70º Aniversário da Revolta dos Marinheiros - Intervenção de José Casanova

 

 

Estamos aqui a assinalar a passagem de mais um aniversário
da Revolta dos Marinheiros. Com a exposição que, certamente, já tiveram
oportunidade de ver, e com esta iniciativa. Fazemo-lo com enorme respeito e com
grande admiração pelos jovens marinheiros dos navios de guerra Afonso de
Albuquerque, Bartolomeu Dias e Dão, que ousaram enfrentar o regime fascista
arriscando as suas vidas - e sabendo que as arriscavam; sabendo a força do
inimigo contra o qual se batiam - e mesmo assim batendo-se; alguns deles,
porventura, sabendo que iriam ser derrotados - 
e, mesmo assim, lutando.

A revolta ocorreu no dia 8 de Setembro de 1936 – faz hoje,
precisamente setenta anos - num tempo em que o processo de fascização do
Estado, dirigido por Salazar desde 1933, estava prestes a concretizar-se.

Para compreender as causas e o desfecho da Revolta dos
Marinheiros, é indispensável ter presente a situação então vivida no mundo, no
País e no Partido.

No plano internacional o fascismo avançava: Hitler, que
tomara o poder em 1933, preparava a concretização do seu plano belicista e
terrorista de domínio do mundo; Mussolini, no poder desde 1922 e aliado de
Hitler desde a primeira hora, avançava na conquista da Abissínia; acentuavam-se
e cresciam de dia para dia as movimentações contra o Governo de Frente Popular,
em Espanha – o qual, juntamente com o Governo igualmente de Frente Popular, em
França, constituíam sinais positivos e indiciadores da possibilidade de fazer
frente, com êxito, ao fascismo..

A situação em Portugal, e a evolução nela verificada desde a
mascarada que, em 19 de Março de 1933, fizera aprovar – com 99,5%  - a «Constituição Política da República»,
traduzia-se na instalação estudada, programada e sistematicamente executada do
regime fascista – num processo cuja relembrança se impõe para percebermos a
acção dos marinheiros que hoje aqui homenageamos.

Recordemos alguns dos passos dados por Salazar no caminho da
implantação do regime fascista.

Em Agosto de 1933, Salazar cria a PVDE (Polícia de
Vigilância e Defesa do Estado – mais tarde PIDE, mais tarde DGS) que, integrada
no Ministério do Interior era directamente controlada pelo próprio Salazar.

No mês seguinte, é publicado o Estatuto do Trabalho Nacional
que, inspirado na Carta del Lavoro de Mussolini, decretava a
ilegalização dos sindicatos livres e a proibição das suas formas de luta.

Ainda no mês de Setembro, por iniciativa e com supervisão
directa de Salazar, é criado o Secretariado da Propaganda Nacional, com o
objectivo expresso de «reeducar o povo português de acordo com os princípios da
Revolução Nacional». (meses antes havia sido lançada uma edição de 125 mil
exemplares do livro «Salazar, o Homem e a Obra», constituído por uma série de
entrevistas de António Ferro a Salazar e que viria a ser publicado na Alemanha,
na Grã-Bretanha e na Itália, a expensas do governo fascista português).

Por essa altura o Partido Socialista decide a sua
autodissolução.

Em Novembro, ainda de 1933, é criado o Tribunal Militar
Especial, tendo como objectivo julgar «crimes contra a segurança do Estado». E,
nesse mesmo mês, o Papa Pio XI institucionaliza a Acção Católica Portuguesa, numa
afirmação de identificação e concordância explícitas da Igreja com o chamado
Estado Novo.

O ano de 1934 inicia-se com a primeira grande movimentação
da classe operária contra o regime fascista: em resposta à entrada em vigor do
Estatuto do Trabalho Nacional, desenvolve-se, em 18 de Janeiro, uma greve de
características insurreccionais, organizada pela CGT e pelo PCP que atingiu
expressão relevante no Barreiro, no Seixal, em Silves e, sobretudo, na Marinha
Grande, onde a acção insurreccional, encabeçada por militantes comunistas
(nomeadamente José Gregório e António Guerra) assume proporções significativas
e é violentamente reprimida.

Em Maio desse ano, realiza-se o primeiro congresso do
partido único fascista, a União Nacional.

