Exposição de motivos
1. O envelhecimento da população é o resultado da continuada quebra das taxas de fecundidade e do aumento da longevidade em Portugal, a par de gravosos fatores de natureza social e laboral que também concorrem para uma pirâmide demográfica cada vez mais desequilibrada.
O nosso País não tem idosos a mais. O aumento da esperança média de vida é uma conquista civilizacional, que não pode continuar a ser apresentada como um problema social cujos supostos desafios assentam no prosseguimento de inaceitáveis regressões no direito à reforma e a uma pensão digna e no papel das funções sociais do Estado plasmados na Constituição da República, que devem ser assegurados pelos serviços públicos correspondentes. Assim, a todos deve ser garantido o direito a envelhecer na plenitude dos seus direitos e com qualidade de vida.
Por outro lado, acentuam-se os constrangimentos laborais e sociais que impedem os casais de terem o número de filhos que desejam – e no momento em que os desejam – para o seu projeto de vida, levando a que as mulheres tenham o seu primeiro filho (quantas vezes o único) cada vez mais tarde. Aqui reside um importante fator de estreitamento das faixas etárias mais jovens. A par deste resultado, o panorama demográfico também não é indiferente à emigração de jovens. As soluções para inverter esta realidade exigem a interrupção e a inversão do ciclo de vínculos precários, de desvalorização das carreiras e profissões, dos baixos salários, da falta de acesso à habitação, da insuficiência de vagas em creches e da inexistência de uma rede pública de creches e, ainda, da insustentável desregulamentação de horários.
2. Em Portugal, regista-se o aumento do número de idosos, ou seja, de pessoas com 65 e mais anos, um extrato que corresponde já a 24% do conjunto da população. Trata-se de um grupo social heterogéneo, do ponto de vista etário, social e económico, embora a esmagadora maioria seja constituída por reformados e pensionistas, cuja única fonte de rendimento é a reforma ou pensão, em geral em valores muito baixos (cerca de 70% auferindo menos de 600 euros), o que ajuda a explicar a elevada taxa de pobreza entre idosos.
O aumento da esperança média de vida está, assim, longe de corresponder a mais anos vividos com qualidade de vida, bem-estar físico e psicológico.
3. Com efeito, ao envelhecimento, à pobreza e à falta de condições materiais para alimentação saudável, aquisição de medicamentos e de outros bens e serviços, incluindo de eletricidade e de gás, tão necessários à preparação de alimento, à higiene e ao conforto, acrescem dramáticas situações de isolamento, em consequência da insuficiência ou mesmo da ausência de apoio e retaguarda familiares, bem como da falta de respostas sociais.
Mesmo quando aquelas necessidades se encontram razoavelmente preenchidas, é também frequente encontrarmos idosos sem possibilidades de fruição e até de produção a expressões do saber e da cultura, bem como da prática desportiva, seja devido à falta de equipamentos e estruturas nos locais de residência, seja em consequência de dificuldades de natureza física e/ou financeira para o acesso a espaços e atividades adequados, gratificantes e seguros. Também estas dimensões são imprescindíveis a um envelhecimento com qualidade e digno.
O presente projeto de lei visa o estabelecimento dos princípios orientadores de um envelhecimento com direitos e qualidade de vida, consubstanciado na Carta dos Direitos dos Reformados, Pensionistas e Idosos.
Nestes termos, ao abrigo da alínea b) do artigo 156.º da Constituição e da alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º do Regimento, os Deputados do Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte Projeto de Lei:
Artigo 1.º
Objeto e Âmbito
- A presente Lei estabelece a Carta dos Direitos Fundamentais dos Reformados, dos Pensionistas e dos Idosos.
- A Carta dos Direitos Fundamentais dos Reformados, dos Pensionistas e dos Idosos tem como objetivos a garantia de condições de vida com dignidade, independência e autonomia a todos os reformados, pensionistas e idosos, a defesa dos seus direitos, o seu bem-estar físico e mental, a sua proteção em todas as dimensões, sendo-lhes asseguradas qualidade de vida e conforto, assim como o direito de participação em todas as questões que direta e indiretamente lhes digam respeito, ao nível local, regional e nacional.
- A presente Lei aplica-se a todos os reformados, pensionistas e idosos de nacionalidade portuguesa e a todos os residentes em território nacional.
Artigo 2.º
O papel geral do Estado, da família e da sociedade
- O Estado tem deveres para com as pessoas idosas que não se confundem com o papel próprio da família, através da garantia das funções sociais e dos serviços públicos de proximidade que concorram para assegurar direitos sociais fundamentais a um envelhecimento com respeito pela dignidade e qualidade de vida.
- As famílias, enquanto espaços de afetos, de solidariedades, de igualdade e respeito entre os seus membros, têm um papel de particular relevância para com os seus membros idosos, no respeito pela sua autonomia e decisão próprias, e de especial proteção em situações de dependência ou de doença.
