Projecto de Lei N.º 750/XIV/2.ª

Actualização da caracterização e diagnóstico do estado das áreas protegidas e regime de aprovação de projectos

Exposição de Motivos

A defesa e salvaguarda do ambiente e dos valores naturais associada à promoção da qualidade de vida das populações são questões que o PCP vem desde há muito a considerar e sobre as quais tem vindo a intervir.

Já em 1990, o PCP apresentou na Assembleia da República uma iniciativa com vista a estabelecer a Estratégia Nacional de Conservação da Natureza. Posteriormente em 1992 trouxe à discussão a proposta de realização da Convenção sobre o Ambiente e Desenvolvimento, preparatória da participação na Cimeira da Terra.

Posteriormente, o PCP tem vindo a apresentar, em diversos momentos, as suas propostas no âmbito das Bases da Política de Ambiente, onde se inclui a defesa dos valores naturais e a preservação da biodiversidade.

E nesta matéria, já na presente XIV Legislatura, o PCP apresentou, para além do Projeto de Lei de Bases da Política de Ambiente e da Ação Climática, uma iniciativa visando o desenvolvimento de um Programa de Identificação, Controlo e Erradicação de Espécies Exóticas Invasoras, de Espécies Oportunistas e outras pragas nas áreas da Rede Nacional de Áreas Protegidas, bem como a proposta de Estrutura Orgânica e Forma de Gestão das Áreas Protegidas.

Para o PCP, dar concretização à defesa dos valores naturais e da biodiversidade, passa pelo cumprimento integral do que a Constituição da República Portuguesa estabelece, nomeadamente no número 2 do artigo 66.º, onde se define que “incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios e com o envolvimento e a participação dos cidadãos” “prevenir e controlar a poluição e os seus efeitos e as formas prejudiciais de erosão”, “ordenar e promover o ordenamento do território, tendo em vista uma correta localização das atividades, um equilibrado desenvolvimento socioeconómico e a valorização da paisagem”, assim como “criar e desenvolver reservas e parques naturais e de recreio, bem como classificar e proteger paisagens e sítios, de modo a garantir a conservação da natureza”.

Contudo, tem-se vindo a assistir a um afastamento do Estado no cumprimento destas suas tarefas fundamentais, com o Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) cada vez mais ausente do território nacional que lhe cabe proteger e valorizar, destacando-se que a criação de Áreas Protegidas e a atribuição da sua tutela ao ICNF não correspondeu, nem corresponde, ao reforço dos seus meios técnicos ou humanos para responder a esta missão.

Considerando o Mapa de Pessoal do ICNF publicado para o ano 2020 e a distribuição de pessoal pelas diferentes direções regionais, verifica-se que 1312 técnicos serão responsáveis pelo acompanhamento dos cerca de 740 000 hectares de terrenos integrados na rede nacional de áreas protegidas, a que corresponde um rácio de mais de 560 hectares por técnico, o que compromete a execução das diferentes tarefas que são exigidas em matéria de planeamento, ordenamento, monitorização e intervenção nas diferentes áreas protegidas. De realçar também o decréscimo de assistentes operacionais que se fará sentir a curto prazo, sendo que 172 destes trabalhadores se encontram com vínculos precários.

Merece também particular referência o facto de que os diferentes Planos de Ordenamento de Áreas Protegidas, que se mantém em vigor, foram aprovados, na sua maioria, há mais de 10 anos, não refletindo o estado actual do território, não constituindo base de referência credível para análise e aprovação de futuros projetos e intervenções.

A realidade destes territórios tem vindo a ser, em muitos casos, profundamente alterada em função de projetos e intenções de intervenção que foram sendo permitidas ao longo dos últimos 10 anos, bem como à falta de acções com vista à defesa e salvaguarda do património natural em presença, razão maior da classificação destas áreas.

Em muitos casos, as próprias regras estabelecidas para a aprovação de novos projetos e intenções de intervenção não têm em conta as alterações profundas que vão sendo concretizadas, nem os impactes cumulativos resultantes do conjunto total de intervenções e pressões sobre os territórios incluídos em áreas protegidas.

A eliminação das estruturas diretivas de cada área protegida e a visão que aponta mais para o uso recreativo destes territórios e para a permissão de instalação de diferentes projetos sem uma avaliação de impactes ou de incidências ambientais que vá considerando a influência das diferentes intervenções no seu conjunto, coloca em causa a defesa e salvaguarda dos valores naturais e o respeito pela defesa do ambiente e da biodiversidade em harmonia com as atividades tradicionais e com respeito pela sustentável qualidade de vida das populações.

