Intervenção de António Filipe na Assembleia de República

Acordo celebrado com os Estados Unidos da América para que este país tenha acesso aos dados pessoais biométricos e biográficos que constam das bases de dados de identificação civil e criminal

Declaração política de censura ao Governo pelo acordo que, segundo a comunicação social, celebrou com os Estados Unidos da América para que este país tenha acesso aos dados pessoais biométricos e biográficos que constam das bases de dados de identificação civil e criminal bem como da base de dados nacional de perfis de ADN do Estado português

Sr. Presidente,
Srs. Deputados:
Chegou ao conhecimento público, através da comunicação social, a existência de um acordo bilateral que terá sido assinado entre o Governo português e as autoridades dos Estados Unidos da América dando acolhimento à pretensão destas últimas de, em nome do combate ao terrorismo, ter acesso aos dados pessoais, biométricos e biográficos que constam das bases
de dados de identificação civil e criminal do Estado português, bem como da base de dados nacional de perfis de ADN.
Ainda segundo a comunicação social, as negociações bilaterais entre os Estados Unidos e diversos Estados-membros da União Europeia, como será o caso do Estado português, têm sido o expediente encontrado pelos Estados Unidos para contornar dificuldades relacionadas com as objecções de vários Estados-membros e das próprias instituições da União Europeia à cedência desse tipo de dados.
Esta ideia é, aliás, corroborada por personalidades insuspeitas de qualquer antiamericanismo, como o Deputado português ao Parlamento Europeu Carlos Coelho.
Referem as notícias que o Governo português aceitou a solicitação norteamericana em 2009, mas só em Novembro de 2010 solicitou parecer à Comissão Nacional de Protecção de Dados (CNPD) sobre a matéria.
Estas notícias são muito preocupantes e não podem passar sem um sério juízo de censura à actuação do Governo português. Desde logo porque a matéria referente ao tratamento de
dados pessoais tem em Portugal tutela constitucional expressa, que proíbe a interconexão não autorizada de ficheiros de dados pessoais e que garante a sua protecção através de autoridade administrativa independente.
Não se vê, portanto, como podem os dados em causa ser fornecidos a um Estado terceiro
indiscriminadamente sem que haja uma flagrante violação de direitos fundamentais constitucionalmente garantidos.
Na verdade, a Constituição Portuguesa, no seu artigo 35.º, n.º 4, proíbe o acesso a dados pessoais de terceiros, salvo em casos excepcionais previstos na lei. Esta proibição visa proteger os cidadãos contra o uso disfuncional dos seus dados pessoais para fins que os interessados não conhecem e perante os quais não têm qualquer possibilidade de intervenção. E qualquer excepção a esta proibição tem de respeitar o regime constitucional das restrições de direitos, liberdades e garantias.
Ou seja, tem de ser previsto na lei, tem de se limitar ao necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos e não pode diminuir a extensão e o
alcance do conteúdo essencial dos preceitos constitucionais.
Nada disto é compatível com o acesso de outros Estados a bases de dados pessoais de cidadãos nacionais.
Depois, causa enorme estranheza que, tendo sido esta matéria negociada em 2009 com as autoridades dos Estados Unidos da América, essa negociação tenha sido rodeada de secretismo e não tenha sido solicitado em tempo o parecer da CNPD.
Esta atitude não é aceitável. A protecção de dados pessoais é, nos termos constitucionais, assegurada por uma entidade administrativa independente, que no caso é a CNPD. Visa esta
disposição constitucional subtrair à discricionariedade do poder político a tutela de uma questão sensível do ponto de vista dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos. Não poderia, portanto, o Governo assumir compromissos no plano internacional que tenham implicações em matéria de dados pessoais sem que haja qualquer possibilidade de a CNPD se pronunciar em tempo útil sobre a matéria em causa.
Finalmente, sendo esta matéria da competência reservada da Assembleia da República quer por se tratar de um acordo internacional, quer por se tratar de matéria relativa a direitos, liberdades e garantias, é de estranhar e de lamentar que não tenha sido dada a este órgão de soberania
qualquer informação acerca do processo negocial em curso.
É uma evidência que, a ser verdade que o Governo assumiu perante as autoridades dos Estados Unidos o compromisso de lhes facultar os dados constantes das bases de dados nacionais referentes à identificação civil, à identificação criminal e aos perfis de ADN sem consulta à CNPD e sem qualquer acompanhamento parlamentar desse processo (e isso não é desmentido), estamos perante uma atitude inadmissível de desrespeito do Governo para com princípios fundamentais do Estado de direito democrático.