Em Julho, Salazar resolve as dissidências internas
existentes: ilegaliza o «Movimento Nacional Sindicalista», prendendo e mandando
para o exílio os seus principais dirigentes, tão fascistas como Salazar mas em
conflito com ele.

Em Agosto, é criado o Conselho Corporativo, órgão superior
da organização corporativa nacional, que é presidido por Salazar.

Em Dezembro realizam-se as primeiras «eleições» legislativas
após o golpe militar de 28 de Maio. A União Nacional é o único partido a
concorrer e, naturalmente, elege a totalidade dos deputados.

Durante todo o ano de 1934 a Federação das Juventudes
Comunistas Portuguesas desenvolve intensa actividade.

Em 1935, Salazar cria a FNAT (Federação Nacional para a
Alegria no Trabalho) – sob inspiração de organizações congéneres criadas por
Mussolini e por Hitler – e cujo objectivo, para além das actividades de
diversão, é «preparar política e ideologicamente os trabalhadores».

Em 10 de Setembro é derrotada uma tentativa de golpe de
estado militar contra a ditadura.

Realiza-se, em Moscovo, o VII Congresso da Internacional
Comunista que define como «objectivo central do movimento comunista e de todas
as forças democráticas a luta contra o fascismo e a ameaça que fazia pesar
sobre o mundo». 

Em 11 de Novembro o PCP sofre um rude golpe: o Secretariado
do Partido – o seu único órgão central de direcção – cai nas garras da polícia
política. Entre os presos encontra-se Bento Gonçalves, Secretário-geral do
Partido, chegado no dia anterior de Moscovo onde, à frente de uma delegação do
Partido, tinha participado no VII Congresso da IC. Cinco meses depois é criado
um novo Secretariado.

E chegamos ao ano de 1936, ano da Revolta dos Marinheiros,
razão da nossa presença nesta iniciativa.

Em 23 de Abril, o governo fascista cria o Campo de
Concentração do Tarrafal.

Nesse mesmo mês, tem início um processo dito de «regeneração
do sistema educativo português» que se prolongará até ao final do ano e no
decorrer do qual são criadas a Mocidade Portuguesa e a Mocidade Portuguesa
Feminina.

Em Maio, Salazar assume, em acumulação, o  Ministério da Guerra.

Em Julho, é definido o regime jurídico dos «Organismos de
Coordenação Económica», assegurando o controlo da evolução da economia
nacional, primeiro grande passo para a implementação do capitalismo monopolista
de Estado na sua versão fascista.

Em 18 de Julho, em Espanha, um levantamento militar
encabeçado por Franco dá início à guerra civil que, com o apoio dos governos
fascistas da Itália, Alemanha e Portugal – e por efeito da traição das
democracias ocidentais, nomeadamente do governo francês presidido pelo
socialista Léon Blum - viria a conduzir à implantação também de um regime
fascista.

Em 28 de Agosto a União Nacional organiza – na Praça de
Touros do Campo Pequeno - o primeiro de uma série de comícios por todas as
capitais de distrito, onde é reclamada a criação de uma «milícia nacionalista e
anticomunista». Um mês depois é criada a Legião Portuguesa.

Em 8 de Setembro ocorre a Revolta dos Marinheiros.

Em 14 de Setembro, o governo de Salazar impõe aos funcionários
públicos «a aceitação dos princípios da ditadura fascista, a rejeição dos
ideais comunistas e o dever de denunciar todos os que professem doutrinas
subversivas».

Em 23 de Setembro, Salazar suspende as relações diplomáticas
com o governo republicano de Espanha e faz apoiar esta decisão por uma
manifestação nacional, no Terreiro de Paço, organizada pela União Nacional, a
Legião Portuguesa, a Mocidade Portuguesa, a Mocidade Portuguesa Feminina, a
FNAT, os Sindicatos Nacionais, as Casas do Povo.

Foi longa – e, mesmo assim, incompletíssima - a enunciação
das medidas que consumaram a fascização do Estado português, medidas de
carácter político, económico, social, ideológico, complementadas com a criação
de um poderoso aparelho repressivo que tinha como alvo principal o PCP.

Era essa a situação no País ao tempo da Revolta dos
Marinheiros, dirigida pela Organização Revolucionária da Armada (ORA).

