Índice CronológicoÍndice Remissivo

Projecto de Lei nº 417/VII
Interrupção Voluntária da Gravidez

Situação


I - Pela abolição da criminalização do aborto até às 12 semanas.

Um debate jovem e mobilizador

A anterior sessão legislativa ficou indelevelmente marcada pelo debate sobre a despenalização do aborto.

Correspondendo à luta das mulheres que exigem a abolição da criminalização da interrupção voluntária da gravidez, as propostas de legalização do aborto a pedido da mulher, nas primeiras 12 semanas, designadamente com fundamento em razões de ordem social e económica , reuniram o maior apoio parlamentar de sempre, como o salientou a Comissão Política do P.C.P.

O debate suscitado na sociedade portuguesa, a partir da apresentação pelo Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português, foi um debate vincado, pela crescente condenação do aborto clandestino e suas consequências para a saúde da mulher, a que a lei penal dá suporte, e pelo apoio de cada vez mais amplos extractos da população, com especial destaque para a Juventude.

O debate, que temporalmente se estendeu muito para além do dia em que a Assembleia da República rejeitou, apenas por 1 voto, a despenalização com fundamento em razões económicas e sociais, demonstrou que as mulheres portuguesas continuam a dar passos na sua luta contra o flagelo do aborto clandestino, pelo direito a decidir, pelo direito à liberdade de consciência, pelo direito à sexualidade, pelo direito à saúde.

II- O aborto clandestino como problema social e de saúde pública

A apresentação pelo P.C.P. do Projecto de Lei nº177/VII pôs de novo em destaque os graves problemas sociais das mulheres portuguesas que as levam à dramática decisão de pôr termo a gravidezes indesejadas.

O debate veio reafirmar que o agravamento das condições de vida e de trabalho impede às mulheres a realização do seu direito a uma maternidade feliz.

Ficou claro que a taxa de feminização da pobreza , o desemprego a estender-se até aos estratos sociais das mulheres licenciadas, a discriminação de que as mulheres são vítimas no acesso ao emprego, condicionam a decisão das mulheres colocadas perante a revelação de que estão grávidas.

O debate veio recordar à juventude os resultados dramáticos das gravidezes adolescentes, a elevada taxa da maternidade adolescente existente no nosso país, e as inevitáveis e indesejáveis consequências para o futuro das jovens, com o seu futuro profissional e familiar muitas vezes irremediavelmente comprometido.

O recente debate trouxe de novo para o limiar das consciências o grave problema de saúde pública resultante do flagelo do aborto clandestino.

Não é possível fingir e ignorar que o aborto clandestino é causa de morte materna, com especial incidência nas adolescentes.

Não é possível sossegar consciências à sombra da criminalização do aborto, depois de se reafirmar de novo que o aborto clandestino é causa de graves mutilações, de infertilidades, de graves afecções físicas e psíquicas. Depois de se saber que o aborto clandestino priva as mulheres do direito a viver a sexualidade de uma forma harmoniosa.

O debate salientou que são as mulheres mais atingidas pela crise económica e social, as que não podem recorrer às clínicas portuguesas e estrangeiras, as mais atingidas no seu direito à saúde.

Mas salientou também que sobre todas se abate o estigma da clandestinidade com todo o cortejo de consequências.

III- O Direito Penal como causa do flagelo do aborto inseguro

O debate veio reafirmar que nenhum sector da sociedade pode usar o direito penal para impor os seus próprios conceitos morais ou confessionais a toda a sociedade.

O debate recordou a ineficácia da lei na protecção da vida intra-uterina, dada a própria tolerância da sociedade e das instâncias formais de controle (polícias e Tribunais) sentindo a injustiça da criminalização, sentindo a intolerância da lei.

Perante a viva denúncia de que as verdadeiras penas que o Estado reserva às mulheres são, não as penas de prisão mas o risco de morte, a morte, as mutilações físicas e psíquicas, o debate trouxe pela voz da penalista Professora Drª Teresa Beleza , a acusação de que as mulheres são vítimas de tratamentos bárbaros, cruéis, desumanos e degradantes proibidos pelo artigo 25º da Constituição da República, e por Tratados e Pactos Internacionais a que Portugal se encontra vinculado.