- A sociedade, no seu conjunto, deve valorizar os reformados, pensionistas e idosos, como parte importante do tecido social, detentores de experiências e saberes que devem ser valorizados e respeitados os seus direitos e dignidade.
- Cabe ao Estado e à sociedade cooperarem na disseminação de uma nova pedagogia sobre o envelhecimento como um processo natural, universal, progressivo e inevitável, em que o aumento da esperança média de vida é um fator positivo.
- Em especial, o Estado deve fomentar análises das problemáticas do envelhecimento, para que os mais velhos não sejam confrontados com preconceitos «da eterna juventude».
- O Estado deve valorizar as universidades seniores e outras formas de organização, pelo seu contributo para a valorização dos saberes ao longo da vida, pelas múltiplas atividades que desenvolvem, quer pelas novas experiências que proporcionam aos que nelas participam.
- Cabe ao Estado incentivar a criação de espaços públicos adequados para as pessoas idosas e lhe permitam uma vida quotidiana de tranquilidade e bem-estar, alterando os hábitos de vida sedentários e rotinas diárias suscetíveis de gerar isolamento declínio das capacidades físicas e mentais.
- A comunicação social deve contribuir para uma perspetiva positiva dos mais velhos, e tendo como preocupação de os apresentar como sujeitos ativos das suas vidas e não apenas em situações de fragilidade e dependência.
Artigo 3.º
Direito à autonomia económica e social
- É responsabilidade do Estado:
- Garantir o direito à reforma aos 65 anos de idade e a uma pensão digna, substitutiva dos rendimentos do trabalho, para todos os que cumpriram os períodos contributivos para a Segurança Social ou para a Caixa Geral de Aposentações;
- Garantir o pagamento de pensão social de velhice a todos aqueles que não estão abrangidos por descontos para a Segurança Social, comprovando a situação de vulnerabilidade económica e social;
- Garantir valorização anual das reformas e pensões, assegurando a reposição e a valorização do seu poder de compra.
- Os direitos estabelecidos no número anterior são assegurados no âmbito do sistema público de segurança social, através do regime previdencial dos trabalhadores e do regime não contributivo da Segurança Social.
Artigo 4.º
Direito à especial proteção social nas situações de pobreza e de isolamento social
- Os reformados, pensionistas e idosos têm o direito a especial proteção nas situações de vulnerabilidade económica e social, de risco de pobreza e de exclusão social, cabendo ao Estado estabelecer os critérios e fixar os montantes das prestações sociais adequados a uma existência digna.
- Os reformados, pensionistas e idosos gozam da igualdade de acesso à rede de equipamentos e serviços de apoio, de acordo com as necessidades especificas de cada um dos beneficiários das prestações sociais referidas no número anterior.
- O Estado deve aprofundar os instrumentos de identificação das situações de isolamento e de articulação entre os serviços públicos (segurança social, saúde, forças de segurança) que lhes permita, em estreita ligação com os visados, promover as medidas adequadas.
Artigo5.º
Direito à saúde
- Incumbe ao Estado assegurar o acesso à saúde no âmbito do Serviço Nacional de Saúde, tendo em conta que o envelhecimento cronológico coloca novas necessidade no que respeita à promoção da saúde e prevenção e tratamento da doença, designadamente através:
- Do desenvolvimento de um Plano de Saúde para Idosos que privilegie ações de promoção de saúde, prevenção e vigilância periódica, em especial no controlo e acompanhamento das doenças crónicas;
- Da gratuitidade de todos os cuidados de saúde, nos cuidados de saúde primários, nos cuidados hospitalares, nos serviços de urgência, incluindo nos meios complementares de diagnóstico e terapêutica;
- Da atribuição de médico e enfermeiro de família a todos os idosos;
- Da disponibilização gratuita de medicamentos;
- Do apoio domiciliário em cuidados e em vigilância de saúde.
- Cabe também ao Estado assegurar o acesso aos cuidados continuados, através do alargamento da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados, nomeadamente das Equipas de Cuidados Continuados Integrados e do aumento da disponibilização de camas em unidades públicas de cuidados continuados.
- É, ainda, dever do Estado assegurar o acesso aos cuidados paliativos, procedendo ao alargamento da Rede Nacional de Cuidados Paliativos, nomeadamente das Equipas Comunitárias de Suporte em Cuidados Paliativos e do aumento do número de camas em unidades de cuidados paliativos.
Artigo 6.º
Direito à habitação
- É responsabilidade do Estado garantir que todas as pessoas idosas têm direito a uma habitação condigna, que garanta conforto e higiene, adequada ao agregado familiar, com custos acessíveis.
- Sem a garantia de uma solução habitacional permanente, digna e confortável, não é permitido o despejo de reformados, de pensionistas e de idosos, nem dos agregados familiares que estes integrem.
- Para assegurar o conforto térmico das habitações, os reformados, os pensionistas e os idosos e respetivos agregados familiares têm direito a comparticipações financeiras majoradas no âmbito de programas de melhoria de eficiência energética das habitações.