Um futuro de desenvolvimento sustentável para as áreas protegidas requer que se atualize e se avalie o estado de conservação dos valores naturais, se identifiquem os principais impactes ambientais das atividades económicas sobre estes territórios, numa perspetiva cumulativa, se avaliem as necessidades das populações aí presentes e se tomem as medidas de gestão e ação adequadas para garantir a defesa do ambiente, da qualidade de vida e das actividades tradicionais que constituem parte integrante do património e factor de valorização do território.

Para atingir este propósito é urgente proceder à caracterização e diagnóstico atuais nos diferentes territórios integrados em áreas protegidas e estabelecer capacidades de carga admissíveis relativas às diversas atividades económicas, excluindo as atividades tradicionais e utilização de serviços e infraestruturas, de modo a assegurar o respeito pela defesa do ambiente, da biodiversidade, das populações e das atividades tradicionais.

A conservação da Natureza, em particular nas áreas protegidas, requer a responsabilização do Estado nesta tarefa, envolvendo as estruturas nacionais e regionais em colaboração com as autarquias locais, garantindo um caminho visando a defesa do meio ambiente, a valorização da presença humana no território, a defesa do ordenamento do território e a promoção de um efetivo desenvolvimento regional.

Nestes termos, ao abrigo da alínea b) do artigo 156.º da Constituição da República e da alínea b) do n.º 1 do artigo 4.º do Regimento da Assembleia da República, os Deputados abaixo-assinados, do Grupo Parlamentar do PCP, apresentam o seguinte Projeto de Lei:

Artigo 1.º

Objeto

A presente Lei estabelece o processo para a atualização da caracterização e diagnóstico do estado de conservação dos valores naturais e dos impactes ambientais cumulativos no território abrangido por cada Área Protegida de âmbito nacional e regional, local e a sua consideração nos instrumentos de gestão territorial e o regime para aprovação de projetos em território inserido na Rede Nacional de Áreas Protegidas.

Artigo 2.º

Definições

Para efeitos da presente Lei, entende-se por:

  1. Área Periférica – são áreas localizadas numa faixa de 500 m em torno de áreas protegidas;
  2. Áreas Protegidas - áreas classificadas ao abrigo do Decreto-Lei n.º 142/2008, de 24 de julho e dos respetivos diplomas regionais de classificação, em que a biodiversidade ou outras ocorrências naturais apresentem, pela sua raridade, valor científico, ecológico, social ou cénico, uma relevância especial que exija medidas específicas de conservação e gestão, em ordem a promover a gestão racional dos recursos naturais e a valorização do património natural e cultural, regulamentando as intervenções artificiais susceptíveis de as degradar;
  3. Atividade tradicional – actividade humana, na generalidade não intensiva, características de uma região ou parcela de território, incluindo, nomeadamente, processos artesanais, usos e costumes tradicionais.
  4. Avaliação de Incidências Ambientais (AIncA) - Procedimento análogo ao de Avaliação de Impactes Ambientais, prévio ao licenciamento de Projetos, destinado a avaliar as incidências e efeitos locais sobre o ambiente e qualidade de vida das populações, através da identificação das principais condicionantes existentes e dos fatores ambientais suscetíveis de serem afetados, bem como estabelecer medidas de minimização e medidas de monitorização adequadas aos mesmos;
  5. Capacidade de carga – Limite aceitável em diferentes níveis (dimensão, área ocupada, ocupação humana, emissões, etc.) para a instalação de projetos ou desenvolvimento de actividades económicas, com exceção das atividades tradicionais, numa determinada região ou área, de forma a minimizar os impactes ambientais induzidos, salvaguardando o equilíbrio e a sustentabilidade dos ecossistemas e valores naturais, das infraestruturas e dos serviços existentes;
  6. Incidências cumulativas – interferências e efeitos no ambiente que resultam do Projeto em associação com a presença de outros projetos, existentes ou previstos, bem como de projetos complementares ou subsidiários;
  7. Projeto - a realização de obras de construção ou de outras instalações, obras ou intervenções no meio natural ou na paisagem, com exceção das actividades tradicionais, incluindo as intervenções destinadas à exploração de recursos naturais.

