Intervenção de João Oliveira na Assembleia de República

Código de Processo Penal

Altera o Código de Processo Penal visando a defesa da investigação e a eficácia do combate ao crime
Altera o Código de Processo Penal garantindo maior celeridade no julgamento da criminalidade de menor gravidade

Sr.a Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Sr.as e Srs. Deputados:
As semelhanças entre a discussão que agora iniciamos e uma catarse colectiva são mais do que evidentes.
Na filosofia de Aristóteles, a catarse traduz o processo de purificação das emoções, que se dá em resultado de um intenso drama vivido pelo herói da tragédia e exige dois elementos essenciais: por um lado, é necessário que o herói em êxtase caia em desgraça e, por outro, exige-se que tal aconteça em resultado de uma opção errada deliberadamente assumida por aquele protagonista.
Se reconduzirmos o elemento espiritual daquela perspectiva filosófica à matéria concreta de que se faz o mundo, neste caso à matéria bem concreta do Código de Processo Penal, encontramos nesta discussão todos os elementos da catarse aristotélica.
Quase três anos depois do êxtase governamental, propagandeado aos quatros cantos do País a propósito da revisão do Código de Processo Penal, eis, agora, o Governo e a maioria do PS caídos em desgraça a constatarem o resultado das opções erradas que deliberadamente assumiram naquela mesma revisão.
Mas é importante relembrar que, na tragédia que foi aquela revisão do Processo Penal, o PS não esteve só: PSD e CDS, votando a favor e abstendo-se, respectivamente, contribuíram para que o herói caísse em desgraça.
O problema, Sr.as e Srs. Deputados e Srs. Membros do Governo, é que o drama desta catarse é vivido diariamente no nosso sistema de justiça pelos magistrados, advogados, órgãos de polícia criminal e funcionários judiciais que todos os dias têm de se confrontar com uma lei processual penal que não contribui para a celeridade da justiça nem para a eficácia do combate ao crime.
Hoje que fazemos esta discussão, procurando corrigir os erros cometidos em 2007, importa que tenhamos bem presente a memória do que foi essa revisão legislativa para que as decisões possam desta vez ser mais acertadas.
E importa relembrar que precisamente no dia 20 de Julho de 2007, aquando da votação final global da alteração ao Código de Processo Penal, o PCP avocou para Plenário da Assembleia da República a discussão das alterações do segredo de justiça. Na altura, denunciámos o erro que essas alterações significavam e alertámos para os problemas que, infelizmente, as mesmas vieram a criar nos nossos tribunais, e que «tanta tinta fizeram já correr».
No PCP não temos qualquer poder especial de adivinhação, mas acabámos por cumprir o papel do coro que na tragédia grega alerta para o desfecho dramático da história.
Tal como acontece com os heróis das tragédias gregas, também o PS não nos quis dar ouvidos e, por isso, aqui estamos hoje a tentar recuperar o tempo perdido.
Os projectos de lei que o PCP hoje apresenta à discussão visam, no essencial, dois objectivos centrais: por um lado, apresentamos no projecto de lei n.º 38/XI (1.ª) (http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa...)
medidas que visam a defesa da investigação e a eficácia do combate ao crime. Nesta iniciativa propomos alterações ao regime do segredo de justiça, às regras relativas aos prazos de duração máxima dos inquéritos e à detenção fora de flagrante delito, bem como à aplicação da prisão preventiva.
No essencial, estas propostas visam garantir a defesa da investigação criminal e a eficácia da acção penal, assumindo que o sistema processual penal deve estar, de facto, ao serviço da investigação criminal e não centrado em questões que, apesar de relevantes, são questões secundárias.
A defesa do bom nome dos suspeitos ou dos arguidos, por muito que deva ser preocupação a considerar pelo sistema de justiça, não pode ser transformada no objectivo central do regime de segredo de justiça.
O segredo de justiça deve visar, sim, a eficácia da investigação criminal e por isso se deve recuperar o princípio do segredo do processo nas fases de inquérito e instrução.
Pela mesma razão devem ser alteradas as regras relativas aos prazos máximos de duração do inquérito. A celeridade na administração da justiça não se pode tornar um objectivo a atingir a todo o custo, particularmente se desconsidera a complexidade da criminalidade mais grave e organizada e vota ao insucesso a acção das autoridades que lhe procuram dar combate.
