Intervenção de

Alta Velocidade Ferroviária

 

Colóquio sobre Alta Velocidade Ferroviária

Começo por dirigir uma saudação a todos os participantes deste Colóquio, pelos contributos e reflexões que trouxeram ao debate. Estão em causa opções decisivas para um sector estruturante para a vida económica e social e estratégico para o desenvolvimento do país.

Sempre alertámos para a necessidade de analisar as várias alternativas com rigor e transparência, permitindo uma decisão política que resulte de uma fundamentação técnica sólida e que tenha efectivamente em conta um debate amplo, sério e participado.

Mas o problema começa quando estas discussões têm lugar sem que o País tenha um instrumento básico e fundamental, cuja criação vimos defendendo há décadas: um verdadeiro Plano Nacional de Transportes, digno desse nome, que permitisse definir uma estratégia articulada de desenvolvimento neste domínio.

Aliás, o problema coloca-se até dentro da própria ferrovia. E esta é outra questão em que o PCP insiste há muito tempo: é imprescindível que estas opções sobre a alta velocidade estejam enquadradas numa estratégia criteriosamente definida quanto à integração destas linhas na rede ferroviária do nosso País - ou seja, a articulação com a ferrovia convencional. E obviamente não estamos a falar apenas de pontos de contacto entre "linha velha" e "linha nova". Estão em causa questões como as bitolas, a integração das redes, a articulação do serviço de transporte ferroviário ou ainda a questão central da própria estratégia de investimento (e desenvolvimento!) das linhas convencionais.

A rede ferroviária nacional tem de se modernizar e desenvolver, diminuir tempos de trajecto, melhorar os seus níveis de qualidade. E isso implica uma opção de investimento público que signifique a ruptura com as políticas que têm sido seguidas. Caso contrário, os projectos de alta velocidade ferroviária ficarão muito longe de corresponder ao seu potencial.

Ao fim e ao cabo, o que está em causa é a definição de critérios para um investimento de qualidade. É por isso que suscitamos há anos uma questão mais importante do que poderá parecer para alguns: a parametrização de velocidade nos projectos das novas linhas. De certa forma, coloca-se a questão do próprio conceito de Alta Velocidade Ferroviária.

É que, ao longo dos anos, ouvimos constantemente falar em "TGV". E se essa designação entra no ouvido e é mais fácil de utilizar, não é menos verdade que, sendo esta uma marca como qualquer outra, não será necessariamente a opção que se impõe para o nosso País.

E aqui importa recordar que a UIC [União Internacional de Caminhos de Ferro] classifica, nos mesmos termos, como Alta Velocidade Ferroviária / Categoria I todas as linhas de caminho-de-ferro com velocidade igual ou superior a 250 km/h - mesmo que assim não pareça, quando verificamos os discursos e as opções do Governo.

É que, ainda segundo a UIC, as duas únicas linhas de caminho-de-ferro em todo o mundo que estão a ser projectadas para velocidades de 350 km/h são Pequim/Xangai (com uma extensão de 1320 km) e... Lisboa/Elvas (com 206 km)! Ora, quer nesta ligação, quer mesmo na ligação Lisboa/Porto (projectada para uma velocidade de 300 km/h), opções como estas têm que ser postas em causa.

Sejamos claros: estes projectos "topo de gama", por si só, não conferem nenhum atestado de "coragem política" ou de "visão de futuro" a nenhum governante - pela simples razão de que não está de modo nenhum demonstrada a sua adequação ao contexto do nosso País. E decisões deste tipo carecem de uma justificação que seja particularmente bem fundamentada.

Questionámos o Governo durante anos sobre esta matéria. O Governo respondeu-nos este mês, dizendo que a diferença de custos entre 250 e 300 km/h é de 5%. O que ouvimos neste Colóquio é suficiente para desmentir estas afirmações.

Estamos a falar de implicações substancialmente diferentes para os parâmetros da linha, para os custos de construção e manutenção da infra-estrutura ferroviária, dos sistemas de sinalização, mas também para o traçado da via (nos raios de curvatura, pendentes, etc.), com tudo o que isso representa ao nível dos fortíssimos impactos sobre o território e as populações.

A este propósito, não podemos deixar de sublinhar que estes projectos devem ser realizados em diálogo com as populações e o Poder Local Democrático, respeitando os direitos e os interesses das comunidades locais, encontrando alternativas e soluções adequadas, medidas de compensação e apoio face aos impactos causados. E não é isso que temos verificado, em muitas regiões do nosso País.

A questão da parametrização das linhas e dos seus projectos continua a colocar-se, mas ganha ainda mais actualidade nas decisões sobre o material circulante, do seu preço e custos de manutenção, da questão central da incorporação nacional das tecnologias - quer na construção quer na manutenção do material circulante, sistemas de sinalização e comunicações, etc. Ou ainda ao nível dos consumos de energia na operação ferroviária.