Artigo 3.º

Âmbito de aplicação

  1. Estão sujeitas ao processo de atualização da caracterização e diagnóstico do estado de conservação dos valores naturais e dos impactes ambientais cumulativos todas as áreas protegidas inseridas na Rede Nacional de Áreas Protegidas (RNAP).
  2. Para cada área protegida inserida na RNAP são estabelecidas as capacidades de carga admissíveis para diferentes tipologias de Projetos e de atividades económicas, bem como um indicador da capacidade de carga global.
  3. Estão sujeitos à aplicação do regime de Avaliação de Incidências Ambientais estabelecido na presente Lei os projectos que não se destinando ao exercício e promoção de atividades tradicionais, sejam suscetíveis de produzir efeitos negativos sobre o ambiente e os valores naturais, que se localizem total ou parcialmente em áreas integradas na RNAP, ou se localizem em áreas periféricas a estas, que não sejam abrangidos pelo Regime Jurídico de Avaliação de Impactes Ambientais e/ou que não tenham sido submetidos a uma avaliação cumulativa de impactes ambientais.

Artigo 4.º

Processo de atualização da caracterização e diagnóstico do estado de conservação dos valores naturais

  1. O Governo promove o processo de atualização da caraterização e diagnóstico do estado de conservação dos valores naturais nos territórios integrados em áreas protegidas consideradas no âmbito da presente Lei, coordenado pelo Instituto da Conservação da Natureza e Florestas (ICNF).
  2. O processo de actualização referido no número anterior envolve, para cada área protegida, a análise de, pelo menos, os seguintes aspetos:
    1. análise dos elementos de base constantes dos planos de ordenamento em vigor e identificação das alterações registadas no território integrado em cada área protegida em termos de uso do solo e de atividades económicas, excluindo as atividades tradicionais;
    2. identificação dos impactes das alterações ao uso do solo e atividades económicas, excluindo as atividades tradicionais sobre os valores naturais, infraestruturas e qualidade de vida das populações;
    3. avaliação da influência das alterações referidas nas alíneas a) e b) sobre os objetivos de conservação da natureza e biodiversidade definidos para cada área protegida;
    4. identificação, qualificação e quantificação das pressões e ameaças à salvaguarda dos valores naturais, da operacionalidade de infraestruturas e qualidade de vida das populações;
    5. atualização da cartografia de habitats e de condicionantes ao uso do solo e actividades económicas, excluindo as actividades tradicionais, com identificação de áreas prioritárias para a conservação da natureza a integrar nos instrumentos de gestão territorial em vigor.
  3. O processo de atualização referido no número 1 do artigo 4.º da presente Lei é coordenado pelo Instituto da Conservação da Natureza e Florestas em articulação com a Agência Portuguesa do Ambiente e com as autarquias locais cujo território esteja inserido em áreas protegidas.
  4. Para execução da actualização da caracterização e diagnóstico do estado de conservação dos valores naturais é constituido um grupo de trabalho para cada área protegida integrando elementos das direções regionais do ICNF e das comissões de coordenação e desenvolvimento regional territorialmente competentes, elementos designados pelas autarquias locais para as representar e representantes de instituições cientificas e de investigação, do ensino superior público, que desenvolvam trabalhos no âmbito da salvaguarda e conservação da natureza e ambiente.

Artigo 5.º

Capacidade de carga associada a atividades económicas

  1. Para cada Área Protegida são estabelecidas capacidades de carga admissíveis relativas às diversas actividades económicas, excluindo as atividades tradicionais e à utilização de serviços e infraestruturas, que induzam impactes negativos sobre o ambiente e a qualidade de vida das populações, tendo por base os resultados da caracterização atual do território, os objetivos de conservação da natureza e a promoção das atividades tradicionais.
  2. A capacidade de carga admissível para cada tipologia de projecto ou setor de atividade é estabelecida considerando a análise das pressões sobre o ambiente, os valores naturais, a qualidade de vida das populações, incluindo infraestruturas e acesso a serviços públicos e a influência sobre as atividades tradicionais.
  3. São definidas, pelo menos, capacidades de carga admissíveis para cada Área Protegida, relativas a atividades dos seguintes setores:
    1. turismo, incluindo atividades turísticas em espaço rural;
    2. agricultura intensiva e superintensiva, incluindo estufas, estufins ou túneis;
    3. pecuária intensiva;
    4. ocupação urbana residencial, de comércio e serviços, excluindo as habitações permanentes existentes;
    5. indústria;
    6. produção de energia, incluindo a partir de fontes renováveis;
    7. explorações minerais e extração de inertes.
  4. De acordo com as características do território de cada área protegida e das ocupações mais preponderantes é determinada a capacidade de carga global admissível resultante da ponderação das diferentes capacidades de carga determinadas para os setores referidos no número 3 do presente artigo.
  5. A determinação das capacidades de carga admissíveis para cada Área Protegida é realizada pelo grupo de trabalho referido no número 4 do artigo 4.º da presente Lei, sendo estas aprovadas pelo ICNF em articulação com as autarquias locais.
  6. As capacidades de carga admissíveis aprovadas para cada Área Protegida são incluídas, por aditamento ou por revisão, nos Instrumentos de Gestão Territorial em vigor.