Ao actuar desta forma, o Governo não só actuou de forma ilegítima como actuou de má consciência. Não podendo ignorar o repúdio que tais compromissos para com um Estado
estrangeiro, seja ele qual for, suscitariam, e que na verdade suscitam, da parte de todos os cidadãos com um mínimo de cultura democrática e de bom senso, o Governo preferiu agir em segredo e confrontar tudo e todos com uma situação de facto consumado.
Queremos, por isso, aqui afirmar com total clareza que o PCP rejeita em absoluto qualquer possibilidade de cedência indiscriminada de dados pessoais dos cidadãos portugueses a autoridades de outro país seja a que pretexto for.
Uma coisa é a cooperação judiciária internacional feita numa base de reciprocidade, através dos órgãos próprios de cada Estado, e no respeito pelas garantias dos cidadãos e pelos princípios do Estado de direito democrático. Essa cooperação é desejável e contará sempre com a nossa concordância.
Outra coisa é, em nome do combate ao terrorismo, ou seja em nome do que for, tornar o Estado português numa filial do FBI e tratar todos os cidadãos portugueses como suspeitos de terrorismo, entregando-os à devassa discricionária das autoridades de um Estado que, nos últimos anos, tem dado ao mundo os mais tristes exemplos de desrespeito pelo direitos humanos — Abu-Graib, Guantanamo, prisões em alto-mar, voos secretos e leis de excepção, estão aí, tristemente, para o demonstrar.
Impõe-se, por isso, que o Governo preste a esta Assembleia e ao País esclarecimentos cabais e rigorosos sobre as posições que assumiu nas negociações bilaterais com os Estados Unidos quanto à cedência de dados pessoais dos cidadãos portugueses às autoridades desse país e faculte de imediato à Assembleia da República qualquer texto a que tenha dado o seu acordo.
Impõe-se também que o Governo explique por que razão não solicitou em tempo útil o parecer da CNPD sobre esta matéria e por que razão nunca informou a Assembleia da República sobre essas negociações.
Finalmente, queremos deixar muito claro que o PCP considera que o Estado português não deve ratificar nenhum acordo de cedência indiscriminada de dados pessoais dos cidadãos portugueses a outros Estados.
Afirmamos, por isso, que na Assembleia da República o Grupo Parlamentar do PCP votará contra a aprovação
de qualquer acordo internacional nesse sentido e entendemos que, caso a Assembleia da República o aprove, constituirá um dever democrático indeclinável do Presidente da República recusar a sua ratificação.
(…)
Sr. Presidente,
Sr. Deputado Ricardo Rodrigues,
Quero registar, desde logo, como positivo o facto de o Sr. Deputado não ter dado já o seu apoio entusiástico a este acordo que o Governo português terá assinado com as autoridades dos Estados Unidos da América.
Eu não confundo esta matéria com a da transferência de dados de passageiros, que também tem muito que se lhe diga, mas essa é outra matéria, também muito sensível, mas não estamos a confundir as coisas.
Parece-nos que esta matéria é extraordinariamente sensível. Estamos a falar de dados pessoais que são constitucionalmente protegidos, através da existência, constitucionalmente prevista, de uma entidade administrativa independente.
Portanto, entendemos que o Governo não pode, não tem legitimidade para decidir sobre essa matéria, para comprometer o Estado português perante um outro Estado, sem que haja o acompanhamento, em tempo útil, quer da Assembleia da República, que é o órgão de soberania competente em matéria de direitos, liberdades e garantias, quer pela Comissão Nacional de Protecção de Dados. E isso não foi feito. A Assembleia da República não foi, de forma nenhuma, informada da discussão desta matéria e o parecer à Comissão Nacional de Protecção de Dados, segundo foi tornado público, foi solicitado no passado mês de Novembro de 2010, quando estas negociações decorriam desde 2008 e o Governo ter-se-á comprometido com a assinatura de um acordo em 2009.
Portanto, não é aceitável que o Governo tenha procedido desta forma.
É evidente que, tratando-se de um acordo internacional cuja ratificação do Estado português carecerá de aprovação por parte da Assembleia da República, declaramos, desde já, que, se o que consta do acordo é aquilo que foi publicitado através da comunicação social portuguesa, não concordamos de maneira nenhuma com ele e achamos que esse acordo está, evidentemente, ferido de inconstitucionalidade. É essa a posição que queremos registar aqui. Não se trata de dizer que discordamos antes de conhecer, trata-se de dizer que, se é verdade o que está publicitado acerca dele, não podemos ter outra posição que não seja a de repudiar
frontalmente e votar contra a sua ratificação.
