Declaração de Miguel Tiago na Assembleia de República, Conferência de Imprensa

BES - "Cada vez mais se torna claro quem andou a viver acima das possibilidades dos portugueses"

Ver vídeo

''

A Comissão de Inquérito à gestão do BES, do GES, proposta pelo Partido Comunista Português, tem vindo a possibilitar conhecer o funcionamento de um dos maiores grupos económicos portugueses e perceber o que podem ter sido as causas do seu colapso. O funcionamento da Comissão, além de permitir algumas conclusões preliminares importantes, expõe a forma tentacular, opaca, obscura, na margem ou ultrapassando mesmo a legalidade, das práticas do sistema financeiro e dos grupos monopolistas, à revelia de qualquer efectiva e eficaz fiscalização do poder político e reguladores. Juntando a este trabalho, o que resultou dos inquéritos ao BPN, ao BCP e o que se sabe hoje sobre a intervenção do Estado em diversos bancos, podemos retirar importantes conclusões sobre a natureza da banca privada, sobre a impossibilidade de controlar democraticamente o crédito e de assegurar a transparência na gestão das instituições.

Das audições realizadas até aqui, pesem as contradições materiais de alguns dos depoimentos, resulta claro que o sistema de supervisão e regulação foi além de incompetente e ineficiente, incapaz e impotente. BdP e CMVM não foram além da produção de recomendações, não exigindo, tampouco, o seu cumprimento. Mesmo após a criação do Conselho Nacional de Supervisores Financeiros e do Comité Nacional para a Estabilidade Financeira (que inclui o Governo, através do Ministério das Finanças), e as devastadoras análises das Comissões de Inquérito aos casos BPN e BCP, nenhuma medida concreta foi tomada para interromper o descalabro em curso do BES/GES, bem conhecido desde 2013, e com sinais dados pelos auditores externos desde muito antes. Aliás, tal como o PCP vem demonstrando desde as primeiras audições, a origem dos problemas do BES/GES estava identificada pelo menos desde 2001, apesar de Ricardo Salgado dar ordens para dificultar o acesso às contas da ESI já desde então.

As responsabilidades do Governo e também do Presidente da República, sem prejuízo do aprofundamento e da diferenciação que ainda se possam fazer, são evidentes, tendo em conta a informação suficiente de que dispunham. Ministra das Finanças, Primeiro-Ministro, Presidente da República produziram intervenções públicas com a clara intenção de reforçar a confiança dos investidores e dos depositantes. Conheciam bem o estado de desagregação e degradação das holding’s e empresas do GES e a elevada exposição do BES a esses problemas.

A arquitectura do grupo e os fluxos de capital demonstram que administradores e os accionistas de referência, canalizaram grande parte do crédito de forma viciada e organizada para socorrer/sustentar as empresas do próprio grupo e mesmo, para favorecimento directo de titulares do Grupo. Muito crédito fluía para as suas empresas sem garantias e sem colaterais, ou com garantias e colaterais sobreavaliadas, inflacionando assim a sua capacidade de endividamento. A forma como os supostos imóveis em Angola eram avaliados pela Prime Yield (Pro Prime) - consultora fornecedora de serviços ao BES e às empresas não financeiras, como a ESCOM - mesmo quando não existia qualquer suporte material para os valores das avaliações, evidencia a cedência de crédito sem qualquer contrapartida e real avaliação de risco.

O financiamento da ESCOM é exemplar. Processado através do BES e sucursais, ou via BESA, foi obtido através de falsas avaliações dos activos, gerando imparidades de mais de 410 milhões de euros, de acordo com a informação de que a Comissão dispõe. Enquanto que as empresas do Grupo tinham estas facilidades, as pequenas e médias empresas e as famílias viam o acesso ao crédito cada vez mais dificultado.

Os sucessivos alertas dos auditores externos, mesmo se “tímidos”, muitas vezes em linguagem cifrada, deveriam ter motivado por parte dos reguladores, medidas sobre a concessão de crédito e outros fluxos de capital a entidades em off-shore e em jurisdições não cooperantes. Não é possível que reguladores e autoridades fiscais desconhecessem o complexo esquema de financiamento de entidades off-shore, construído para permitir uma fuga ao fisco organizada, para ocultar fluxos financeiros e para remunerar accionistas do Grupo. Veja-se o caso da ControlDevelopment criada à margem do Grupo, que tinha como únicos accionista os membros do Conselho Superior, que contraiu dívidas no grupo que nunca pagou, juntamente com a ESAT e a ESControl.

Aliás, a existência de sociedades sediadas em paraísos fiscais e a impossibilidade de controlar o seu uso gera uma falha incontornável na regulamentação e regulação do sistema financeiro, independentemente da capacidade e poder do regulador. Tudo não passará de um embuste enquanto existir livre circulação de capitais e um enorme buraco negro, onde tudo se afunda e confunde, sem qualquer tutela ou fiscalização.