E que não protegendo a lei criminalizadora a vida intra-uterina, se aplica mesmo à actual lei, aquilo que foi afirmado pelos Professores Figueiredo Dias e Costa Andrade relativamente à criminalização, em geral, do aborto : redunda "num indesejável desserviço aos valores fundamentais da própria vida humana"

O debate trouxe, de novo, para a luz do dia, a necessidade de substituir uma lei que atira as mulheres para a teia da clandestinidade e do risco, por uma lei, que não obrigando ninguém a abortar, resolve os graves problemas de saúde pública com que se debate a sociedade portuguesa.

IV- A lei criminalizadora e os direitos fundamentais da Mulher

O debate centrou-se em torno da mulher, como pessoa humana, titular de direitos fundamentais, como o direito à vida e à integridade física, o direito à liberdade de consciência, o direito à liberdade e à segurança, à identidade pessoal, ao desenvolvimento da personalidade, à cidadania, ao bom nome e reputação, à reserva da intimidade da vida privada e familiar, à protecção legal contra quaisquer formas de discriminação, o direito a uma maternidade feliz, o direito à saúde.

Tal como o salientou a Conferência Internacional sobre Desenvolvimento e População realizada no Cairo em 1994, a 4ª Conferência sobre a Situação Mundial da Mulher realizada em Beijing em 1995, e o reafirma agora o Relatório do Fundo das Nações Unidas para a População, publicado já no corrente ano, os Direitos Sexuais e Reprodutivos de Mulheres e Homens são Direitos Humanos, implicitamente contidos noutros direitos, como o direito à vida e à sobrevivência, à liberdade e à segurança pessoal, à igualdade de tratamento, ao desenvolvimento e ao nível mais elevado possível de saúde.

Perante a ineficácia da lei criminalizadora, perante a constatação de que a Constituição não contém imposições absolutas de criminalização, pergunta-se se mesmo assim ainda haverá razões válidas para restringir direitos fundamentais da mulher, que é pessoa humana.

V - A lei penal e a vida intra-uterina

O debate veio recordar a jurisprudência do Tribunal Constitucional, nomeadamente a do Acórdão de 1985:

" a vida intra-uterina não é constitucionalmente irrelevante ou indiferente, sendo antes um bem constitucionalmente protegido, compartilhando da protecção conferida em geral à vida humana enquanto bem constitucional objectivo (Constituição, artigo 24.°, n.° 1). Todavia, só as pessoas podem ser titulares de direitos fundamentais - pois não há direitos fundamentais sem sujeito -, pelo que o regime constitucional de protecção especial do direito à vida, como um dos "direitos, liberdades e garantias pessoais", não vale directamente e de pleno para a vida intra-uterina e para os nascituros."

E esquecem também, tal como se diz no referido Acórdão que "qualquer que seja a sua natureza, seja qual for o momento em que a vida principia, a verdade é que o feto (ainda) não é uma pessoa, um homem, não podendo por isso ser directamente titular de direitos fundamentais enquanto tais. A protecção que é devida ao direito de cada homem à sua vida não é aplicável directamente, nem no mesmo plano, a vida pré-natal, intra-uterina".

Omitem também que, de acordo com a referida decisão do Tribunal Constitucional, "Enquanto bem constitucionalmente protegido, também a vida intra-uterina reclama portanto a protecção do Estado. Todavia, entre afirmar isso e sustentar que essa protecção tem de revestir, por força da Constituição, natureza penal, mesmo contra a mulher grávida (que em si aloja e sustenta o feto), vai uma enorme distância, não podendo por isso partir-se do princípio de que a ausência de protecção penal equivale pura e simplesmente a desamparo e desprotecção."

A Lei penal é claramente impotente para amparar e proteger a vida intra-uterina. São as medidas sociais, as medidas necessárias para proporcionar às mulheres a concretização do seu direito a uma maternidade feliz, que verdadeiramente protegem o embrião e o feto.

VI- O aborto como último recurso

O debate veio recordar que o direito a uma maternidade e paternidade felizes e conscientes exigem a concretização do direito à educação sexual e do direito ao planeamento familiar.

De facto, são esses os meios preventivos do aborto.

Por isso, em 1982, ao mesmo tempo que apresentava o primeiro Projecto de Lei sobre o aborto, o P.C.P. inseriu no debate um Projecto de Lei sobre Educação Sexual e Planeamento Familiar, e um Projecto sobre Protecção da Maternidade. Todos os projectos confluíam no objectivo de efectivar o direito a maternidade e paternidade conscientes.