Quanto à alteração das regras de aplicação da prisão preventiva e da detenção fora de flagrante delito, as propostas que apresentamos procuram responder às dificuldades com que hoje as autoridades judiciárias se confrontam na sujeição dos agentes do crime à justiça, dificuldades essas que geram algum sentimento de impunidade e de ineficácia da justiça.
No projecto de lei n.º 178/XI (1.ª)(http://www.parlamento.pt/ActividadeParlamentar/Paginas/DetalheIniciativa...)
prevemos um conjunto de alterações que visam a garantia da celeridade no julgamento dos processos-crime, particularmente na criminalidade menos grave e em que houve detenção em flagrante delito ou em que a prova é de mais fácil obtenção.
Estamos em crer que as alterações que propomos às formas de processo especiais — sumário, abreviado e sumaríssimo — permitirão a sua utilização de forma generalizada nos tribunais portugueses, criando condições para o julgamento rápido da criminalidade de menor gravidade e libertando os próprios magistrados para tarefas de maior complexidade ou que exijam maior disponibilidade.
Importa a este respeito referir que, no âmbito do processo sumário, considerámos devidamente uma sugestão do Sindicato dos Magistrados do Ministério Público no sentido de alargar a possibilidade de utilização desta forma de processo para o julgamento de crimes de maior gravidade, puníveis com penas de prisão de máximo superior a cinco anos e com intervenção do tribunal colectivo.
Esta sugestão, que acabou por ser incluída no projecto de lei apresentado pelo CDS, não mereceu acolhimento por parte do PCP, não por se tratar de uma proposta errada ou sem fundamento mas, sim, porque julgamos que se deve primeiro procurar generalizar a utilização do processo sumário e só depois considerar a possibilidade do seu alargamento a crimes de maior gravidade.
Para lá das propostas concretas de alteração ao Código de Processo Penal em matéria de processos especiais, o PCP entende que é fundamental que o Governo disponibilize os meios necessários à concretização deste objectivo de maior celeridade na justiça.
Não podemos esperar que a simples alteração da lei determine melhorias significativas no funcionamento dos tribunais se esta não for acompanhada da disponibilização dos meios necessários. Por isso, propomos que a entrada em vigor das referidas alterações legislativas seja acompanhada dos respectivos meios necessários à sua concretização, ouvidos os conselhos superiores da Magistratura e do Ministério Público.
Por último, importa fazer alguma apreciação das várias iniciativas em discussão nos seus aspectos fundamentais.
Apesar de as várias iniciativas preverem soluções divergentes das defendidas pelo PCP, particularmente no que se refere aos processos especiais, entendemos que o processo legislativo só terá a ganhar se todas puderem ser confrontadas na discussão na especialidade.
Iremos por isso contribuir com a nossa abstenção para a viabilização das várias iniciativas em discussão, à excepção do projecto de lei n.º 174/XI (1.ª), apresentado pelo CDS. Tendo em conta que esta iniciativa prevê medidas que dificultam o acesso à liberdade condicional com as quais não estivemos de acordo em discussões anteriores, votaremos contra ela.
Quanto à proposta de lei do Governo, é de lamentar que este tenha identificado alguns dos problemas centrais das alterações introduzidas em 2007, mas teime em não efectuar as correcções necessárias.
Com esta proposta de lei, o Governo insiste teimosamente na manutenção das normas que têm sido fonte de problemas, procurando minimizar os seus danos introduzindo alterações a outras normas que, certamente, criarão novas dificuldades.
Vejam-se, a título de exemplo, as alterações propostas pelo Governo ao artigo 1.º do Código de Processo Penal. Estas alterações apenas se justificam porque o Governo teima em manter a regra de aplicação da prisão preventiva apenas a crimes puníveis com pena de prisão superior a cinco anos e vão certamente conduzir a novas dificuldades, particularmente quanto à aferição da sua constitucionalidade.
No que se refere ao segredo de justiça, o problema é ainda mais profundo.
A comissão nomeada pelo Governo para preparar esta proposta de lei apontou duas soluções para o segredo de justiça: uma mantendo a regra da publicidade do processo e outra recuperando a regra do segredo. Das duas soluções, a segunda, da recuperação da regra do segredo, recolheu a preferência da maioria dos membros da Comissão.
Ora, perante isto o que fez o Governo? Escolheu precisamente a solução que menos apoio recolheu na Comissão por si nomeada.
