Índice CronológicoÍndice Remissivo

Projecto de Lei nº 428/VII
Define a eficácia das respostas ao referendo sobre a instituição em concreto das regiões

Situação


O PCP opôs-se sempre à introdução na Constituição da necessidade de um referendo ou de uma consulta pública precisamente à instituição em concreto das regiões administrativas. Desde sempre, o PCP considerou que isso se traduzia numa forma de possibilitar que viesse a ser defraudada a obrigação constitucional de criar as regiões. Na prática, tal consulta configura uma espécie de referendo sobre matéria constitucional, violando assim o que deveriam ser intocáveis limites materiais do referendo. Como consequência de sucessivas chantagens, hesitações e recuos, o PS, com a introdução dessa consulta pública, responsabiliza-se por ter metido o processo de regionalização numa enorme embrulhada, com perigosas consequências sobre a sua própria viabilidade.

Sinal dessa embrulhada é o facto de, mal foi aprovada a revisão constitucional, ter estalado uma polémica acerca da consulta directa sobre a instituição em concreto das regiões administrativas, centrada na questão das condições da sua "validade". Um significativo grupo de comentadores (neles incluídos todo o grupo de pressão anti-regionalista) veio a público defender que para poder haver instituições das regiões teria de haver uma votação superior a 50% na consulta directa. Isto significaria que, mesmo que a resposta afirmativa ganhasse, ela equivaleria a um "não" se a afluência às urnas fosse inferior a 50%

Como tem sucedido muitas vezes ao longo do processo de regionalização, o PS começa defendendo uma posição e acaba na posição contrária, cedendo à pressão anti-regionalista. Foi assim quanto ao referendo. O PS começou por considerar inaceitável um referendo com as características da consulta directa que veio a ser consagrada, já que era um referendo que punha em questão a obrigação constitucional que impende sobre os órgãos de soberania de criarem e instituírem as regiões administrativas, traduzindo-se afinal num referendo sobre matéria constitucional (o que a Constituição proíbe). Mas o PS partiu desta posição para a posição contrária, acabando a defender a realização da consulta directa obrigatória, apesar de a ter denunciado como uma exigência dos anti-regionalistas para atrasarem o processo de regionalização.

Também na polémica referida, os Deputados do PS começaram por contrariar a exigência de votação superior a 50% para "validade" da consulta directa. Mas depois, através da proposta de lei nº145/VII, o Governo veio impor a posição contrária, não só defendendo essa exigência de 50% para, em caso de resposta afirmativa, a consulta directa sobre regionalização ser vinculativo ( é esta a formulação que está no artigo 256º nº2 da referida proposta de lei), como também assumindo o compromisso político de que sem 50% de votantes o PS não fará a instituição das regiões. Há um grande salto de uma formulação para outra. Enquanto a primeira significa que no caso de uma votação inferior a 50% a resposta afirmativa não seria vinculativa ( mas isso não impediria o processo de avançar, se assim o decidissem os órgãos de soberania), já a segunda formulação transforma uma resposta afirmativa com menos de 50% de votantes num verdadeiro "não", com o mesmo efeito deste, de impedir a continuação do processo.

Todo este caso é um dos múltiplos exemplos da enormíssima trapalhada em que o PS, conjugado com o PSD e PP, meteu a criação das regiões. Hesitante, roído por divergências internas acerca do mérito das regiões, tolhido pelas dúvidas tácticas sobre as vantagens deste processo para a imagem do Governo, o PS capitula mais uma vez, e mais uma vez sem razão.

Na verdade, a exigência de 50% para "validação" da consulta directa sobre a instituição em concreto das regiões é na realidade uma mera operação política para dificultar o processo, feita sem base constitucional e sem razões técnico-jurídicas.

A invocação da norma constitucional do artigo 115º nº 11 (que o PCP contestou e segundo o qual "o referendo só tem efeito vinculativo quando o número de votantes for superior a metade dos eleitores inscritos no recenseamento"), e a sua aplicação ao caso da consulta directa sobre a instituição em concreto das regiões prevista no artigo 256º da Constituição transformado numa exigência sine quan non, é um absurdo lógico e uma perversão do regime constitucional.

De facto, no regime geral do referendo ( artigo 115º da Constituição), este é de recurso facultativo, pode versar sobre algumas matérias da competência da Assembleia da República e do Governo que não tenham sido ainda objecto de decisão definitiva (isto é, sobre as quais não tenha sido já aprovada a Convenção ou norma legislativa que se pretende com o referendo pôr à consulta popular); só é vinculativo, quer para a resposta afirmativa, quer para a negativa, se votarem mais dos 50% dos eleitores inscritos no recenseamento; se isso não suceder, se votarem menos de 50% dos eleitores a resposta não é vinculativa, o que significa que o órgão de soberania respectivo pode fazer o que entender, incluindo decidir em sentido contrário ao da resposta (isto, do ponto de vista técnico, já que do ponto de vista político, a resposta deverá obviamente ser considerada).

A situação quanto à consulta directa sobre a instituição em concreto das regiões é substancialmente diferente. Trata-se de um referendo que versa sobre uma lei já aprovada e publicada, de realização obrigatória, que condiciona a concretização de uma imposição constitucional. Este facto tem sido sonegado em todo o debate: o que é vinculativo neste processo para os órgãos de soberania é a própria criação e instituição das regiões administrativas no Continente.

