Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

Assunção de poderes de revisão constitucional extraordinária pela Assembleia da República

Sr. Presidente, Srs. Deputados:

No momento em que o PS e o PSD chegaram aparentemente à conclusão de que é indispensável rever a Constituição para que possa haver um referendo sério, transparente e decisivo sobre a ratificação do Tratado que aprovou a chamada Constituição da União Europeia, é obrigatório fazer um pouco de história.

Em 1992, antes da ratificação do Tratado da União Europeia, assinado em Maastricht, o PCP propôs a aprovação de uma norma constitucional que viabilizasse a realização de um referendo sobre esse Tratado. Nessa altura, o PS e o PSD apressaram-se a rever a Constituição para permitir a ratificação do Tratado da União Europeia mas rejeitaram peremptoriamente qualquer referendo sobre ele, com uma fundamentação que foi tudo menos convincente.

Em 1997, o PS e o PSD voltaram a recusar a proposta do PCP, apresentada aquando da IV Revisão Constitucional, para inserir uma disposição constitucional que, no momento oportuno, permitisse referendar o Tratado de Amesterdão.

Só que dessa vez aprovaram a formulação que ainda hoje vigora, segundo a qual podem ser objecto de referendo «questões de relevante interesse nacional que devam ser objecto de convenção internacional», para, em seguida, acordarem uma pergunta que levou o Tribunal Constitucional a considerar, obviamente com bons fundamentos constitucionais, o que qualquer cidadão com uma dose razoável de bom senso facilmente consideraria, ou seja, que a proposta de referendo aprovada pela Assembleia da República não respeitava os requisitos de objectividade, clareza e precisão. Foi por isso declarada inconstitucional e não houve referendo sobre o Tratado de Amesterdão.

Em 2004, no mais recente processo de revisão constitucional, mais uma vez se perdeu a oportunidade para resolver este problema e permitir, com toda a clareza, referendar a ratificação do Tratado sobre a Constituição Europeia.

O PSD, o PS e também o CDS-PP recusaram a proposta do PCP nesse sentido, para depois aprovarem uma pseudopergunta destinada a ser considerada inconstitucional mas que teve ainda o demérito de fazer com que a Assembleia da República fosse escarnecida perante uma opinião pública que não queria acreditar que alguém se tivesse lembrado de submeter a referendo semelhante arrazoado.

Mais uma vez os partidos maioritários desta Assembleia optaram pela insensatez, à espera que o Tribunal Constitucional pudesse repor o bom senso.

Sr. Presidente, Srs. Deputados: Aparentemente, o PS e o PSD terão finalmente concluído que não há pergunta referendária que possa ser feita que tenha como consequência a decisão de ratificar ou não o Tratado Constitucional Europeu, com toda a clareza e com todas as consequências, mantendo o actual texto constitucional.

Sempre foi essa a nossa posição e seremos coerentes com ela.

Por isso, concordamos com a necessidade de abrir um processo extraordinário de revisão da Constituição e apresentaremos oportunamente o nosso projecto de revisão com a solução que nos pareça mais adequada.

Fazemo-lo, porém, com duas observações, que consideramos decisivas, quanto ao nosso posicionamento final neste processo.

Primeira: este processo de revisão deve servir única e exclusivamente para permitir o referendo sobre o Tratado Constitucional Europeu, e mais nada. Em princípio, todos os partidos afirmam circunscrever as suas propostas à questão do referendo europeu, mas todos sabemos, pela má experiência feita, que, quando os processos de revisão constitucional começam, nunca se sabe como acabam.

E no momento em que se abre um novo processo de revisão, mais uma vez extraordinário e mais uma vez anunciado pelo Partido Socialista como cirúrgico, ocorrem-nos à memória outros processos também anunciados como cirúrgicos.

Ocorre-nos a revisão constitucional de 2001, que começou por se circunscrever estritamente ao Tribunal Penal Internacional e acabou nas buscas domiciliárias nocturnas ou a revisão constitucional dita cirúrgica de 2004, que começou por três cirurgias relativas às regiões autónomas, à limitação de mandatos e à regulação da comunicação social e acabou com um autêntico harakiri constitucional, que foi a consagração do carácter supraconstitucional do Direito Comunitári

E acontece que, neste processo, a posição já manifestada pelo PSD não é tranquilizadora. O que o PSD afirmou ontem, pela voz do Sr. Deputado Luís Marques Guedes, e hoje, pela voz do Sr. Deputado Guilherme Silva, é que o PSD está disposto a viabilizar constitucionalmente o referendo europeu desde que faça negócio.