Artigo 7.º
Educação, cultura, desporto e experiências de vida
- O Estado assegura a todas as pessoas idosas o acesso, a fruição e produção a todas as formas de conhecimento, educação, cultura desporto e prática física, bem como de valorização e transmissão a outros dos respetivos saberes e experiências de vida.
- Para os efeitos do previsto no número anterior, cabe ao Estado assegurar e manter estruturas públicas de fomento, promoção e apoio a equipamentos, próprios ou de base associativa.
- Cabe ao Estado assegurar ainda o acesso gratuito dos reformados, pensionistas e idosos a todas as manifestações culturais e desportivas, museus e recintos culturais e desportivos, bem como à frequência de cursos e ações de valorização de conhecimentos e melhoria das habilitações e à criação cultural e à prática desportiva ou da atividade física.
Artigo 8.º
Direito à mobilidade e ao transporte
É responsabilidade do Estado garantir às pessoas idosas o direito à mobilidade através do acesso gratuito em todos os operadores de transportes coletivos.
Artigo 9.º
Direito à participação
- O Estado reconhece o direito à participação dos reformados, dos pensionistas e dos idosos.
- Para dar concretização ao estabelecido no número anterior, o Governo promove a auscultação das organizações de reformados, pensionistas e idosos na definição das políticas públicas e no âmbito do processo legislativo sobre questões que, direta ou indiretamente, lhes digam respeito.
Artigo 10.º
Rede de equipamentos e de serviços de apoio
- Cabe ao Estado proceder à criação de redes públicas de equipamentos e de serviços de apoio às pessoas idosas em situação de dependência.
- A atual rede de equipamentos das Instituições Particulares de Solidariedade Social é complementar à Rede Pública de Equipamentos e Serviços de Apoios aos idosos.
- As pessoas idosas em situação de dependência e suas famílias têm o direito a optar pela solução mais adequada para si, designadamente no domicílio, numa estrutura residencial, num centro de dia, num centro de convívio, ou noutros equipamentos de apoio.
- Cabe ao Governo promover a articulação entre as respostas do sector social a as respostas públicas.
- É garantida a assistência médica em permanência em todos os equipamentos de apoio às pessoas idosas, através do Serviço Nacional de Saúde.
Artigo 11.º
Promoção do convívio e da ocupação saudável dos tempos livres
- Cabe ao Governo assegurar apoiar no plano financeiro, logístico e promocional as atividades culturais, recreativas, da atividade física e de lazer desenvolvidas pelas associações de reformados, pensionistas e idosos.
- É igualmente responsabilidade do Governo apoiar as Universidades Seniores e outras formas de valorização dos saberes adquiridos ao longo da vida e de promoção de atividades de âmbito educativo, cultural, recreativo e desportivo.
Artigo 12.º
Combate à negligência, aos maus-tratos, à violência física e psicológica
- O Estado deve adotar as medidas necessárias, no âmbito do Sistema Público de Segurança Social, promovendo a fiscalização das Estruturas Residenciais para Idosos e outros equipamentos oferecidos por quaisquer sectores, a fim de garantir que estes assegurem as condições logísticas, técnicas e humanas adequadas à salvaguarda da integridade física e do bem-estar dos utentes, bem como à promoção do bem-estar e qualidade de vida dos utentes.
- Cabe ao Estado o dever de promover informação adequada aos trabalhadores das instituições, às famílias e à sociedade sobre as diversas dimensões da neglicência, maus-tratos e violência física e psicológica sobre os reformados, pensionistas e idosos em situação de dependência, entre outros.
- Recai sobre o Estado o dever de prevenção e de tomada de medidas de contenção e remediação das situações de negligência, maus-tratos e quaisquer formas de violência, cabendo-lhe em especial tomar medidas imediatas de proteção.
Artigo 13.º
Movimento Associativo dos reformados, pensionistas e idosos
- As associações e estruturas de reformados, pensionistas e idosos são os legítimos representantes dos interesses e dos direitos das pessoas idosas, designadamente ao nível das medidas, ações e políticas do poder local, regional e nacional.
- É dever do Governo apoiar as associações que integram o Movimento Associativo dos reformados, pensionistas e idosos.
- O Movimento Associativo dos reformados, pensionistas e idosos está representado no Conselho Económico e Social.
Artigo 14.º
Recursos
É da responsabilidade do Estado mobilizar os recursos técnicos e financeiros, desde logo a partir do Orçamento do Estado, para assegurar os direitos dos reformados, pensionistas e idosos e realizar o investimento necessário para dar concretização à presente lei.
Artigo 15.º
Entrada em vigor e produção de efeitos
A presente lei entra em vigor no dia seguinte à sua publicação, ressalvadas as disposições cuja aplicação carece de regulamentação e as que implicam aumento das despesas do Estado, as quais produzem efeitos com a entrada em vigor do Orçamento do Estado posterior à sua publicação.