A ORA, que agrupava as diversas células comunistas da
Armada, fora criada em 1932 – um ano depois do nascimento do Avante! e,
tal como o órgão central do PCP, na decorrência da reorganização de 1929.
Implantou-se rapidamente na Armada, particularmente entre os marinheiros. Com
efeito, através de uma intervenção intensa – em que conjugava a luta pela
defesa dos interesses sócio-profissionais dos marinheiros com um amplo trabalho
de esclarecimento político e ideológico sobre a natureza do fascismo e a
necessidade de o combater - a ORA cedo ganhou uma ampla e forte influência na
Armada. Álvaro Cunhal, numa intervenção proferida em Almada, em 1998, em
«homenagem aos marinheiros tarrafalistas», diz que «no (navio) Afonso de
Albuquerque a influência (da ORA) era tal que se lia e comentava
colectivamente com a tripulação o jornal clandestino ‘O Marinheiro Vermelho’,
‘órgão das células do PCP na marinha de guerra’, que se editava há anos» e do
qual chegaram a ser distribuídos 1500 exemplares. No plano partidário, a ORA
era a mais forte organização contando com 20 por cento do total dos militantes
do Partido, na altura.

Esta intensa actividade antifascista preocupava o governo de
Salazar, que leva por diante um conjunto de medidas visando desarticular e
liquidar a Organização Revolucionária da Armada: transferências de marinheiros,
expulsões da Armada, prisões de dezenas de marinheiros, entre eles toda a
direcção da ORA. A noção dos perigos desta ofensiva, aliada à convicção
profunda da possibilidade de «aplicação de um golpe ao fascismo» e uma
multiplicidade de outros factores, alimentaram e fortaleceram, nos jovens marinheiros
comunistas, a ideia de avançar para uma «acção militar».

A direcção do Partido, em contactos com os camaradas da ORA,
procurou dissuadi-los. Sobre um desses contactos, fala-nos o camarada Álvaro
Cunhal, na intervenção atrás referida: «Os camaradas da ORA, confirmando o que
haviam tratado com outros camaradas da Direcção do Partido expuseram a
situação. No movimento democrático fervilhavam, por influência das vitórias
antifascistas em França e na Espanha, ideias de um golpe armado para derrubar o
fascismo. Os camaradas consideravam estar em condições de desempenhar em tal
caso importantíssimo papel tomando conta do Afonso de Albuquerque e de
outros navios de guerra. Viam por isso com impaciência estar o governo a tomar
medidas que ameaçavam seriamente a ORA, Encaravam mesmo a possibilidade de, na
parada da Marinha de Guerra que costumava realizar-se em Cascais e à qual
Salazar e membros do governo assistiam a bordo do Afonso de Albuquerque,
tomarem conta do navio e prenderem Salazar, os ministros e acompanhantes».
Álvaro Cunhal, que sublinha a firme determinação dos camaradas de levarem por
diante esses objectivos, alerta para que «tal operação inserida numa revolta de
outras unidades militares poderia ser determinante. Mas, sendo isolada,
apresentava-se cheia de justificadas dúvidas».

Mesmo assim, os jovens marinheiros comunistas decidiram
avançar. Não para a operação que a propaganda fascista divulgou de levar os
barcos a juntar-se às forças armadas da República Espanhola contra os
fascistas. Mas para uma acção cujo objectivo era «levar os navios para o mar e
dar um ultimato ao governo com objectivos referentes à defesa dos seus direitos
e ao termo das perseguições e prisões. Caso o ultimato não fosse atendido,
aparecera a ideia de irem a Angra do Heroísmo, libertarem os presos que se
encontravam na fortaleza entre os quais Bento Gonçalves) e rumarem para um
porto onde pudessem ser acolhidos».

Os acontecimentos confirmaram a justeza da apreciação, da
análise e das advertências da Direcção do Partido. Da mesma forma que
confirmaram a impaciência e o voluntarismo dos jovens marinheiros
antifascistas.

Contudo nenhuma destas confirmações apaga ou obscurece a
determinação, a coragem, a entrega total dos revoltosos à luta contra a
opressão e o terror fascistas. Nada apaga ou obscurece a sua disponibilidade
para darem as suas vidas na luta pela mais bela de todas as causas: a causa da
liberdade. da justiça, da fraternidade, da solidariedade, da libertação de
todas as formas de opressão e de exploração.

