Intervenção de Lino de Carvalho na Assembleia de República

Alteração das regras do sigilo bancário e garantia da transparência fiscal

Senhor Presidente, Senhores Deputados,

O PCP submete hoje de novo à apreciação da Assembleia da República um projecto de lei que assume o objectivo essencial de criar melhores condições para que, em Portugal, seja dado um salto qualitativo na prevenção do branqueamento de capitais e da criminalização da economia.

O diagnóstico quanto à enorme dimensão e gravidade do branqueamento de dinheiro proveniente do crime organizado e quanto à insuficiência prática dos meios de combate que contra ele têm sido mobilizados suscitam a unanimidade de princípio, no plano nacional e na generalidade das instâncias internacionais.

No entanto, os fracos resultados obtidos no combate ao branqueamento de capitais são particularmente impressivos. A observação das estatísticas que vão sendo divulgadas revelam um progresso tão lento e uma expressão tão reduzida que não podemos, todos nós, deixar de questionar as causas reais deste estado de coisas.

Não basta repetir até à exaustão que o branqueamento de capitais é extraordinariamente difícil de controlar. É preciso reflectir sobre o que permite que o branqueamento seja tão fácil e faz com que o seu controlo seja tão difícil.

Há alguns factos que são unanimemente reconhecidos:

1º - O branqueamento de capitais envolve somas de dinheiro verdadeiramente astronómicas;

2º - As operações de branqueamento de capitais relacionam-se, por definição, com as actividades criminosos mais poderosas, lucrativas e organizadas. Quando nos referimos à necessidade imperiosa de combater com eficácia o branqueamento de capitais, temos em mente não apenas o crime de branqueamento em si mesmo, mas o facto desta actividade constituir o aparelho circulatório da criminalidade organizada. Ao combater o branqueamento de capitais estamos a combater o tráfico de droga, de pessoas, de armas, o terrorismo ou a corrupção.

3º - As operações de branqueamento processam-se, também por definição, utilizando a economia e o sistema financeiro legal e beneficiando dos mecanismos de desregulação, de evasão fiscal e de sigilo que são indissociáveis da globalização neo-liberal que tem vindo a ser edificada de mãos dadas pelos grandes grupos financeiros e pelos governos que têm servido diligentemente os seus interesses.

4º - O combate ao branqueamento de capitais, não obstante a existência de mecanismos legais preventivos e repressivos tem-se revelado em larga medida ineficiente.

5º - A impunidade de que os maiores criminosos internacionais continuam a beneficiar com a cumplicidade objectiva das instituições mais respeitáveis é um verdadeiro insulto a todas as consciências que aspiram a um mundo mais decente e um perigo mortal para a própria democracia.

Estes factos não podem deixar de ser motivo de séria reflexão.

Segundo estimativas recentes, mais de 50% dos fluxos financeiros mundiais transitam por paraísos fiscais. Eram 5% há 30 anos. O dinheiro branqueado em paraísos fiscais está avaliado em 5 mil milhares de milhões de dólares anuais, através de 4500 bancos e de milhões de sociedades “fantasma”.

Pela sua perícia bancária e porque até um dos seus membros é um paraíso fiscal, a União Europeia é um lugar privilegiado do branqueamento mundial. Os principais bancos mundiais estão directamente implantados nos paraísos fiscais mais reputados, como as Ilhas Caimão e são mestres do branqueamento por intermédio de câmaras de compensação verdadeiramente opacas e da SWIFT, uma sociedade não controlada de telecomunicações mundiais para as transacções financeiras interbancárias.

O que isto significa obviamente é que a economia legal está contaminada pela economia do crime e a criminalização da economia global tornou-se um fenómeno incontornável.

É verdade que não faltam convenções e resoluções internacionais para combater o branqueamento de capitais, nem instâncias internacionais, como a o Conselho da Europa, a OCDE, o G-7, através do GAFI, a União Europeia, a própria ONU, onde este problema seja constantemente estudado e debatido. Não faltam Convenções, Recomendações, Resoluções, Directivas ou tomadas de posição conjuntas sobre o combate ao branqueamento de capitais. Também no plano nacional, a legislação tem vindo a ser constantemente aperfeiçoada na última década, e o PCP orgulha-se de ter vindo a contribuir activamente para isso.

A verdade porém é que os resultados são escassos. E esta escassez coloca-nos perante a evidência de uma Justiça normalmente implacável em relação aos mais fracos e ineficiente em relação aos mais poderosos.