Mas a educação sexual é praticamente inexistente no nosso País.

E o debate sobre o projecto de Lei do P.C.P., na anterior sessão legislativa, demonstrou como é ainda insuficiente a concretização do direito ao planeamento familiar. Apesar dos progressos verificados desde 1984.

Acresce que os métodos contraceptivos não são infalíveis. Pelo que o aborto é sempre o último recurso para quem entende que a maternidade e a paternidade devem ser livres e conscientes, e que, sob pena de grave violação dos direitos fundamentais da mulher, nenhum estado pode impedir o direito à tomada de decisão.

VII - Os apelos das Conferências Internacionais

O aborto clandestino é um problema grave, que preocupando diversos países, levou à alteração das leis criminalizadoras, aí onde se entendeu que se tratava de um problema social, de um problema de saúde pública, de um problema de direitos humanos.

As últimas Conferências Internacionais sobre a situação da População (Cairo 1994) e sobre a situação da Mulher (Beijing, 1995), apelaram aos Estados para que abordassem a questão do impacto na saúde, do aborto praticado em condições de risco, tendo a Plataforma de Acção de Beijing apelado aos países para que considerassem a possibilidade de rever leis que contêm medidas punitivas contra as mulheres que praticarem abortos ilegais.

A Organização Mundial de Saúde na Conferência realizada em 1994 sobre a situação da saúde das mulheres indicou como índices daquela situação, a mortalidade materna, a anemia e o aborto inseguro.

O Relatório do FNUAP (Fundo das Nações Unidas para a População) publicado já no corrente ano, revelam-se estatísticas mundiais que dispensam comentários:

De 75 milhões de gravidezes por ano, não desejadas, resultam 45 milhões de abortos; 70.000 mulheres morrem por ano em consequência de aborto praticado em condições de risco e um número desconhecido sofre de infecções e de outras consequências para a saúde.

Sabendo-se, como se sabe, que a maior parte dos abortos clandestinos têm origem nas condições económicas, sociais e profissionais, pudemos concluir que as parcas alterações introduzidas na lei na última sessão legislativa, não respondem aos apelos das Conferências Internacionais.

VIII - A reapresentação da iniciativa legislativa

O movimento de opinião favorável à abolição da criminalização do aborto, demonstrando a crescente condenação do aborto clandestino gerado pela própria lei, a continuação dos graves problemas sociais e de saúde pública das mulheres portuguesas, a privação do seu direito a uma maternidade consciente e feliz, justificam a reapresentação da iniciativa legislativa.

Os abortos continuam a fazer-se aos milhares , num número que não se sabe exactamente, porque não há estatísticas da clandestinidade. É por cálculos meramente matemáticos a partir da taxa de fertilidade das mulheres e do número de gravidezes que não chegaram ao fim, que se chega a um número que peca por defeito: 26.000 abortos por ano.

O aborto inseguro representa uma barbárie que se abate sobre o sexo feminino. Há que pôr fim à mesma.

Na reapresentação da iniciativa legislativa levámos em devida conta o resultado dos debates.

Mas se consideramos importante, e assim alguns o destacaram, como forma preventiva de futuros abortos, que a mulher que interrompa uma gravidez tenha acesso no prazo de 7 dias a consulta de planeamento familiar, como nós o propusemos e propomos, já a passagem prévia da mulher que deseja abortar por qualquer centro de aconselhamento, nos parece não ser de admitir. Porque não representa, de facto, qualquer protecção da vida intra-uterina.

A experiência de algumas leis que tal introduziram, tem demonstrado que essa exigência faz aumentar a taxa de abortos realizados no 2º trimestre, e faz aumentar a taxa de abortos realizados em Estados limítrofes que não colocam essa exigência.

Foi o que aconteceu, por exemplo, no Estado do Mississipi, a partir do momento da exigência de passagem prévia por centros de aconselhamento:

O número de abortos realizados no 2º trimestre passou no 1º ano de execução da Lei de 10,4% para 14,5% (com o agravamento dos riscos para a saúde das mulheres) e aumentou a taxa de abortos realizados no Estado vizinho.