Tratando-se assim de uma situação que não está na disponibilidade dos órgãos de soberania, pois estes estão sujeitos a um dever constitucional, não tem nenhum sentido aplicar a esta situação (artigo 256º da CRP) um regime especialmente gravoso face ao regime geral (artigo 115º). De facto, para os referendos, em geral, a resposta negativa só é vinculativa (tal como a afirmativa) se houver mais de 50% de afluência às urnas; no regime defendido pelo Governo e pelo PSD, qualquer resposta negativa seria vinculativa, fosse qual fosse o número de votantes; mas uma resposta positiva só permitiria o prosseguimento do processo se fosse uma votação com mais de 50%; no caso contrário, a resposta afirmativa equivaleria a uma negativa, impedindo o prosseguimento do processo.

Quem faz esta construção jurídica absurda, tendenciosa e perversa, está decididamente contra as regiões administrativas e acha que elas figuram na Constituição para ... não serem concretizadas !

Este regime seria sempre inaceitável à luz dos princípios gerais. No limite, se se quisesse aplicar mecanicamente o regime do artigo 115º, nº 11 a este caso, então deveria entender-se que, face a uma resposta afirmativa sem 50% de votantes, ela não seria vinculativa, mas, tal como sucede no regime geral, seria possível o prosseguimento do processo de instituição, através da aprovação subsequente das leis de instituição em concreto das regiões, e sem necessidade de repetição da consulta directa.

Mas, na realidade, se alguma especialidade deve haver neste caso, ela vai no sentido inverso ao pretendido pelo Governo. Enquanto este pretende dificultar a concretização da imposição constitucional de regionalização do Continente, o que deve ser feito no regime jurídico desta consulta directa é remover obstáculos artificiais à concretização do programa constitucional, que impõe a existência de regiões.

De facto, se face a uma resposta positiva sem 50% dos eleitores se permitisse que os órgãos de soberania não concretizassem a instituição das regiões através da não aprovação das respectivas leis, estava a permitir-se que ficasse na disponibilidade política daquelas instituições o cumprimento da Constituição. Tal solução é inconstitucional, porque o primeiro dever dos órgãos de soberania é o cumprimento da Constituição. Seria assim uma solução que abria campo a uma inconstitucionalidade e criava um novo obstáculo, não definido na Constituição, à instituição das Regiões.

Por isso, o regime jurídico desta consulta directa deve deixar claro que para o prosseguimento do processo, isto é, para a consulta directa ser eficaz para a instituição em concreto das regiões, o que é necessário é que as respostas positivas sejam em número superior às negativas, sem nenhuma condição adicional; assim como deve definir que, sendo a consulta directa eficaz nos termos atrás referidos, os órgãos de soberania estão constitucionalmente vinculados à aprovação das leis de instituição em concreto das regiões.

Este é o entendimento coerente dos princípios constitucionais, defendido por muitos, em oposição ao assumido pelo Governo.

E importa registar que é este o entendimento que resulta dos trabalhos preparatórios. De facto na versão aprovada na CERC em Julho de 1996, a norma referente a esta consulta directa já tinha um nº 3 semelhante ao actual nº 3 do artigo 256º, segundo o qual à consulta directa sobre a instituição em concreto das regiões se aplicavam com as devidas adaptações as normas do regime geral do referendo (artigo 115º); mas tinha um nº 4, que determinava, de forma especial para uma dessas regras gerais, a do artigo 115º nº 11, dizendo que também a esta consulta directa se aplicaria a exigência de 50% dos votantes. Essa norma foi fustigada por fortes críticas, designadamente do PCP, que apontavam a incongruência da exigência, não só face à natureza do processo, como também tendo em atenção o estado do recenseamento. Sob estas críticas, a norma veio a ser retirada. Os defensores da solução do Governo vêm agora dizer que foi retirada porque se aplicava o regime geral. Se assim fosse, que razão levaria a tê-la inicialmente incluído, quando o nº 3 já previa a aplicação do regime geral aos casos omissos? Só há uma explicação: porque não bastava um enunciado geral de aplicação do regime geral, para este caso, dado a especificidade desta consulta directa, era necessário uma aplicação expressa dessa exigência de 50%. Se o tal nº 4 foi eliminado e se as críticas que se ouviram iam no sentido de a exigência de 50% dos eleitores ser inaceitável, que outro sentido pode ter essa eliminação se não o de significar que deixou de ser feita aquela exigência? Ainda por cima, quando essa é que é a solução e que evita a criação de obstáculos artificiais à execução de imposição constitucional de criação e instituição das regiões.

O PCP quer registar com clareza a sua convicção profunda de que, realizando-se a consulta pública, os portugueses acorrerão à votação em número muito relevante, seguramente superior a 50%, e votarão de forma clara a favor da instituição das regiões. O que significa que, mesmo com a abstrusa proposta do Governo, o processo de regionalização avançará. Mas para além das considerações práticas, estão os princípios. E estes exigem que a regulamentação da consulta pública não esteja inquinada por normas incongruentes e limitativas, na tentativa de bloqueamento do processo.

Nestes termos, os Deputados do Grupo Parlamentar do PCP apresentam o seguinte Projecto de Lei:

Artigo único

(Eficácia da consulta directa prevista no

artigo 256º da Constituição)

  1. Com a resposta favorável à consulta de alcance nacional e relativa a cada área regional, ficam preenchidas as condições impostas no artigo 256º nº1 para a instituição em concreto das respectivas regiões administrativas.
  2. Para cumprimento do dispositivo constitucional do artigo 236º nº1 que define a existência das regiões administrativas como autarquias locais do continente, a Assembleia da República aprovará a lei de instituição de cada região administrativa no prazo de noventa dias após a publicação do resultado favorável da consulta directa sobre ela realizada.

Assembleia da República, 6 de Novembro de 1997

Os Deputados