Nas circunstâncias em que ocorreu, a revolta não teve, nem
poderia ter tido, êxito, e foi rapidamente sufocada e brutalmente reprimida.
Doze marinheiros foram mortos no decorrer dos acontecimentos e 208 foram feitos
prisioneiros. Destes, 82 foram condenados a penas de prisão que atingiram os
17, 19 e 20 anos; quatro foram para o Forte de Peniche, 44 para a Fortaleza de
Angra do Heroísmo e 34 para o Tarrafal, fazendo parte da primeira leva de 152
presos que em 29 de Outubro inauguraram o Campo de Concentração, onde cinco
marinheiros da revolta viriam a morrer – mais rigoroso será dizer: viriam a ser
assassinados no Campo da Morte Lenta.

É compreensível a atitude da Direcção do Partido,
sublinhando as consequências prováveis (pode dizer-se: inevitáveis) da acção revolucionária
propugnada pelos jovens marinheiros comunistas, enquanto acção isolada,
desinserida da luta de massas e confrontada com um inimigo poderoso e
tremendamente repressivo. Tão compreensível como a imediata solidariedade do
Partido para com os jovens marinheiros derrotados e vítimas da mais brutal
repressão.

Da mesma forma, é compreensível a impaciência dos jovens
marinheiros comunistas que sentiam o fascismo a avançar e que se sentiam eles
próprios, e a sua organização, alvos de particular perseguição fascista –
porque eram uma organização de comunistas e porque eram uma organização
existente no seio da Armada portuguesa.

O resultado foi o que foi. No entanto, não foi em vão a
acção dos marinheiros de 1936. Ela mostrou que, ao contrário do que proclamava
o então presidente do Conselho, havia quem resistisse ao fascismo; que, ao
contrário do que proclamava o então ministro da Guerra, a resistência
antifascista se fazia no interior das próprias forças armadas, assumindo,
mesmo, um carácter insurreccional; que uma derrota só o é totalmente se não
sabemos tirar dela os ensinamentos adequados. Ela confirmou, ainda, muitos
ensinamentos históricos: que, numa luta com os objectivos ambiciosos da que
travamos, as derrotas são inevitáveis e que a derrota seria baixar os
braços e desistir de lutar; que, em todos os momentos e situações – e seja qual
for o resultado de uma determinada luta – como escreveu um grande poeta
brasileiro: «muita diferença faz entre lutar com as mãos e abandoná-las para
trás».

Como não foram em vão muitas outras acções com objectivos
semelhantes e com destinos semelhantes ao longo da história.

Sobre esta matéria e a propósito da Comuna de Paris,
escreveu Marx: «A história mundial seria muito fácil de fazer se a luta fosse
empreendida apenas sob a condição de possibilidades infalivelmente favoráveis».
E o mesmo Marx – que considerou a acção revolucionária dos operários de Paris
prematura e desencadeada numa situação extremamente desfavorável – logo que a
«revolução proletária rebentou apoiou-a com todo o ardor revolucionário».

Também na luta que hoje travamos contra a política de
direita e por uma política que sirva os interesses dos trabalhadores, do povo e
do País, essa questão nos é colocada todos os dias. Se nos limitássemos a ir por
diante apenas com as lutas previsivelmente vitoriosas, condenar-nos-íamos a não
ganhar nenhuma luta. Porque, se é verdade que muitas das lutas que travamos não
se traduzem em vitórias, não é menos verdade que sem a luta nenhuma vitória
seria alcançada. E neste saldo de êxitos e inêxitos na nossa luta é bom termos
presentes as palavras do camarada Jerónimo de Sousa em entrevista ao Militante:
« As derrotas não nos desanimam. As vitórias não nos descansam». Que o mesmo é
dizer: a luta continua.

A Revolta dos Marinheiros constituiu um acto de
resistência ao fascismo que ficará impressivamente assinalado na história da
luta do povo português e dos comunistas portugueses contra o regime brutal que
durante quase meio século mergulhou o nosso País na opressão e no terror. O
exemplo de coragem e de dignidade dos valentes marinheiros da ORA – de que hoje
temos a alegria de ter aqui connosco os camaradas José Barata e Joaquim
Teixeira, militantes comunistas, marinheiros da revolta e tarrafalistas – o
exemplo de coragem dos valentes marinheiros da ORA, permanece para nós,
comunistas de hoje, como uma referência maior para a luta que continuamos e que
as gerações que nos sucederem continuarão. Até à vitória final.