Assim, o Projecto de Lei que apresentamos, corresponde ao Projecto de Lei nº 177/VII, da anterior sessão legislativa, contendo apenas as alterações resultantes da aprovação da Lei 90/97 de 30 de Julho

Propomos:

Com o presente Projecto de Lei pretende o P. C. P. que se institua um regime legal, mais adequado do que o vigente, nomeadamente tendo em atenção os conhecimentos da medicina, o qual tem de ser acompanhado por políticas que garantam a realização pessoal dos cidadãos e que protejam a maternidade e a paternidade.

Assim, os Deputados abaixo-assinados do Grupo Parlamentar do P.C.P. apresentam o seguinte

Projecto de Lei nº

Interrupção Voluntária da Gravidez

Artigo 1º

(Interrupção da gravidez não punível)

O artigo 142º do Código Penal passa a ter a seguinte redacção:

1 - Não é punível a interrupção da gravidez efectuada por médico, ou sob a sua direcção, em estabelecimento de saúde oficial ou oficialmente reconhecido, a pedido da mulher grávida, durante as primeiras 12 semanas de gravidez.

2 - De igual modo, não é punível a interrupção da gravidez efectuada nas condições descritas no nº 1, com o consentimento da mulher grávida, quando, segundo o estado dos conhecimentos e da experiência da medicina:

a).actual alínea a) do nº1 do artigo 142º;

b) se mostrar indicada para evitar perigo de morte ou de grave e irreversível lesão para o corpo ou para a saúde física e psíquica da mulher grávida e for realizada nas primeiras 16 semanas de gravidez;

  1. actual alínea c) do nº1 do artigo 142º, com a redacção que lhe foi dada pela Lei 90/97 de 30 de Julho;

  1. houver seguros motivos que indiciem risco de que o nascituro venha a sofrer, de forma incurável, de HIV (síndroma de imunodeficiência adquirida) e for realizada nas primeiras 24 semanas de gravidez, comprovadas nos termos referidos na alínea anterior;

  1. actual alínea d) do nº1 do artigo 142º com a redacção que lhe foi dada pela Lei 90/97 de 30 de Julho;

f) nos casos referidos na alínea anterior, sendo a vítima menor de 16 anos ou incapaz por anomalia psíquica, se a interrupção da gravidez for realizada nas primeiras 24 semanas comprovadas nos termos referidos na alínea c).

3 - Sempre que se trate de mulher toxicodependente, não é punível a interrupção da gravidez efectuada a seu pedido nas condições referidas no nº1, durante as primeiras 16 semanas de gravidez.

4 - Actual nº 3.

5 - Actual nº 4.

Artigo 2º

(Despenalização da conduta da mulher grávida)

O artigo 140º do Código Penal passa a ter a seguinte redacção:

Artigo 140º

(Interrupção da gravidez)

1 - Actual nº 1.

2 - Actual nº 2.

3 - Eliminado.

Artigo 3º

(Garantias de prática da I.V.G. nos termos da presente Lei)

1 - Os estabelecimentos públicos de saúde, a nível distrital, serão organizados por forma a dispor dos serviços necessários à prática da interrupção voluntária da gravidez, de acordo com o previsto na presente lei, sem prejuízo do direito à objecção de consciência dos médicos e demais profissionais de saúde.

2 - A objecção de consciência deverá ser declarada na altura em que for solicitada a interrupção da gravidez, e terá de constar de documento então assinado pelo objector, sendo tal objecção imediatamente comunicada à mulher, ou a quem, no seu lugar, pode prestar o consentimento.

3 - A comunicação referida no número anterior deve ser acompanhada de informação sobre o profissional que não seja objector de consciência.

4 - Sempre que um estabelecimento público de saúde não disponha de condições para a prática de interrupção voluntária da gravidez, as solicitações de intervenção ali apresentadas serão imediatamente encaminhadas por aquele serviço ao estabelecimento de saúde mais próximo onde seja praticada a interrupção voluntária da gravidez, por forma a que esta seja efectuada nas condições e prazos previstos na presente lei.

Artigo 4º

(Planeamento familiar)

A instituição onde se tiver efectuado a interrupção voluntária da gravidez providenciará para que a mulher, no prazo máximo de 7 dias, tenha acesso a consulta de planeamento familiar.

Artigo 5º

(Entrada em vigor)

A presente lei entra em vigor no dia imediato ao da sua publicação.

Assembleia da República, 7 de Outubro de 1997

Os Deputados