E o preço a pagar pelo negócio seria mudanças na justiça, uma lei eleitoral para as autarquias, a entidade reguladora para a comunicação social e o que mais ocorrer.

Ou seja, o PSD, afinal, não parece muito interessado, ao contrário do que já afirmou, em que o povo português se possa pronunciar em referendo sobre o Tratado da Constituição Europeia, parece mais interessado em usar essa possibilidade como moeda de troca para obter vantagens negociais sobre o PS, o que é um péssimo prenúncio para este processo de revisão.

Ainda assim, gostaríamos de acreditar que este processo de revisão, por ser necessário para referendar o Tratado da Constituição Europeia, não venha a acabar como a história da sopa da pedra: é aberto para viabilizar o referendo e, depois, acaba por servir para viabilizar outra coisa qualquer, sendo o referendo deitado pela borda fora na primeira oportunidade e sob qualquer pretexto.

Em todo o caso, estamos neste processo de boa-fé, como gastaríamos que todos estivessem. E o PS tem aqui especiais responsabilidades: ou bem que honra os compromissos que assumiu com os portugueses ou bem que cede à chantagem política do PSD.

A segunda questão que queremos deixar muito clara é a nossa discordância quanto à simultaneidade da realização do referendo sobre a Constituição Europeia com qualquer outro acto eleitoral ou referendário, e anunciamos, deste já, que votaremos contra qualquer proposta de alteração da disposição constitucional que actualmente não o permite.

Não foi por acaso que o legislador constituinte rodeou a realização do referendo com estas cautelas de não simultaneidade. Tratava-se de evitar que as opções de um acto eleitoral pudessem ser contaminadas por um debate referendário que com ele nada a tenha a ver e que a resposta a um referendo pudesse ser influenciada por um debate eleitoral estranho à pergunta em questão. Aliás , bastará recordar o que aqui mesmo afirmou o actual Ministro Alberto Costa, em nome do Partido Socialista, há apenas quatro meses, contra a simultaneidade entre referendos e eleições, para abonar o bem fundado desta nossa posição.

Podem dizer-nos que há países em que é assim e até podem repetir o exemplo de sempre, o dos Estados Unidos, onde no dia das eleições presidenciais se realizam referendos às dúzias, a par com eleições do mais diverso tipo.

Mas esse argumento só pode servir contra quem o usa, porque um país onde a maioria dos cidadãos permanece alheada dos actos eleitorais ou referendários e onde nem sempre ganha quem tem mais votos, não é, seguramente, um bom exemplo a seguir, para além de que não concordamos com uma concepção, infelizmente muito em voga em alguns sectores, segundo a qual tudo o que existe nos Estados Unidos é bom para Portugal, mesmo que seja mau para os Estados Unidos.

Os votos que fazemos é que esta proposta da simultaneidade não seja o início de mais uma trapalhada destinada a inviabilizar o referendo. É que a posição do PS já passou por três fases: na primeira fase não queria referendo, na segunda admitia o referendo, desde que, no fim, não houvesse referendo; na terceira volta a admitir o referendo, desde que haja outra eleição que impeça os portugueses de pensar no referendo ou se arranje uma nova trapalhada que impeça outra vez o referendo e que permita ao PS dizer que não teve culpa nenhuma por tão lamentável desfecho.

Mas esperemos, Srs. Deputados, que este seja um vaticínio excessivamente pessimista e que não se confirme. Ficaríamos muito satisfeitos com isso. O nosso propósito é o de conseguir que os portugueses possam ser chamados a decidir se querem ou não que o nosso país fique vinculado a um Tratado que consagra a total supremacia do direito comunitário sobre a Constituição e sobre as leis portuguesas e que o possam fazer com total transparência, depois de um debate profundo, sério e esclarecedor.

Queremos um referendo sério, sem truques e sem subterfúgios, que respeite os portugueses e a sua opinião soberana. Se for esse o objectivo de todos, podem, evidentemente, contar connosco.

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