"Misturas terríveis" |
Engenheiro
Realizou-se no passado dia 10 de Outubro de 2001
um Encontro do PCP sobre o sector das Telecomunicações.
Dado o interesse dos temas abordados, o "O Militante" decidiu publicar neste número a intervenção dos camaradas Francisco Silva e Álvaro Tavares, contribuindo assim para uma melhor informação sobre as questões que se colocam neste importante sector.
O telefone, a rádio, a televisão e o computador, marcos tecnológicos das sociedades desenvolvidas actuais, marcaram o século que findou e são pilares do mundo das telecomunicações que aqui debatemos.
Só que a sociedade em que vivemos é estratificada em classes sociais que, aos benefícios para todos que a evolução tecnológica traz, junta a ganância das elites minoritárias em sacar o maior proveito próprio dessa evolução, transformando isso em negócio desequilibrado. O negócio das telecomunicações, ou seja, comunicação, informação e divertimento.
No campo da informação a situação é tal que os acontecimentos do mundo quase parecem só existir quando existe informação, tratada nos diversos campos das telecomunicações, incluindo a comunicação escrita.
O grande cartel dos media, uma minoria de homens que subiram no mundo dos negócios por caminhos por vezes muito escuros, impõe já, por conluio, através de qualquer jornal, revista, rádio, TV ou Net, as regras e a forma que público e políticos devem adoptar e até pensar.
Veja-se o caso do tratamento dado ao terrorismo que é recente. Ao passo que os actos de terrorismo executados nos EUA em 11de Setembro de 2001 são exaustivamente condenados (e bem!) e dissecados ao pormenor, um dos terrorismos praticados neste momento pelos EUA, através do bloqueio de medicamentos e alimentos à população civil do Iraque, e de que resultou cerca de um milhão de mortos entre os quais 500 mil crianças, é ocultado, não é tratado como terrorismo nem é sequer condenado. É para impor um pensar único à americana que os EUA já bombardeiam estações e meios humanos de TV (TV-Belgrado, Al Jazeera).
Quem detém estes meios tem o domínio político dos povos e tem deles grandes lucros. Uma mistura terrível!
Estas são as origens das privatizações, liberalizações e globalizações.
Liberalização
Competição gera evolução, lê-se nas introduções simples dos manuais da liberalização.
Mas, como tudo nesta sociedade em que vivemos, as regras estão dependentes das classes que detêm o poder e, como disse anteriormente, do próprio controlo da informação.
Como todos sabemos do passado recente, a UE estipulou datas para o fim do que chamou monopólios públicos das telecomunicações, genericamente 1998, embora com cambiantes, como foi o caso de Portugal.
Antes disso, os executivos das empresas de telecomunicações afinaram-se em congresso pelo lema contagem final, felicitando-se por os Estados-membros da UE conseguirem pôr-se de acordo com o que chamaram fim dos monopólios públicos, como se de uma doença se tratasse e dizendo, por mistificação, que a partir da liberalização iríamos assistir a uma concorrência leal, à escala internacional, entre todas as forças em jogo.
Hoje diz-se que o sector das telecomunicações em Portugal não goza, genericamente, de boa saúde e que 11 operadores estão em demasia para os 10 milhões de habitantes. Mas, mais importante que isso é esses executivos dizerem, em 2001, que a liberalização foi castrada porque, mais uma vez repetem, a política do Estado continua a não promover a abertura total do mercado e a sociedade da informação. Trata-se, já aqui, de guerra de grupos em que, como sempre, se tenta encostar o Governo à parede para sacar sempre mais e mais benefícios.
Os eurocratas da UE, louvados anteriormente por atacarem o sector público, são, por exemplo, atacados pelos executivos dos operadores principais já privatizados por alguns manifestarem a necessidade de abaixamento das chamadas locais e a abertura das redes locais para a criação de uma sociedade de informação. «Os Estados que assumam os custos», é a habitual resposta de quem sabe que pode contar com as políticas de direita para passar os impostos do cidadão a vacas leiteiras das empresas privadas.
Mas numa coisa parecem todos eles de acordo: louvam os Governos PS pela sua maior abertura à desregulamentação do sector em comparação com os anteriores executivos PSD, aquilo a que, por palavras minhas, chamo política de direita mais descarada.