Artigo 6.º

Avaliação de incidências ambientais

  1. A autorização de instalação de novos projetos e alteração ou ampliação de projetos existentes, integrados nos setores para os quais se encontra fixada capacidade de carga admissível e que não sejam sujeitos ao Regime de Avaliação de Impacte Ambiental, com exceção dos destinados ao exercício e promoção de atividades tradicionais, é precedida de um procedimento de avaliação de incidências ambientais, a realizar pela comissão de coordenação e desenvolvimento regional (CCDR) territorialmente competente em articulação com o ICNF, com base num estudo de incidências ambientais apresentado pelo interessado.
  2. O estudo de incidências ambientais referido no número anterior deve enunciar os impactes locais dos projetos em causa, incluindo os impactes cumulativos com outros projetos existentes ou previstos, através da identificação das principais condicionantes existentes e dos descritores ambientais suscetíveis de serem afetados, bem como prever medidas de monitorização e medidas de minimização e recuperação aplicáveis.
  3. O conteúdo mínimo do Estudo de Incidências Ambiental (EIncA) mencionado no número anterior inclui a análise dos seguintes elementos:
    1. efeitos sobre o recurso solo - degradação estrutural, contaminação por agroquímicos, erosão, salinização, desertificação e inviabilidade para outros usos;
    2. efeitos sobre os recursos hídricos superficiais e subterrâneos – aspetos quantitativos e qualitativos e sua relação com a utilização racional da água e os cenários de alterações climáticas;
    3. efeitos sobre os valores ecológicos e biodiversidade e sua relação com as orientações de preservação e salvaguarda dos habitats e espécies com destacada relevância conservacionista;
    4. efeitos sobre o ambiente atmosférico e sonoro e sua interferência com a qualidade de vida das populações e com a salvaguarda dos valores naturais presentes;
    5. efeitos sobre a saúde pública, a qualidade de vida das populações, o funcionamento de infraestruturas e serviços públicos e a promoção das atividades tradicionais;
    6. avaliação da relevância do projecto para se atingirem as capacidades de carga admissíveis, estabelecidas para a área protegida em que se insere.
  4. A autorização para instalação de projetos de tipologia referida no número 1 do presente artigo fica dependente da emissão de uma Declaração de Incidências Ambientais favorável ou favorável condicionada, dependente de parecer emitido pelo ICNF.

Artigo 7.º

Procedimento de Avaliação de Incidências Ambientais

  1. A regulamentação do Procedimento de Avaliação de Incidências Ambientais para os projetos abrangidos pelo disposto no número 1 do artigo 6.º da presente Lei e respetivas taxas serão fixadas por portaria dos membros do Governo responsáveis pelas áreas do ambiente e da conservação da natureza e biodiversidade.
  2. Até que seja emitida a Portaria referida no número anterior, a instalação de projetos abrangidos pelo disposto no número 1 do artigo 6.º da presente Lei fica dependente de parecer favorável, ou favorável condicionado emitido pelo ICNF.

Artigo 8.º

Consequências da Avaliação de Incidências Ambientais

  1. Os projetos sujeitos a Avaliação de Incidências Ambientais que tenham obtido Declaração de Incidências Ambientais desfavorável não podem ser autorizados, ficando inviabilizada a sua instalação.
  2. Os projetos sujeitos a Avaliação de Incidências Ambientais que tenham obtido Declaração de Incidências Ambientais favorável condicionada só podem entrar em fase de exploração após verificação do cumprimento das medidas impostas pela referida Declaração.

Artigo 9.º

Contraordenações

  1. O incumprimento do disposto no artigo 6º e no artigo 8.º da presente Lei constitui contraordenação punível com coima.
  2. O regime contraordenações e de coimas referido no número anterior é objeto de regulamentação pelo Governo.

Artigo 10.º

Prazos

  1. O Governo, no prazo de 45 dias após a publicação da presente Lei, toma as medidas necessárias e promove o início do processo de atualização da caracterização e diagnóstico do estado de conservação dos valores naturais em Áreas Protegidas e posterior determinação das capacidades de carga admissíveis.
  2. O Governo, no prazo de 60 dias após a publicação da presente Lei, procede à sua regulamentação e às adaptações legislativas necessárias à sua implementação.
  3. Até 31 de Dezembro de 2021 o Governo assegura que são estabelecidas as capacidades de carga admissíveis para as Áreas Protegidas, para as actividades com maior impacte negativo na salvaguarda dos valores naturais e qualidade de vida das populações.

Artigo 11.º

Entrada em vigor

A presente Lei entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação.