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Projecto de Lei nº 156/IX
Aprova as Bases Gerais da Justiça e Disciplina Militar

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Preâmbulo

Em obediência à Lei de Bases Gerais da Condição Militar e antes da aprovação dos novos diplomas que irão substituir, entre outros, o Código de Justiça Militar e o Regulamento de Disciplina Militar torna-se imperioso definir e explicitar as Bases Gerais da Justiça e Disciplina Militar em que irão assentar os novos diplomas, bem como a reforma da Justiça Militar.

O Código de Justiça Militar, o Regulamento de Disciplina Militar e os outros diplomas decorrentes não podem deixar de atender aos avanços e conquistas do direito penal, ao estudos e conclusões da ciência do direito, à jurisprudência que sobre a matéria tem sido produzida pelo Tribunal Constitucional, bem como às soluções que em situações semelhantes foram adoptadas pelos países da União Europeia.

Também importa não descurar institutos que fazem parte da nossa cultura e tradição, embora tendo em atenção que o Processo e as penas a aplicar não podem ofender os princípios sobre direitos liberdades e garantias explicitados na Constituição para o Direito Penal e Disciplinar, entre outros, os da necessidade, proporcionalidade e adequação, e tendo em vista a eficácia necessária das penas a aplicar.

Acresce que a Constituição da República Portuguesa destaca e define os princípios e bens jurídicos em matéria penal, os quais têm de ser respeitados e implementados, de modo a evitar o mais possível as inconstitucionalidades supervenientes de soluções menos avisadas que, no passado, e ainda hoje, tanta perturbação causam.

Devem de qualquer modo ser evitadas nos diplomas a aprovar, clivagens e pontos de fricção com o Código Penal devendo-se entender o direito penal militar como parte integrante deste diploma que, pese embora regulando uma realidade sujeita a condicionalismos específicos, está sujeito aos mesmos princípios penais constitucionais, por vezes apenas expressos ou desenvolvidos no próprio Código Penal. Nesta matéria o Direito Penal Militar deve estar em consonância com um princípio de mínimo desvio possível face ao Código Penal, de acordo com o princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição.

Neste sentido e conforme tem sido salientado por especialistas, o Direito Penal Militar não pode constituir um outro Direito Penal, mas sim deverá limitar-se a ser um Direito Penal comum, só diferenciado pelos específicos bens jurídicos que lhe cumpre proteger, e pela área de tutela em que os princípios da dignidade e da necessidade penal têm de operar.

Ainda sobre o Direito Penal Militar devem reservar-se as penas privativas de liberdade para as situações em que esteja em causa o cometimento de crimes, atenta a necessidade de maiores garantias de defesa por parte dos condenados nesse tipo de penas, dada a impossibilidade, na prática, da sua anulação depois de cumpridas, e tendo em atenção as menores garantias de defesa existentes por prática de infracções disciplinares. Nesta matéria, em obediência ao n.º 4 do artigo 30.º da Constituição, deve-se impedir que, sem se atender aos princípios da culpa, da necessidade e da jurisdicionalidade, se decrete a morte profissional do cidadão militar.

Por outro lado, deve atender-se a que os artigos 269º, 270º, e 271º da Constituição encontram-se inseridos no título respeitante à Administração Pública. E, na contextualização sistemática da matéria, contêm regras gerais para os "funcionários e agentes do Estado e demais entidades públicas", onde se incluem os militares, em matéria de responsabilidade civil, criminal e disciplinar e aplicável a todos eles.

Tem sido explicitado por várias fontes a importância e a necessidade dos futuros tribunais que irão julgar os crimes estritamente militares, terem, na sua composição militares, quer por uma questão de tradição, quer por experiência no julgamento da especificidade destes tipos de crimes e ainda pelas contribuições de vivências concretas para a apreciação da matéria de facto, dada a proximidade e conhecimento, por parte dos militares, das situações, factos e circunstâncias relacionadas com tais crimes.

Porém, não pode desde já deixar de se assegurar que, embora os militares possam e devam fazer parte da constituição desses tribunais, a sua inserção deve fazer-se de forma judiciosa. É sabido da confusão que do antecedente tem existido entre o Direito Disciplinar e o Direito Penal Militar, derivada das previsões dos antigos diplomas que obedecendo a princípios corporativos, previam e estatuíam por crimes cujo bem jurídico protegido mais não era do que a disciplina militar.

Importa evitar a tentação existente para que as ofensas disciplinares sejam tuteladas com medidas penais, em obediência a princípios retributivos e de eficácia (embora neste caso duvidosa, conforme salienta a doutrina) da pena, e de modo a que, pelo temor, os valores jurídicos disciplinares fossem respeitados.

Porque tais princípios não podem actualmente ser sustentados, por inexistência de base constitucional e doutrinária, deve ficar assente que, em tempo de paz, a pena de prisão - reacção criminal por excelência - apenas deve ganhar aplicação quando todas as restantes medidas se revelem inadequadas, face às necessidades de reprovação e prevenção, e só pode ser aplicada por cometimento de crime que expressamente a preveja.

Na sequência de recomendações do Conselho da Europa, o Código de Justiça Militar, em tempo de paz, deve privilegiar a aplicação de penas alternativas como por exemplo, a pena de multa em vez das penas curtas de prisão.