Competição gera evolução mas, paradoxalmente, um mercado totalmente concorrencial e global não impede posições dominantes ou monopolistas.
Porquê? Porque estamos numa sociedade de classes antagónicas. Se a estatização total pôde gerar, no passado e ainda no presente, burocracia, corrupção, nepotismo e incapacidade de competição (situação que igualmente acontece em empresas privadas), isso acontece pela dependência total dos seus órgãos de gestão face aos partidos do poder e não pela dependência exclusiva ou parcial do Estado.
A concentração do capital num sector totalmente privatizado gera monopólios e nega a essência da liberalização. Os especialistas da Bolsa costumam usar frases como «haverá apenas espaço para as empresas líderes de mercado» ou, por palavras minhas, concentração até ao monopólio final.
O Estado é impedido de ser juiz pelos partidos no governo. É o caso da acção de ouro (ou golden share) na PT, que o Estado nunca usará na defesa do sector mas apenas para enxamear, de afilhados do Governo (ou boys), os órgãos executivos, a todos os níveis da empresa.
Privatização
Como sempre o dissemos a privatização é uma opção ideológica dos partidos no Poder.
Para evitar interpretações mal intencionadas dizemos que nunca pusemos em causa a coexistência dos sectores estatal e privado e, evidentemente, também nunca quisemos a estatização da economia. Mas sempre defendemos uma posição determinante do Estado, através de uma empresa base, no controlo dos sectores que consideramos básicos da nossa economia, no qual inserimos, e cada vez mais, as telecomunicações.
Estivemos e estamos contra que o controlo do negócio saísse das mãos do Estado no caso da empresa chave, como era a PT. Aqueles que dizem que o Estado não pode ser árbitro e parte interessada no negócio disfarçam que, num sector totalmente privatizado, o Estado, dominado pela política de direita, está do lado dos privados e não é juiz.
A história da privatização do sector passou também por necessidades de arranjar dinheiro rápido por parte do Governo, para as implicações a que a moeda única levava e adiar o exacerbar de conflitos sociais a que esta política sempre conduz e que pode vir a ser o caso agora do congelamento de salários que o Governo promete para 2002, em contrapartida com a impunidade escandalosa ao fisco dos lucros do jogo da Bolsa.
A estratégia foi executada por processos que prejudicaram o erário público, incluindo forte investimento público prévio, a subavaliação das empresas, avaliadores que seriam também compradores, processos que consideramos fraudulentos. Conseguiu-se o anestesiamento e o aliciamento de trabalhadores e pequenos investidores para suporte ao processo, através de ganhos rápidos no jogo da bolsa nas primeiras fatias das privatizações.
Querem agora a privatização da rede fixa de telecomunicações, concessionada por 30 anos à PT. Mais uma vez, para roubarem o que foi pago por todos nós recorrem à estafada frase temos de ser como o resto da Europa, como faz o socialista Murteira Nabo. Podemos nós também invocar isso, por exemplo, para os salários? E a Soberania, Segurança e Independência das comunicações se, como diz o grupo BES, as regras de Bruxelas irão prevalecer sobre as regras nacionais, por exemplo, ultrapassando a regra dos dez por cento de limitação de capital, permitindo uma OPA da Telefónica ou outro gigante qualquer, sobre a PT e outras empresas decisivas no sector?
Globalização/Financeirização
Este termo globalização é de recente utilização no dia a dia da sociedade de informação. Ela é apresentada como uma consequência lógica do entrelaçamento dos povos de todo o mundo face à sociedade das novas tecnologias das telecomunicações.
Mas os ideólogos do sistema em vigor consideram que os povos se devem render à inevitabilidade de determinadas acções, como por exemplo, a concentração do capital a nível mundial e que pode levar um grupo a fechar uma ou mais fábricas ou serviços numa determinada parte do mundo face a eventuais prejuízos acarretados pela empresa total a nível mundial. Pode vir a ser o caso da Telecel, englobada na multinacional Vodafone.
A globalização das bolsas e a especulação delas dependentes leva à total dependência da economia mundial de valores, que nada tem a haver com economia local ou nacional.
Assiste-se a uma cada vez maior instituição da empresa ou grupo de empresas de nível mundial como entidades substitutas das Nações, das organizações de Estados e dos interesses de povos a nível local. Os governos (governos de política de direita) começam apenas a ser os seus mandatários e contam com as telecomunicações para dominar os seus povos.
