1. A realização da Jornada Mundial da Juventude 2023/Lisboa, que decorreu entre os dias 1 e 6 de Agosto, constituiu uma iniciativa que pelo seu impacto e participação ultrapassou em muito a dimensão religiosa a que mais directamente estava associada. A Jornada representou uma oportunidade para um amplo encontro multicultural, para dar a conhecer o nosso País e o seu povo a milhares de jovens de muitos países de todos os continentes.
2. A sua dimensão e exigências de preparação, designadamente para o acolhimento de centenas de milhar de participantes, pôs em evidência muitas das insuficiências que persistem no País designadamente no plano das infraestruturas e de acesso a serviços. Muitas das dificuldades e incómodos com que os que aqui vivem e trabalham se viram confrontados neste período – sejam os da mobilidade e transportes ou de alguns serviços essenciais – radicam nessas mesmas insuficiências e debilidades estruturais que para serem atenuadas exigiram concentração de meios e recursos com prejuízo para a sua garantia e cobertura mais geral.
3. Portugal é um Estado laico, com a separação da igreja e do Estado e a liberdade religiosa garantida pela Constituição da República Portuguesa. Esta separação entre as igrejas e o Estado, que envolve a responsabilidade das igrejas nas suas próprias iniciativas, não exclui que, em função de critérios públicos, haja cooperação de vário tipo na realização de iniciativas, particularmente com a Igreja Católica dada a sua expressão em Portugal. A separação do Estado e da Igreja, que genericamente se classifica como “Estado laico” não é sinónimo de hostilização de crentes ou de recusa de relacionamento e cooperação com entidades que representam as vária confissões de fé, designadamente a católica. A laicidade do Estado afirma-se e realiza-se, particularmente, pela não ingerência de poderes religiosos sobre as esferas de decisão política, pela não assumpção e difusão da doutrina religiosa, a partir de poderes e instrumentos públicos. É no respeito pela separação entre Estado e religiões e, em simultâneo, no respeito pela liberdade de culto, em si mesma constitutiva da liberdade política de cada um, que o PCP se posiciona, recusando divisões artificiais ou acessórias que não favorecem a luta e a intervenção comum, a unidade e a convergência na acção.
4. Num balanço final, a realizar,importa avaliar o grau de investimento próprio realizado pela entidade organizadora – a Igreja Católica – nesta iniciativa, bem como a dimensão dos investimentos públicos e o seu equilíbrio e proporcionalidade face aos meios disponíveis para fazer face às dificuldades reais com que os trabalhadores e a população se confrontam. Neste quadro ainda mais necessário se torna que esses meios sejam agora efectivamente postos à disposição da população garantindo equipamentos de regular usufruto com preservação do espaço para o uso a que se destinam. Questão tão mais pertinente quanto a experiência vivida ali ao lado, no território da então Expo 98, revela como são fortes as pressões para adulterar as funções originárias a partir dos interesses urbanísticos e especulativos a eles associados.
As noticias que sugerem situações de práticas e actos de menor escrutínio e rigor em aspectos de gestão, designadamente de contratação pública devem ser esclarecidas. São questões que não são exclusivas da Jornada, e se por um lado representam a linha de ataque à gestão pública a pretexto das limitações extremas que lhe são impostas para tolher a sua eficiência, são por outro lado, caso se venham a comprovar irregularidades e aproveitamentos, em muitas circunstancias resultado directo de opções e práticas ligadas à política de direita e a interesses económicos dominantes. Podendo e devendo ser escrutinados investimentos e recursos públicos alocados à realização da Jornada, em grande parte em equipamentos que vão perdurar, não deve deixar de se registar o silêncio de alguns quando se trata da entrega de recursos vultuosos e cíclicos a eventos associados ao grande capital de que é exemplo a Websummit.
5. Para lá de tentativas ou actos de instrumentalização e aproveitamento político da Jornada, de que o papel da CML e do seu presidente é expressão, o PCP deplora e denuncia os que a partir da realização deste evento viram uma oportunidade, como já antes ocorrera a partir de outros pretextos como o da epidemia, para questionar direitos, criminalizar a luta dos trabalhadores, legitimar a limitação de liberdades e garantias.
6. Para lá da sua dimensão religiosa, esta Jornada fica sobretudo marcada pela introdução de temas que o Papa fez questão de sublinhar quer quanto a posicionamentos e olhares sobre processos políticos, sociais, económicos e ambientais, quer quanto a palavras de estimulo à iniciativa dos jovens na superação de obstáculos e dificuldades ou no enfrentamento de medos neles inculcados para tolher a sua intervenção.
O tema da paz e dos caminhos para a solução dos conflitos e guerras, o contraste entre a aposta armamentista em prejuízo da resposta e combate às desigualdades, o avolumar das injustiças e o seu alimento em formas de exploração e precarização da vida, designadamente dos jovens, a questão das migrações, a protecção do ambiente e a sua relação com o social, constituem, sem prejuízo de pontos de vista e ângulos de abordagem distintos, afirmações com inegável significado e actualidade. São palavras e posicionamentos que devem ser vistos à luz do tempo em que foram expressos. Podem ou não ter prolongamento ou seguimento na acção da Igreja ou mesmo conhecer percursos de colisão com a prática dos que, fingindo enaltecer as palavras do Papa, as ignorem na hora de agir.
7. O respeito pela liberdade religiosa, o relacionamento e a cooperação, a atitude de não confronto com a(s) igreja(s), que se assume como questão programática, logo duradoura e não conjuntural, não significa que se prescinda de ideias e apreciações próprias sobre o que elas representam como espaço e suporte de concepções idealistas, de difusão de um misticismo desfavorável à apreensão dos fenómenos objectivos, de um atentismo susceptível de tolher a acção verdadeiramente transformadora do mundo, a luta dos trabalhadores, da juventude, dos povos, dando concretização a sonhos milenares da humanidade. Nem tão pouco de abandono da concepção materialista e dialéctica da vida e da sociedade que assumidos na consciência das massas são um instrumento decisivo no processo de emancipação social.