(…)
Sr. Presidente, Sr.ª Deputada Helena Pinto, agradeço as questões muito pertinentes que colocou.
O que está em causa é, desde logo, o facto de todos os cidadãos serem tratados como suspeitos.
Trata-se também de uma questão até de cultura democrática. Como se sabe, nos Estados Unidos da América o direito à privacidade não tem a mesma tutela constitucional legal que tem na maioria dos países europeus em que esta questão é, efectivamente, tratada e é um motivo de
preocupação. Aliás, tem-se traduzido na existência de entidades administrativas independentes, como é o caso, em Portugal, da CNPD. Isto para dizer que a protecção dos cidadãos contra a utilização abusiva dos seus dados pessoais é mais forte na Europa do que nos Estados Unidos da América, com a agravante de que nos Estados Unidos da América, apesar de a tutela ser menor, apenas os cidadãos norte-americanos têm direito a essa protecção. Ou seja, nenhum cidadão que não seja norte-americano tem o direito de, perante as autoridades desse Estado, fazer valer o seu direito à protecção dos dados pessoais. Isto é muito relevante quando o Estado com quem se está a denunciar um acordo bilateral é precisamente um Estado como os Estados Unidos da América.
Mas a questão que também se coloca é esta: se estamos a falar de cooperação judiciária, o que falta? Ou seja, se as autoridades norte-americanas solicitarem a colaboração das autoridades judiciárias portuguesas para a perseguição de alguém que seja suspeito de qualquer acto terrorista, será que as autoridades portuguesas recusam essa colaboração?
Será que não temos mecanismos de cooperação judiciária que garantam que se o FBI fizer uma solicitação, a Polícia Judiciária não responde e diga que não tem nada a responder, que não tem nada a ver com isso? A realidade não é essa.
Portanto, a questão que se coloca é esta: o que pretendem mais? O que falta na cooperação judiciária?
Isso não é explicado.
O que é solicitado é que os dados existentes nas bases de dados portuguesas possam ser postos à disposição das autoridades norte-americanas.
Ora, isso nós não aceitamos, nem em relação aos Estados Unidos da América, nem em relação a qualquer outro país do mundo, porque esta é uma questão de princípio, que não está associada a ser este país mas a um qualquer que seja. O que registamos é a total subserviência do Governo português em tudo o que se relaciona com os Estados Unidos da América. Isso também é um facto objectivo.
(…)
Sr. Presidente,
Sr. Deputado Nuno Magalhães,
As questões que coloca são pertinentes.
Vou começar por responder à sua última questão, que é a de, havendo uma negociação europeia e órgãos da União Europeia mandatados para negociar essa questão com os Estados Unidos da América, haver Estados-membros da União Europeia que, fazendo de conta que esse mandato existe, negoceiam bilateralmente.
A este respeito, quero dizer duas coisas. Em primeiro lugar, quanto à questão de fundo, o facto de a negociação com os Estados Unidos da América ser feita no quadro das instituições da União Europeia não nos tranquiliza, porque isso é o que está a acontecer quanto à transmissão de dados de passageiros e não estamos nada tranquilos relativamente àquilo que venha a ser o conteúdo desse acordo.
Portanto, quanto à questão de fundo, quanto ao conteúdo, é precisamente tendo em conta o que lá está escrito e o que é acordado que nos pronunciaremos.
Mas também não consideramos que os Estados não tenham a legitimidade para negociar bilateralmente questões que sejam de relevância nacional. Não é aí que está o problema.
O problema está na matéria sensível que está em causa e no facto de o Governo português, preterindo competências próprias de uma autoridade independente e preterindo a Assembleia da República nesta matéria, ao não dar conhecimento daquilo que estava a ser negociado com as autoridades norte-americanas, ter assumido compromissos que geram junto do Estado — neste caso, os Estados Unidos da América — a expectativa de que aquilo que negociaram com o Governo venha a ser efectivamente aprovado, criando, desta forma, uma situação de quase facto consumado que não aceitamos.
Relativamente à primeira questão que colocou, o desígnio do combate ao terrorismo, achamos que Portugal deve colaborar, na medida das suas possibilidades, no combate ao terrorismo e cooperar com quaisquer Estados ou quaisquer entidades que estejam seriamente empenhadas nesse combate.