Mas se reflectirmos sobre as razões deste estado de coisas somos forçados a concluir que os obstáculos a um combate eficaz ao branqueamento de capitais são múltiplos e poderosos.

Desde logo, há Estados que não colaboram. Depois, há bancos e outras instituições financeiras que não colaboram, apesar dos deveres legais de colaboração que sobre eles impendem. Depois, existe da parte da generalidade dos Estados uma enorme complacência em relação ao funcionamento de mecanismos financeiros que propiciam o branqueamento de capitais e essa complacência é uma das expressões mais evidentes da real submissão da política de muitos Estados aos interesses do poder económico.

É que existe uma enorme contradição entre, por um lado, as resoluções e recomendações e a reprovação verbal das práticas criminosas, e por outro lado, a adopção de orientações globais de desregulamentação que a facilitam. Não é possível defender com seriedade uma política de combate ao branqueamento de capitais que tenha um mínimo de eficácia e defender ao mesmo tempo a intocabilidade dos paraísos fiscais ou do segredo bancário que protegem objectivamente essa prática.

Ninguém ignora o papel dos centros financeiros offshore no branqueamento de capitais provenientes das mais hediondas actividades criminosas. Mas esses centros permanecem incólumes porque constituem uma peça fundamental da globalização financeira orientada pelos princípios neo-liberais, porque o aumento das actividades, dos lucros e do poder das maiores empresas transnacionais anda de braço dado com a existência desses centros, porque os bancos internacionais utilizam esses “paraísos” para operações altamente lucrativas e para se eximirem ao pagamento de impostos, e ainda porque não faltam governos de países industrializados que, ao abrigo da confidencialidade, utilizam os centros offshore para as operações que mais lhes convenham.

O problema é acima de tudo, de vontade política. Vontade de combater o crime organizado, doa a quem doer. Vontade de fazer cumprir as determinações constantes da lei e das convenções internacionais sobre branqueamento de capitais. Vontade de dotar as instituições responsáveis pela prevenção e pela repressão da criminalidade dos meios materiais e institucionais necessários uma acção eficaz e proactiva.

E este aspecto, a proactividade, é decisivo, no que se refere ao combate ao crime de colarinho branco. Não basta que, após uma condenação por tráfico de droga ou por corrupção se vá em busca do dinheiro sujo entretanto gerado. É preciso que existam meios para detectar o branqueamento de capitais em si mesmo, como crime autónomo, e a partir daí apertar o cerco à criminalidade organizada.

Esta proactividade implica forçosamente coordenação e troca de informação entre as diversas entidades que têm obrigações legais a cumprir na prevenção da criminalidade económica e financeira. Neste domínio, a situação em Portugal é confrangedora. Várias entidades têm, em Portugal, responsabilidades legalmente atribuídas em matéria de prevenção e combate ao branqueamento de capitais. Umas no domínio da investigação e acção penal; outras no domínio da prevenção. No entanto, vivem de costas voltadas. Encontrar um meio desburocratizado de coordenação institucional entre representantes de entidades como a PGR, a PJ, as entidades de supervisão do sistema financeiro, e várias entidades fiscalizadoras, sem alteração ou interferência nas competências legais de cada uma destas entidades, mas para troca de informação e coordenação de actividades contra o branqueamento de capitais, é uma exigência urgente para uma melhor intervenção neste domínio.

Falta em Portugal uma estrutura com competência de análise e intervenção integrada, à semelhança do Programa Mundial da ONU contra o Branqueamento de Capitais, ou da experiência italiana do UIC (Ufficio Italiano dei Cambi), e para suprir essa insuficiência o PCP propõe a instituição de um Programa Nacional com o objectivo de prevenir e combater o branqueamento de capitais, prevenir a criminalização da economia e a criminalidade organizada e a criação de uma Comissão Nacional que lhe dê concretização.

E estamos evidentemente disponíveis para considerar todos os aperfeiçoamentos pertinentes à legislação nacional sobre a prevenção e combate ao branqueamento de capitais. Nesse sentido, consideramos o projecto de lei do PS também hoje em discussão como um contributo positivo para a correcta transposição para o Direito Interno das aquisições mais recentes do Direito Comunitário Europeu sobre esta matéria.

Termino, senhor Presidente e senhores Deputados, com um apelo para que não se quebre nesta legislatura o património de consenso que tem existido quanto aos instrumentos legislativos de combate ao branqueamento de capitais e para que considerações de oportunidade política da maioria não se sobreponham à consideração ponderada das propostas hoje em discussão.

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