Intervenção de João Oliveira na Assembleia de República

Aprova a Lei da Arbitragem Voluntária

(proposta de lei n.º 22/XII/1.ª)

Sr.ª Presidente,
Sr.ª Ministra da Justiça,
O Governo, certamente, fez um estudo aprofundado desta matéria e, decerto, fez uma avaliação exacta e correcta do que tem sido a aplicação da actual lei de arbitragem voluntária, de 1986, que já sofreu sucessivas alterações.
A questão que quero colocar-lhe é muito concreta: que avaliação é que o Governo fez da utilização dos mecanismos de arbitragem voluntária no âmbito do Estado? Nos processos em que o Estado foi uma das partes que solicitou os mecanismos de arbitragem, que avaliação é que o Governo fez, se é que fez, no âmbito do recurso a estes mecanismos do ponto de vista contratual, ou seja, naquelas circunstâncias em que o Estado é uma das partes de um contrato de direito privado? Que avaliação não só quantitativa mas, sobretudo, qualitativa é que o Governo fez desta matéria? Que vantagens é que o Governo reconhece na utilização destes mecanismos para o Estado quando actua como uma das partes interessadas?
(…)
Sr.ª Presidente,
Sr.as e Srs. Deputados,
Sr.ª Ministra da Justiça:
Da parte do PCP, nunca houve objecção à desjudicialização de litígios que podem e devem estar fora dos tribunais. Aliás, no domínio da proposta legislativa, temos um património que fala por nós e que, em concreto, por exemplo em relação aos julgados de paz, demonstra que não há, da parte do PCP, nenhuma objecção de fundo ou de princípio à desjudicialização de litígios que não devem, de facto, estar nos tribunais e podem, com vantagens para a eficácia e a celeridade na realização da justiça, estar fora dos tribunais, atribuídos a outro tipo de entidades que decidam sobre conflitos, particularmente de natureza privada e pessoal, em torno de direitos disponíveis e que não ponham em causa aquela que deve ser a realização da justiça nos tribunais e pela via jurisdicional.
Para além do património que referi em relação às propostas sobre os julgados de paz, acompanhámos anteriores propostas nesse sentido e que até à arbitragem diziam respeito.
Há, de facto, uma previsão constitucional, o artigo 209.º da Constituição da República Portuguesa, que enquadra devidamente aquilo que entendemos dever ser a correcta delimitação de competências e, neste caso, de poderes a atribuir aos tribunais e a outros mecanismos de resolução de litígios extrajudiciais.
No entanto, em torno da arbitragem, há algumas considerações que vale a pena ter em conta, perante a proposta de lei que o Governo aqui nos apresenta, porque, Sr.ª Ministra da Justiça, efectivamente, há algumas alterações que não são assim de tão pouca monta em relação à lei anterior, a Lei n.º 31/86, que importa ter em consideração.
Começo por dizer, Sr.ª Ministra, que, da parte do PCP, não há qualquer objecção a alguns dos objectivos que o Governo anuncia.
A questão de transformar Portugal num país com um modelo de arbitragem que, do ponto de vista da resolução de litígios no âmbito do comércio internacional, possa ser mais apetecível ou, pelo menos, possa estar em pé de igualdade com outros Estados, para que os agentes económicos portugueses não sejam colocados numa situação de desvantagem quando há necessidade de dirimir um conflito de natureza internacional, não nos parece um objectivo que não deva ser prosseguido e, portanto, nisto estamos de acordo. Tal como também estamos de acordo com a perspectiva de que, no âmbito do direito privado e daqueles que são os direitos disponíveis dos cidadãos, se possam encontrar mecanismos de resolução mais célere dos litígios e mais eficaz para ambas as partes, obtendo soluções que, do ponto de vista da conformação dos interesses conflituantes em causa, possam ser satisfatórias.
Portanto, estamos inteiramente de acordo com esses dois objectivos e entendemos até que, desse ponto de vista, há possibilidade de melhorar os mecanismos da arbitragem.
Há, no entanto, uma preocupação que é importante frisar neste debate, como alerta, embora não seja esta a sede para resolver estes problemas. É que, quer em relação à arbitragem, quer em relação a outros mecanismos de resolução extrajudicial de conflitos e litígios, surge-nos sempre um argumento ponderoso, que é o da incapacidade do Estado para dispor de meios a afectar ao sistema judicial que permitam resolver todo o tipo de conflitos e, portanto, por uma questão de economia e exiguidade de meios ao dispor da justiça e dos tribunais, têm de ser encontrados mecanismos de resolução alternativa dos litígios, mecanismos de resolução extrajudicial dos conflitos. E a verdade, Sr.ª Ministra, e esta não é uma responsabilidade particular deste Governo — já no debate da lei de 1986 encontrámos este tipo de argumentos —, é que nunca são resolvidos os problemas do sistema de justiça e dos tribunais e, sucessivamente, vamos sendo confrontados com propostas que, no domínio da arbitragem, no domínio da mediação e noutros domínios, vão retirando cada vez mais matérias da competência dos tribunais para outros fora, num movimento que é claro e incontornável, que é o da transferência da função judicial para o domínio privado, o que, em muitos casos, nos levanta fortíssimas objecções. Por exemplo, não acompanhamos, de forma nenhuma, as soluções ao nível da arbitragem fiscal ou dos mecanismos de mediação que foram introduzidos, particularmente no domínio penal.
Mas, Sr.ª Ministra, há um outro problema, que é decisivo, e que tem a ver com a pergunta que lhe fiz, relativo à utilização dos mecanismos da arbitragem por parte do Estado. Há uma realidade que se foi consolidando ao longo do tempo — no debate de 1986, esta não era uma questão presente, mas, hoje, não pode ser escondida e, infelizmente, ainda não foi referida neste debate, nem sequer pela Sr.ª Ministra, na resposta à pergunta que formulei —, a qual tem a ver com a utilização, por parte do Estado, dos mecanismos da arbitragem, de uma forma que, Sr.ª Ministra, se tem demonstrado verdadeiramente ruinosa.
A utilização dos tribunais arbitrais no domínio, por exemplo, das parcerias público-privadas, Sr.ª Ministra, é verdadeiramente ruinosa para o Estado.
Infelizmente, aquilo a que temos assistido na definição dos contratos de parcerias público-privadas é que a regra é a de atribuir a tribunais arbitrais aquilo que devia ser uma competência dos tribunais judiciais.
O prejuízo que daí resulta para o Estado tem sido por demais evidente.
Portanto, Sr.ª Ministra, aquilo que, nesta proposta de lei, diz respeito à possibilidade de recurso, pelo Estado, à arbitragem voluntária merecia, julgamos nós, especiais cautelas.
Sr.ª Ministra, por isso, não votaremos favoravelmente esta proposta de lei, mas, obviamente, em sede de especialidade, apresentaremos propostas que possam resolver esse problema.

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