Um projecto como este tem de ser visto, não como uma encomenda chave-na-mão em que se compra tudo feito e se "manda vir de fora", mas sim como uma oportunidade para valorizar a produção nacional, a actividade económica, a Investigação e Desenvolvimento nas áreas científicas e tecnológicas. E nas decisões sobre linhas, velocidades de projecto, material circulante, etc., é isto que está em causa - e "isto" é muitíssimo mais importante do que 14 minutos a mais ou a menos na viagem!

Onde é realmente indispensável aprender com os erros é na definição dos modelos de negócio, com as famosas "parcerias público privado". A obsessão pelo deficit das contas públicas e os ditames do Pacto de Estabilidade estão a resultar numa política suicidária: para que estes investimentos sejam classificados fora das contas do Estado, o Estado não paga na construção - mas paga sempre mais ao longo do tempo (neste caso, em concessões de 40 anos).

 O diagnóstico repete-se e as conclusões nunca mudam: o Estado sai sempre a perder. É a privatização do lucro e a socialização do prejuízo.

Os sucessivos  relatórios de auditoria do Tribunal de Contas não podiam ser mais claros. Especificamente com os cinco Acordos de Reequilíbrio Financeiro estabelecidos entre o Estado e a Lusoponte, já depois de entrar em vigor o Contrato de Concessão, as verbas entregues àquela empresa - e citamos o relatório do Tribunal - «traduziu-se numa mais-valia para esta», equivalente a 909 milhões de euros a preços constantes, ou 1502 milhões de euros a preços correntes!

Já a PPP do "comboio da ponte" [Eixo Ferroviário Norte/Sul] foi considerada pelo Tribunal como um projecto «só viável com os pagamentos a efectuar pelos contribuintes», com o Estado a oferecer à empresa concessionária uma rendibilidade accionista garantida de 11%! De tal forma que o TC teve que escrever nas Recomendações que «o Estado não deverá proporcionar rendibilidades accionistas excessivas em relação ao mercado». Veja-se a que ponto chegámos!

Está na altura de largar este modelo, olhar para os factos e acabar com o mito da "inferioridade do sector público".

Veja-se o caso da Linha do Norte e da Linha do Sul. Na primeira, "repartida" por empresas privadas de vários países, gastou-se rios de dinheiro numa obra que nunca chegou ao fim; na segunda, inteiramente assumida, projectada e coordenada pelos técnicos da REFER, a obra foi concluída sem sobressaltos, cumprindo todos os objectivos fundamentais em termos de prazos, custos, condições de exploração e segurança. Logo a seguir, a Administração da REFER desmantelou a equipa e dispersou os técnicos por vários serviços - mas o exemplo ficou e não pode ser esquecido.

É esta linha de marginalização das empresas públicas que tem de ser invertida. Não basta «recolher as opiniões de todas as empresas», como diz o Governo. Não se pode aceitar que se abra o caminho ao desmantelamento e à privatização da CP, como apontam os novos Estatutos da empresa, decididos pelo Governo e publicados há dias no Diário da República.

Deve ser a REFER a assegurar a gestão da infra-estrutura e deve ser a CP a fazer a exploração do serviço, no contexto da rede ferroviária nacional como um todo. Só assim se pode garantir que o sistema ferroviário tenha uma dinâmica integrada, com complementaridades, interfaces adequados e segurança. Só assim o sistema ferroviário poderá desempenhar o seu papel estruturante e estratégico para a economia nacional, para as populações e para o país.

As políticas de liberalização já mostraram os seus resultados. Eles estão à vista nas pescas, na agricultura, na indústria. Não podemos continuar nesse caminho.

O investimento público (de qualidade!) é uma ferramenta fundamental para o desenvolvimento e a qualidade de vida da população. A resposta à crise económica, à recessão, ao desemprego, não é cancelar ou adiar o investimento - é fazê-lo correctamente! E não é isso que nos propõem, nem o PS nem o PSD.

A opção não pode resumir-se, nem se resume, a uma escolha entre fazer desta maneira ou não fazer nada; nem sequer é uma escolha entre fazer mal agora ou adiar, para fazer igual depois. Não estamos condenados a essas "inevitabilidades"! A exigência que se coloca é de fazer diferente e adoptar outra política de investimento.

O que é urgente e indispensável é assumir uma orientação estratégica efectivamente voltada para o desenvolvimento integrado, harmonioso, sustentado e solidário do nosso País, para a correcta gestão dos recursos públicos, para a defesa do emprego e da produção nacional. Uma política que esteja ao serviço do interesse e da soberania nacional.

O PCP não desistirá de lutar pela construção dessa mudança.

Disse.

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