Intervenção de

Base de dados de perfis de ADN - Intervenção de António Filipe na AR

Criação de uma base de dados de perfis de ADN para fins de identificação civil e criminal

 

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

O Sr. Ministro da Justiça começou a sua intervenção referindo o Direito Comparado, dizendo que vários países europeus legislaram sobre a criação de bases de dados de ADN. Ora, eu quero dizer ao Sr. Ministro que é um dado que importa registar, mas não, necessariamente, seguir. Não é pelo facto de outros países terem legislado de uma determinada forma que nós devemos fazer o mesmo e, sobretudo, isso não atesta a bondade dessas medidas legislativas.

É sabido, inclusivamente, que essa legislação não é pacífica, designadamente em França, país em que mais se tem legislado sobre esta matéria, mas onde a contestação a essa legislação é também maior.

Importa, a este respeito, ter na devida atenção o excelente parecer com que a Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) nos habilitou a todos - Governo e Assembleia da República. E eu vou permitir-me até citar mesmo alguns pontos do parecer da CNPD, designadamente quando se diz: «(...) os riscos para a privacidade...» - da criação deste tipo de base de dados - «... são, porventura, os mais profundos que podem ser concebidos.(...). Os desafios colocados pela inovação tecnológica e pela aplicação dessa inovação à informação e identidades genéticas revestem, ainda, alguns contornos de aventura da humanidade, com um horizonte de riscos ainda não previsíveis nem, portanto, controláveis».

E continua a Comissão: «Na verdade, a massificação do tratamento de dados pessoais em todos os sectores da vida social em que os cidadãos se vêem, inelutavelmente, envolvidos, com a consequente concentração da informação que lhes diz respeito, cria uma zona em que existe um efectivo conhecimento da informação total e de todos os dados pessoais dos indivíduos. Os receios situam-se não apenas nos acessos indevidos ou nos conhecimentos indevidos, ‘mas nas potencialidades de comunicação inter-institucional ou inter-sectorial, a nível nacional ou mesmo internacional, que as técnicas informáticas propiciam'».

Ora, é preciso dizer, Srs. Membros do Governo e Srs. Deputados, que, no que se refere à cooperação internacional, o artigo 21.º da proposta de lei suscita as maiores apreensões, na medida em que prevê que «O disposto na presente lei...» - ou seja, as garantias previstas na presente lei - «... não prejudica as obrigações assumidas pelo Estado português em matéria de cooperação internacional (...)». Ou seja, é possível transmitir dados inseridos na base de dados de ADN portuguesa a autoridades de outros países que não têm, nem de perto nem de longe, as garantias previstas pela proposta de lei para a lei portuguesa.

De boas intenções está esta proposta de lei (n.º 144/X) rodeada. Diz, aliás, a CNPD que «(...) o conjunto de tratamentos de dados pessoais que simultaneamente acontecem, conduzindo a uma concentração total da informação do cidadão, acontece pelas melhores, mais positivas e virtuosas razões, desde a prevenção da segurança, a eficiência dos recursos, a efectividade das medidas e a eficácia dos resultados, mas não deixa de produzir um efectivo controlo dos cidadãos por parte dos poderes democraticamente legitimados ou meramente fácticos». Portanto, é caso para dizer que «de boas intenções está o Inferno cheio».

Importa ter em conta o princípio da precaução. Deve atentar-se que existem riscos ainda não previsíveis na sua definição nem controláveis que advêm da adopção de tecnologias e conhecimentos científicos de aquisição recente e que a rapidez da evolução tecnológica e científica depressa retirará a «cegueira» ao ADN não codificante, de forma a que este revele outro tipo de informação sobre o seu titular.

Importava ter em conta estes reparos que são feitos pela CNPD e o Governo, na proposta de lei, manifestamente, não os teve em conta.

Importa ainda referir algo muito importante. É que a investigação científica no domínio da informação genética não está a cargo nem de entidades públicas nem de universidades, está a cargo de empresas privadas, geralmente laboratórios multinacionais. E estas entidades, como a CNPD bem salienta, não prosseguirão apenas o seu trabalho de investigação para obter informação relevante a partir do ADN não codificante, mas tentarão utilizar para efeitos de identificação de qualquer parte do ADN.

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:

Para efeitos de investigação criminal, não temos dúvidas de que, em alguns casos, o recurso ao ADN se mostra proporcionado à finalidade da investigação criminal, mas essa proporcionalidade não pode ser vista em abstracto, tem de ser aferida em concreto, caso a caso, perante cada indivíduo, nas circunstâncias concretas.

Compartilhamos a visão da CNPD, segundo a qual o tratamento do dado pessoal genético para efeitos de investigação criminal deve ter lugar apenas nos casos em que esse meio de prova se mostra relevante e adequado a demonstrar a autoria dos crimes que se visam investigar. O tratamento do dado pessoal ADN só deve ter lugar se for estritamente necessário, absolutamente indispensável, para a investigação e instrução criminal em causa. Ora, não é esse o caminho que a proposta de lei segue. O caminho da proposta de lei, como se vê pelo artigo 3.º, é construir uma base de dados de forma faseada e gradualmente. Sabemos qual é a primeira fase, que é a dos condenados a penas de prisão superiores a 3 anos, a dos arguidos em processos criminais e a de alguns voluntários que se ofereçam para constar da base de dados para efeitos de identificação civil. Esta é a primeira fase, mas o Governo não nos diz quais são as próximas e nós sabemos qual tem sido a evolução em França, pois aí começou para os autores de crimes sexuais e agora já vai nos autores de qualquer tipo de crime, seja ele qual for, seja a bagatela penal menos relevante.

A questão com a qual termino, Sr. Presidente, tem a ver com o acesso em concreto. Compartilhamos a visão já aqui expressa por vários Srs. Deputados de que não é possível que o acesso concreto à base de dados de ADN possa ser decidido por uma autoridade não judicial, como é previsto na proposta de lei, em que é um director-geral que decide sobre o acesso em concreto ao ADN de cada cidadão que conste da base de dados. Isto para nós não aceitável e pensamos que, no mínimo, e, obviamente, sem prejuízo de outras críticas que fizemos a este diploma, o acesso em concreto à base de dados deveria ser decidido por uma autoridade judicial. Nós não nos satisfazemos com o conselho de fiscalização que o Governo aqui propõe, até porque noutras matérias conhecemos bem a experiência negativa desses ditos conselhos de fiscalização.

 

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