mais atrasado, atendendo-se assim as justas reivindicações para a sua construção feitas ao longo de anos por diversas forças políticas, económicas e sociais.
Mas também importa sublinhar a importância e a necessidade de um investimento cada vez maior na rede aeroportuária da ANA na Região Autónoma dos Açores, de uma forma harmoniosa e dando resposta às carências sentidas e apontadas na região, em que se destaca o Aeroporto de Santa Maria. Essa política de investimento e desenvolvimento, de dinamização da economia e do emprego, não é consentânea com uma gestão parcelar e localizada de cada infra-estrutura.
É necessário combater a tese iníqua e perigosa que tem sido defendida, explícita ou veladamente, por alguns sectores políticos e grupos económicos a favor de um modelo de privatização e segmentação da rede aeroportuária. Defender o interesse e a especificidade de cada região e das suas populações, defender o seu desenvolvimento, não significa nem implica defender grupos económicos com agendas ou interesses aí localizados – passa, nesta matéria, antes de mais por defender uma gestão pública, integrada e em rede das respectivas infra-estruturas e equipamentos, e neste caso dos respectivos aeroportos. PS, PSD e CDS convergem assim na questão de fundo: uma linha privatizadora, que compromete seriamente o futuro do país.
Apostar num serviço público e na defesa do sector público, também nesta matéria particular no sector aeroportuário e do transporte aéreo, significa promover a coesão nacional, combater assimetrias regionais, promover o desenvolvimento e a qualidade de vida das populações, salvaguardar o interesse público e defender a soberania.
Assim, e face ao exposto, os Deputados abaixo assinados do Grupo Parlamentar do PCP, apresentam o seguinte Projecto de Resolução:

A Assembleia da República, nos termos e para os efeitos do artigo 169.º da Constituição da República Portuguesa e do n.º 2 do artigo 189.º, dos artigos 193.º e 194.º do Regimento da Assembleia da República, resolve revogar o Decreto-Lei n.º 33/2010, de 14 de Abril, que «aprova as bases da concessão de exploração do serviço público aeroportuário de apoio à aviação civil»

Assembleia da República, em 2 de Julho de 2010

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