Quando há poucos anos atrás as economias do chamado extremo oriente entraram em crise, a interligação das economias e das bolsas levou rapidamente a crise a outras partes do globo, nomeadamente àquelas mais dependentes e fragilizadas da especulação bolsista e das multinacionais. Foi o caso da América Latina e, dentro desta, do Brasil.
O sistema financeiro de controlo mundial (chame-se G7, G8 ou outro qualquer Gê), entendeu que era urgente socorrer rapidamente essas zonas por empresas que tivessem capacidade para tal. Era preciso investir em força para levar à recuperação das bolsas locais e à consequente elevação das economias afectadas pelo descabro financeiro.
Essa foi uma das razões que levou a PT ao Brasil, investindo o que tinha e o que não tinha, num negócio sem controlo e propagandeado sempre como a galinha de ovos de oiro, mas cujos contornos sempre secretos se podem delinear pelas limitações ao investimento da PT no nosso País, apesar dos enormes lucros líquidos anuais apregoados. «Não podemos arriscar mais capitais no sentido de aumentar a flutuação das acções da PT, com grandes riscos para a sua cotação», diz o grupo BES, referindo-se a mais investimento no Brasil, lembrando os reflexos negativos na economia deste país da grave crise económica da vizinha Argentina. Como sempre a perspectiva financeira na análise das empresas.
Se por um lado estes casos nos mostram a globalização capitalista na sua acção de interligação e sustentação a nível mundial, mostram-nos também as suas debilidades, de como um colapso financeiro local se pode tornar num enfarte global fruto da financeirização total. A transformação das empresas em entidades de objectivos quase exclusivos de especulação financeira, desligadas da produção e até da economia, pode levar a tal.
As manifestações por todo o mundo contra a globalização capitalista mostram também a globalização da contestação, pese embora todo um esforço dos detentores dos meios de informações de, deformativamente, mostrarem só as minorias extremistas, muitas vezes controladas pelos serviços secretos do capital.
Mais uma vez, a posse dos meios de informação nas telecomunicações.
Conclusão
O actual estádio de evolução tecnológica das Telecomunicações é apenas um passo no contínuo evoluir do homem. A tecnologia não tem classe.
Mas as sociedades onde está inserido criam necessidades de desenvolvimento que lhe têm de ser garantidas pelos responsáveis políticos.
As empresas de telecomunicações, lançadas numa lógica exclusiva de mercado, criam distorções. O Estado, que deveria ser para protecção colectiva do homem e não da classe que o criou, não pode, como Pilatos, lavar as mãos à desenfreada actuação das empresas, propriedade de minorias privilegiadas, ainda que se diga, caricatamente, que todos podem ser accionistas.
A sociedade de informação presente é desenvolvimento para o homem, o que implica direitos sociais, mas pode ser também a sua própria exploração.
Há cada vez menos donos e portanto difusores de informação (cartéis ou lobbies) e cada vez mais receptores desta mesma informação, a quem é lavada permanentemente a cabeça, no sentido de os levar a aceitar passivamente os interesses daqueles (dos cartéis), como se tratasse de verdadeiros interesses pessoais e nacionais, em todo mundo. É a concentração do capital.
Lutar pela evolução das telecomunicações e, simultaneamente, pelo seu enquadramento aos interesses da maioria das populações, é um papel que classifico de esquerda.
Não é possível prever até onde a evolução tecnológica vai levar, nos tempos mais próximos, a chamada sociedade da informação. Mas esta sociedade não passa fatalmente pela via exclusiva do mercado monopolista, que domina e corrompe, mas saberá encontrar outras vias para serviço da humanidade, como já se começa a perceber pela contestação cada vez maior à chamada globalização capitalista.
O Estado de direito não funciona contra grupos económicos ou alta burguesia em Portugal, como atesta a própria Ordem dos Advogados.
Quando a Justiça se impuser, o julgamento das irregularidades ou fraudes cometidas contra o erário público, aquando das privatizações, justifica-se.
Num sector quase totalmente privatizado, a apropriação legal de propriedade por entidades de carácter estatal volta a impor-se, mas com um estatuto que as torne independentes dos partidos governamentais.
«O Militante» - N.º 256 - Janeiro/Fevereiro de 2002