Questão muito diferente é reconhecer aos Estados Unidos da América um papel de polícia global, de polícia do mundo, naquilo que eles consideram ser o combate ao terrorismo.
Sabemos que o critério seguido pelos Estados Unidos da América, quanto à definição de terrorismo é, no mínimo, muito discutível (e digo «no mínimo», para não abrir aqui outra discussão), mas há outros países com os quais é absolutamente necessário haver uma acção concertada no combate ao terrorismo — basta falarmos na nossa vizinha Espanha. Portanto, os Estados Unidos da América não têm aqui qualquer papel que deva reconhecer-se acima de quaisquer outros Estados, acima da cooperação bilateral e acima da cooperação com respeito pelas competências próprias das autoridades judiciárias. É que, quando se trata de direitos, liberdades e garantias, como é o caso, não pode negociar-se por critérios de política externa, tem de negociar-se por critérios de respeito pelos direitos fundamentais dos cidadãos e de respeito pela esfera de actuação própria das autoridades judiciárias de cada Estado. Não é apenas uma questão de política externa; é também uma questão de respeito pelos direitos e pela forma como, designadamente, a investigação criminal e o tratamento de dados estão, constitucional e legalmente, organizados, em Portugal.
(…)
Sr. Presidente,
Sr. Deputado Fernando Negrão,
Agradeço igualmente as questões que colocou.
Começo por registar que o Sr. Deputado fez a justiça de considerar que não colocámos esta questão aqui por qualquer preconceito ideológico — nós temos ideologia, mas não temos preconceitos.
Aliás, há pouco, tive oportunidade de dizer que teríamos as mesmas preocupações, fosse qual fosse o Estado que fizesse esta solicitação às autoridades portuguesas. Não sei é se todos os partidos poderão dizer o mesmo, não sei se todos teriam a mesma benevolência caso esta solicitação viesse de qualquer outro Estado que não os Estados Unidos da América…!? Mas essa é outra questão.
gora, Sr. Deputado, achamos que a Assembleia da República deveria ter sido envolvida neste processo e que a CNPD deveria ter sido chamada a dar parecer em tempo útil e não agora, depois de o Governo se ter comprometido no plano bilateral.
No entanto, isso não nos condiciona. E nunca deixaríamos, nem deixaremos, de ter a nossa posição própria relativamente ao acordo, tendo em conta estritamente o seu conteúdo e não o facto de a União Europeia concordar com ele ou de a CNPD concordar ou deixar de concordar com ele. Teríamos evidentemente em consideração todas essas opiniões, mas não abdicaríamos da nossa opinião e da nossa posição, tendo em conta o conteúdo concreto do acordo em causa — e é essa a posição que iremos ter quando esse acordo aqui vier, se vier.
Quanto à outra questão que referiu, diria que o problema não se coloca só relativamente ao terrorismo mas também em relação a toda a criminalidade organizada e transnacional. Pensamos que deve haver, evidentemente, uma colaboração por parte do Estado português, das autoridades judiciárias portuguesas na cooperação internacional contra a criminalidade organizada e transnacional, seja ela qual for — e para isso é que existe a Interpol, para isso é que existe a cooperação policial. Ora, pensamos que é nesse quadro que este relacionamento deve ser travado, com respeito pela soberania própria de cada um, pela legislação própria de cada Estado. Nesse quadro, deve haver evidentemente uma cooperação. Ou seja, não deve haver aqui uma espécie de diktat imposto pelo Estado mais forte contra os outros, para que possa usufruir de todos os mecanismos de informações que eles tenham. Não. Isso deve ser feito no respeito pela soberania, pelas competências próprias de cada Estado.
Termino, Sr. Presidente e Srs. Deputados, reiterando — e agora que até temos a presença do Governo nesta Sala — aquilo que referimos há pouco, ou seja, que o Governo deveria enviar, quanto antes, a esta Assembleia o texto que acordou com os Estados Unidos da América, como forma de podermos, embora tardiamente, recuperar uma informação a que a Assembleia já deveria ter tido acesso, e não teve.
Não sei se os Srs. Ministros aqui presentes me ouviram — de qualquer maneira, poderão consultar a Acta —, mas faço apelo a que, urgentemente, enviem a esta Assembleia, para conhecimento, o texto que foi acordado com as autoridades norte-americanas acerca do acesso a dados pessoais constantes da identificação civil e criminal e das bases de dados de ADN.
Fica aqui o pedido de viva voz.

  • Soberania, Política Externa e Defesa
  • Assembleia da República
  • Intervenções
  • Terrorismo