50 anos de «Quando os Lobos Uivam»

Intervenção de Jerónimo de Sousa, Secretário-geral do PCP
na Sessão Pública de apresentação da edição especial comemorativa dos 50 anos da publicação de «Quando os Lobos Uivam»

Permitam-me que em palavras breves e singelas saúde a «Editorial Avante!» que nos proporcionou uma obra ímpar que reúne neste livro três figuras marcantes da nossa vida nacional. Aquilino Ribeiro, um dos maiores escritores portugueses. João Abel Manta um pintor da primeira linha nacional e Álvaro Cunhal com a sua dimensão política e intelectual.
A singeleza e brevidade desta minha intervenção resulta do facto de ser confrontado com uma obra que pelo seu prefácio escrito e só recentemente conhecido de Álvaro Cunhal, pela expressão de grande densidade da pintura de João Abel Manta tão densa como densa é a obra Quando os Lobos Uivam e a própria vida de Aquilino Ribeiro, como escritor, lutador e democrata inquebrantável que o próprio afirmava ser, e foi!

Então parece que sobra pouco para esta intervenção. Ainda assim permitam-me que olhe para este livro e para o homem que o escreveu e no tempo que decorreu e à luz do tempo que vivemos.
Há 50 anos atrás, quando o nosso país era coberto por uma sufocante e repressiva sombra que se abatia sobre um povo inteiro, aos homens das letras e das artes era colocada a opção de se conformarem com a situação, ficar “em cima do muro”, ou tomar partido pela liberdade e pelo seu povo.
Quando os Lobos Uivam surge como uma expressão literária do homem que fez opção, que transformou as palavras em armas de arremesso que atingiam e vulnerabilizavam os opressores mas simultaneamente davam mais esperança e mais força a quem lutava contra a opressão.
Exemplo tocante é esta “Mensagem dos presos políticos do Forte de Peniche a Aquilino Ribeiro”:
«Senhor Aquilino Ribeiro
Neste ano de 1963, em que perfaz meio século de labor literário, queira escutar mais esta voz que se vem juntar ao coro amigo que o saúda – voz que chega do funda duma prisão, falando pela boca de mais de uma centena de portugueses encarcerados, há longos anos, pelo único crime de muito amarem a liberdade do seu povo, o progresso da sua Pátria, a Paz no mundo.
Outros dirão dos méritos do escritor, da pujança do seu estilo, da verdade das personagens que criou, da seiva espessa que lhe sobe das raízes mergulhadas no povo e na terra, e vai florescer em fecunda alegria de viver nas páginas dos eus livros, Outros dirão ainda do acordo exemplar entre o homem e o artista, e da íntima comunhão da sua vida com as vicissitudes da vida nacional nos últimos 50 anos. Outros dirão – e nós estamos também entre os que celebram a glória do escritor, sem dúvida uma das figuras cimeiras da nossa história literária.

Mas outra é a especial saudação que o nosso coração e o nosso pensamento nos ditam e aqui lhe trazemos.
Queremos saudar o cidadão corajoso e íntegro, que não se vendeu nem dobrou aos poderosos e aos tiranos, que denunciou com desassombro a torpe mentira dos tribunais políticos e a ferocidade da repressão policial, que exaltou a revolta popular, e que soube fazer frente, com o cajado firme da sua pena de escritor, aos lobos fascistas que assolam os povoados da nossa terra.
Queremos saudar o intelectual generoso e lúcido, que tantas vezes soube erguer alto a sua voz em defesa da paz, contra o furor dos fautores da guerra. Queremos saudar o homem viril e fraterno, pela sua inabalável confiança nas forças populares e no destino dos homens, nas suas conquistas científicas e no seu progresso moral, e confiança que o leva, em meio da noite fascista e ao cabo de setenta anos duma vida tantas vezes dura, a saber ainda olhar em frente, olhar para o sol, e apontar aos companheiros a visão estimulante do futuro radioso da humanidade.
Senhor Aquilino Ribeiro: Longa vida lhe desejamos! Para que possa prosseguir por muitos anos ainda no seu belo trabalho criador. Para que a sua figura altiva de lutador se possa manter presente na frente de combate pela Democracia, a Justiça e a Paz.
E para que, sobretudo, em breve possa ver o sol esplendoroso da Liberdade brilhar de novo e para sempre sobre o nosso querido Portugal.
Os presos políticos do Forte de Peniche».
Aquilino Ribeiro não chegou a ver a liberdade brilhar de novo em 25 de Abril de 1974. Mas fez a sua parte e deixou-nos uma obra como credencial inequívoca em que o romance Quando os Lobos Uivam surge como o momento culminante da sua vida de escritor e de lutador da democracia.
Num tempo sem dúvida diferente mas em que ressurgem nuvens inquietantes que ensombram o rosto e a vida de muitos portugueses, tempo onde crescem e prevalecem injustiças e desigualdades, se expropriam direitos e até a esperança, tempo em que aos intelectuais se colocam desafios e opções, então recorro a Aquilino Ribeiro que quase a chegar ao fim da vida afirmou: «vi muita bela coisa, assisti a grandes feitos de beleza e força, ouvi os sonatas de Beethoven e os rouxinóis dos bosques. Mais e melhor ouvireis vós, meus camaradas que tendes o tempo a favor»

Eis o homem, o escritor, que não se ficou pela visão contemplativa da sua obra, à espera do reconhecimento. Que sabia que, para além do seu tempo, alguém, outros continuariam aquele sonho que perpassa pela sua obra, qual escultor que cinzela a palavra rude e genuína do seu povo, dando-lhe sentido e valor perene.
Obra que não é para ter e mostrar mas para ajudar a transformar.