A este respeito, aliás, apenas o projecto de lei do PCP apresentado há mais de quatro meses — antes mesmo de estar constituída a referida Comissão — aponta no sentido que veio a ser reconhecido como o mais correcto.
Sr.ª Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Sr.as e Srs. Deputados:
Agora que se inicia um novo processo de alteração ao Código de Processo Penal, esperamos que se reúnam as condições necessárias para que essas alterações possam ser devidamente discutidas e preparadas, considerando opiniões e pareceres de todos quantos possam contribuir para o seu sucesso, particularmente daqueles que todos os dias nos tribunais aplicam essas regras.
Temos igualmente a expectativa de que com este processo legislativo se possam eliminar regimes paralelos ao do Código de Processo Penal, como o que foi introduzido na lei das armas, que não só não resolveram os problemas das alterações de 2007 como ainda criaram novas dificuldades e obstáculos aos tribunais.
Da parte do PCP, contribuiremos de forma séria e empenhada para que, desta catarse que agora fazemos, possa resultar um processo legislativo que evite a continuação da tragédia grega em que o Governo enredou o combate ao crime em Portugal.
(…)
Sr. Presidente,
Sr. Ministro da Justiça,
Nos 2 minutos de que disponho, quero colocar-lhe duas questões muito simples.
Uma primeira prende-se com a necessidade de explicação sobre a opção que o Governo fez por contrariar a solução, pelos vistos, maioritária na comissão que o Governo nomeou para preparar esta proposta de lei, relativamente ao segredo de justiça.
Com todos os problemas que se têm verificado, desde as alterações, em 2007, com todas as críticas que têm sido feitas à alteração da regra do segredo para a regra da publicidade do processo, com todos os problemas que isto tem levantado, particularmente na fase de inquérito e de instrução — que é aí que se coloca a necessidade do segredo —, se a maioria dos membros da própria comissão nomeada pelo Governo preferia a solução da recuperação do segredo, por que é que o Governo opta pela solução da manutenção da regra da publicidade, criando novas excepções a esta regra, transformando quase a própria regra, ela mesma, numa excepção?
Gostava de lhe colocar esta questão, Sr. Ministro, porque julgo que ela tem que ver com uma outra questão fundamental que perpassa toda a proposta de lei. É o facto de o Governo, em vez de simplificar, complexificar nas soluções que apresenta e complicar com as propostas de alteração que apresenta. Gostava, pois, que nos deixasse aqui um esclarecimento.
A segunda questão também tem a ver com o facto de o Governo não querer corrigir os erros, e solicitava-lhe, Sr. Ministro, uma especial atenção relativamente a esta questão porque ela, do ponto de vista técnico, pode ter alguma complexidade.
O Governo opta por não corrigir os erros na sua fonte e procura, por formas enviesadas, corrigir esses erros. A proposta que o Governo apresenta na proposta de lei, aliás, acompanhada pelo Bloco de Esquerda no seu projecto de lei, prevê a aplicação da pena de prisão preventiva no caso de um crime que é punido com uma pena de prisão de, no máximo, um ano. Repito, os senhores propõem a aplicação da prisão preventiva para um crime punido com uma pena de prisão de, no máximo, um ano!
Acompanhe o meu raciocínio, Sr. Ministro: o artigo 348.º do Código Penal refere-se ao crime de desobediência. Como o Sr. Ministro sabe, o crime de desobediência, previsto no artigo 348.º, está integrado no capítulo, cuja epígrafe é «Dos crimes contra a autoridade pública».
Ora, os senhores alteram a alínea j) do artigo 1.º do Código de Processo Penal, introduzindo os crimes contra a autoridade pública na criminalidade violenta, criminalidade violenta, essa, que, por força do artigo 202.º, é um tipo de criminalidade em que pode haver a aplicação da prisão preventiva.
Portanto, aquilo que o Governo e também o Bloco de Esquerda, no seu projecto de lei, propõem, hoje, à discussão desta Assembleia da República é que se abra a possibilidade de aplicação da prisão preventiva num crime que — pasme-se! — tem, como máximo da sua moldura penal, uma pena de prisão de um ano! Sr. Ministro, quero acreditar que isto foi um lapso e que, certamente, será corrigido.