A isso junta-se uma arquitectura do grupo económico (quer da área financeira, quer da não financeira) construída e pensada para impossibilitar a transparência e para não pagar impostos.

A exposição do Banco à ESI e à ESResources, depois Rio Forte, não representa um problema apenas a partir do momento em que se inicia a ocultação do passivo da holding de topo (ESIH). A ocultação de cerca de 20% do passivo apenas comprova que o Banco concedia crédito além dos limites razoáveis do risco e sem uma avaliação séria, quando se tratava da holding de topo. No entanto, independentemente desta ocultação em curso, pelo menos, desde 2008, a canalização de crédito - directa e indirectamente - para a ESIH e para o ramo não financeiro do grupo, demonstrava como o Gupo Monopolista GES/BES, favorecia claramente as suas próprias unidades e expansão, consolidando o seu domínio na economia e no Estado.

É evidente que a Administração do Grupo é responsável directa, quer por acção quer por inacção na ocultação dos prejuízos da ESI desde 2008. Se ordenou a falsificação das contas é responsável e se permitiu que ela ocorresse sem ter conhecimento - o que não parece crível - é igualmente responsável. Esta atribuição de responsabilidades é igualmente válida para as operações fraudulentas que envolvem o financiamento do GES pela PT e a emissão de obrigações da triangulação com a Eurofin que lesou o Banco em quase 800 milhões de euros. Destacamos a utilização da PT como fonte de recursos para o Grupo, e como parte de uma triangulação que em determinados momentos terá permitido aumentar a exposição indirecta do BES ao GES, através de uma chamada “parceria estratégica”.

A natureza dos grupos monopolistas, ditos conglomerados mistos, é a amostra fiel da forma de funcionamento do capitalismo e dos seus instrumentos financeiros.

A “independência e eficácia da supervisão e regulação caem pela base, quando o seu julgamento é feito no essencial na base dos dados que os bancos e os auditores externos lhe fornecem. Ora, os bancos são os beneficiários de possíveis ilicitudes e são simultaneamente os grandes clientes dos auditores externos. Quando os reguladores promovem inspecções e auditorias profundas, contratam, precisamente, as mesmas entidades e empresas que fazem auditoria externa aos bancos. Isto para lá, da conhecida captura ideológica dos reguladores.

E não pode deixar de registar-se que a Troika, que via a mais pequena despesa quanto se tratava de identificar e eliminar direitos dos jovens, trabalhadores e reformados, não viu o gigantesco buraco de 4,9 mil milhões de euros num dos principais bancos portugueses. Pelo contrário, afirmava que tinha contribuído para que a banca portuguesa se tivesse tornado robusta e sólida.

Registamos ainda as graves consequências de regimes extraordinários de regularização tributária – já vai no terceiro - a pretexto da captação de capitais “perdidos” em paraísos fiscais. Em situações de total “libertinagem” da circulação de capitais, elevada dimensão da economia paralela e de uma concorrência fiscal desenfreada, para lá de facilitar a lavagem de dinheiro de actividades criminosas (droga, tráfico de armas, corrupção etc), estes regimes fiscais confirmaram ser instrumentos de ocultação de ilegalidades financeiras, absolvendo e recompensando o crime fiscal.

Como se tudo isto não fosse suficiente o Estado português, através do governo PSD/CDS concedeu ao BES uma garantia pessoal do Estado no montante de 3.500 milhões €, que transitou para o Banco Novo, como consta do Orçamento do Estado para 2015 (pág. 67 do Relatório do OE-2015) que poderá ser acionado no caso de se revelar ser necessária. Assim, os contribuintes correm o risco de ter de pagar mais esta dívida do BES – 3.500 milhões € - a somar ao empréstimo concedido pelo Estado ao Fundo de Resolução no montante de 3.900 milhões €. É mais um exemplo concreto do Estado ao serviço dos grupos económicos e financeiros.

Cada vez mais se torna claro quem andou a viver acima das possibilidades dos portugueses e que sectores da economia estavam demasiado alavancados pelo crédito.

Queremos por último, denunciar os obstáculos que entidades nacionais e estrangeiras vêm colocando aos trabalhos da Comissão, recusando documentos e elementos que a CI necessita para levar a cabo o seu trabalho, com manifesto desrespeito, pela legislação que enquadra a sua actividade e pelo dever de colaboração, que entidades estatais têm para com o Órgão de Soberania Assembleia da República. Consideramos que a CI deve fazer um balanço crítico urgente de tais situações e tomar as medidas julgadas convenientes.

  • Economia e Aparelho Produtivo
  • Intervenções