Face à dificuldade de integração e ponderação de todos estes princípios e valores em conjugação com princípios axiológicos dominantes ainda hoje na Instituição Militar, os juízes militares têm de estar devidamente preparados e qualificados para efectuarem os julgamentos, na parte de Direito, assegurando-se que a representação dos militares, deverá ser efectuada por juízes que tenham formação jurídica adequada. Evitar-se-á, deste modo, a previsível secundarização do papel de tais juízes militares, que na prática, seriam relegados para segundo plano na discussão de toda a matéria e regras de Direito. Acresce que, no exercício da sua função, o juiz-militar tem o mesmo tratamento protocolar dispensado aos magistrados em geral, e, não sendo jurado, tem por dever fundamentar o seu voto nas decisões a proferir, pelo que não pode deixar de possuir a necessária formação técnico-jurídica.

Assim, de acordo com o art.º 17 da Lei n.º 11/89, de 11 de Junho (Bases Gerais do Estatuto da Condição Militar), e nos termos da alínea c) do art.º 161.º da Constituição, o Grupo Parlamentar do PCP apresenta o seguinte Projecto de Lei:


Artigo 1.º
Disposição geral

A presente lei define, no âmbito do instituído na Constituição da República Portuguesa, as bases gerais em que assentam a justiça e a disciplina militar.


Artigo 2.º
Bens jurídicos militares

Os bens jurídicos militares carecidos de tutela penal são os previstos na Constituição e derivam das missões das Forças Armadas de garantir a independência nacional, a integridade do território, a liberdade e a segurança das populações contra agressões ou ameaças externas, bem como de satisfazer os compromissos internacionais do Estado português no âmbito militar e participar em missões humanitárias e de paz assumidas pelas organizações internacionais de que Portugal faça parte.

Artigo 3º
Direito e Processo Penal Militar

1. A preservação e salvaguarda dos bens jurídicos militares fundamentais é passível de tutela penal, através do Direito Penal Militar.

2. O Direito Penal Militar faz parte do Direito Penal Comum.

3. A parte geral do Código Penal é directamente aplicável aos crimes estritamente militares.

4. O Código de Justiça Militar regula a tutela penal por violação aos bens jurídicos militares, bem como a competência material.

5. A Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais define a competência funcional e territorial dos tribunais em matéria penal militar.

6. A inserção no Código de Justiça Militar da medida da pena de prisão, os seus pressupostos, e as circunstâncias da previsão e aplicação dos tipos criminais, terão de obedecer aos ditames constitucionais, e, nomeadamente, aos critérios de necessidade, proporcionalidade e adequação, tendo em consideração que a finalidade dos tipos penais é a protecção dos bens jurídicos estritamente militares e a reintegração social do indivíduo na vida militar.

7. O processo penal militar é regulado pelo Código de Processo Penal.

8. O regime de execução da pena de prisão imposta a militares bem como a organização e funcionamento da Polícia Judiciária Militar será regulado em diploma próprio.

9. O cumprimento da pena de prisão por militar é efectuado em estabelecimento prisional militar.

Artigo 4.º
Disciplina Militar

A disciplina militar é elemento essencial da organização, funcionamento e operacionalidade da estrutura das Forças Armadas, bem como a salvaguarda dos valores militares que as enformam.

Artigo 5.º
Direito Disciplinar

1. O Direito Disciplinar tutela as condutas contrárias à moral militar e aos valores axiológicos das Forças Armadas ou individuais específicos.

2. A tutela disciplinar militar exerce-se nos termos do Regulamento de Disciplina Militar.

3. O Regulamento de Disciplina Militar define os deveres a que estão sujeitos os militares e regula o processo por infracção à disciplinar militar.

4. O Regulamento de Disciplina Militar aplica-se aos militares que se encontrem em efectividade de serviço.

Artigo 6º
Sanções disciplinares

1. Nenhuma sanção disciplinar pode envolver, como efeito necessário, a perda de direitos civis, profissionais ou políticos nomeadamente a demissão ou expulsão.

2. As sanções disciplinares são, por ordem crescente de gravidade, as seguintes:

a) Repreensão;
b) Repreensão agravada;
c) Multa;
d) Privação de saída.

3. As sanções disciplinares obedecem aos princípios constitucionais da necessidade, proporcionalidade e adequação.

4. Em tempo de paz e em território nacional a interposição de reclamação ou recurso tem efeito suspensivo.

Artigo 7º
Processo disciplinar

1. O processo disciplinar é constituído por uma fase preliminar de averiguações, fase instrutória, fase de defesa e fase decisória.

2. Ao arguido em processo disciplinar é garantido o direito a um processo justo, onde sejam assegurados os princípios da defesa, da reclamação e recurso hierárquico, do contencioso, da igualdade entre as partes, da imparcialidade do julgador e da legalidade das provas, para além de outras garantias necessárias à efectiva e plena aplicação da justiça.

3. São competentes para instaurar ou mandar instaurar processo disciplinar todos os superiores da cadeia hierárquica do militar.

Artigo 8.º
Autonomia do processo disciplinar

A acção penal por cometimento de crime estritamente militar e a acção disciplinar relativa aos mesmos factos são autónomas, sem prejuízo da consumpção da pena disciplinar já aplicada pela pena criminal, se for caso disso.

Artigo 9º
Estatuto dos juízes militares

O estatuto dos juízes militares e dos assessores militares do Ministério Público é regulado por diploma próprio.

Artigo 10º
Habilitação para julgar

Os juízes militares têm de ter habilitação própria para julgar de Direito nos tribunais que, em tempo de paz, julguem crimes estritamente militares.


Assembleia da República, em 6 de Novembro de 2002