Sabe o que é preocupante, Sr. Ministro? É que isto reflecte, de facto, a complexificação do Código de Processo Penal, porque os senhores não conseguem admitir a necessidade de corrigir os erros, na fonte. Alterando a regra do artigo 202.º, sem mexer na tipificação da criminalidade violenta, os senhores resolviam o problema. Assim, em vez de o resolverem, complexificam-no!
(…)
Sr. Presidente,
Srs. Membros do Governo,
Sr.as e Srs. Deputados:
Uma primeira nota que importa registar no final deste debate tem a ver com o contexto em que foi possível realizá-lo, muito diferente daquele outro em que, há cerca de três anos, fizemos aqui um outro debate, com maioria absoluta do Partido Socialista, e muitos outros debates (em função, inclusivamente, de iniciativas propostas pelo PCP), na anterior Legislatura, em que, com maior ou menor dificuldade, o Partido Socialista sempre foi fazendo sentir o «rolo compressor» da sua maioria absoluta.
Portanto, é caso para registar, com agrado, que, com o fim da maioria absoluta, terminou também o ambiente político que não permitia uma discussão mais aprofundada destas matérias que aqui estamos hoje a discutir.
À margem deste debate, alguns Srs. Deputados do Partido Socialista procuraram dar alguns esclarecimentos à bancada do PCP sobre a questão do crime de desobediência. E, a dar por boas estas explicações dos Srs. Deputados do Partido Socialista, fica por saber onde é que está, afinal, a opção política do Governo em relação à valoração do crime de desobediência — mas essa é uma questão que, certamente, teremos oportunidade de aferir em sede de especialidade.
Quanto à intervenção que o Sr. Deputado Nuno Magalhães acabou de proferir, quem esteja mais desatento perguntar-se-á qual terá sido a postura do CDS nas alterações aprovadas em 2007.
Relativamente ao PSD, obviamente já se sabe que, apesar daquelas referências ao voto contra, em sede de discussão na especialidade, o processo legislativo de alteração ao Código de Processo Penal resultou do Pacto para a Justiça, celebrado entre o PSD e o PS, nada mais havendo, pois, a acrescentar sobre a responsabilidade do PSD. Mas a verdade é que, da parte do CDS, também não houve uma postura correspondente à oposição que o CDS, agora, manifesta às alterações então efectuadas, pois o CDS, nessa altura, absteve-se. Ora, quem se abstém é quem não quer manifestar uma atitude frontalmente contra as alterações apresentadas.
Portanto, «não bate a bota com a perdigota», Sr. Deputado Nuno Magalhães. Os «discursos musculados» relativamente à necessidade de intervenção no Direito Penal e ao reforço das medidas securitárias, afinal, não casam com os «assobios de fininho» na hora de tomar posições, particularmente em relação às votações.
Uma outra nota que quero registar tem a ver com o seguinte: recentemente, têm-se verificado violações do segredo de justiça que, da parte do PCP, têm sido obviamente objecto de crítica, assim como por parte de outros grupos parlamentares, mas a verdade é que importa recuperar aqui uma nota que, em 2007, trouxemos à discussão, particularmente na votação final global. De facto, aquando da votação final global daquelas alterações introduzidas em 2007, alertámos para aquilo que iria acontecer em relação ao regime do segredo de justiça. E, mais, se o Partido Socialista tivesse considerado de outra maneira algumas propostas que apresentámos na altura e que reapresentamos neste projecto de lei, se calhar as violações do segredo de justiça que recentemente se têm verificado não tinham ocorrido, particularmente aquela que diz respeito ao registo de quem tem acesso às peças do processo e que permite um controlo mais apertado de quem eventualmente tenha a perspectiva de violar o segredo de justiça — e que tem, inclusivamente, Sr. Deputado Ricardo Rodrigues, um efeito de dissuasão em relação à violação desse mesmo segredo.
Portanto, esperemos que, desta vez, essas propostas possam ser consideradas.
Para terminar, Sr. Presidente, Sr.as e Srs. Deputados, quero fazer referência a um aspecto que referi na minha intervenção, o aspecto de catarse que tinha este debate. De facto, pela forma como cada um dos partidos se posiciona e cada um dos partidos reconhece a importância e a necessidade das alterações ao Código de Processo Penal, parece que se verificou aquele objectivo de «purificação das almas», Sr. Ministro. Vamos ver se, depois, do ponto de vista do processo legislativo, conseguiremos concluí-lo com o acerto que, infelizmente, não teve o processo que o Partido Socialista impôs em 2007.

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