Sessão Pública «A política energética que o país precisa e o PCP propõe»
I
O
Protocolo de Quioto (1997), que fixa limites às emissões de gases de efeito
estufa (GEE) foi acordado na 3.ª "conferência das partes" (COP 3) à
Convenção Quadro para as Alterações Climáticas das Nações Unidas (UNFCCC,
adoptada em New York,
Maio de 1992); Os
países "desenvolvidos" industrializados assumiram o compromisso de reduzir as
suas emissões, incluindo os Estados Unidos. Na COP 7 em Marrakesh (em
Novembro de 2001), foram definidas as normas operacionais de mecanismos de flexibilidade
(segundo os quais um país que reduza as suas emissões pode negociar esta
redução com outro país que não queira ou não possa reduzir as suas) e foi acordado, mesmo antecipando a entrada em vigor do
Protocolo, iniciar o comércio de créditos de carbono e a aplicação de
mecanismos de desenvolvimento limpo (que envolvem investimentos "limpos" por
países industrializados em países "em desenvolvimento", em troca de créditos ou
reduções certificadas de emissão). Com a ratificação da Rússia, em Novembro de
2004, o Protocolo atingiu o limiar de ratificação para entrar legalmente em
vigor no prazo de 90 dias, o que aconteceu a 16 de Fevereiro de 2005, estando
ratificado por 141 países.
O Protocolo de Quioto
consagra o histórico de emissões atmosféricas, a pré-existente divisão mundial
entre países "desenvolvidos" industrializados e países "em desenvolvimento", e
toma a atmosfera como um património comum porém com diferenciados direitos de
acesso a ela. Os mecanismos de flexibilidade introduzem o primado do mercado de
carbono entre produtores e consumidores de bens e serviços para atingir o
objectivo de controlar as emissões futuras, e com isso estabelece um novo
sistema de transacções financeiras, concentradoras e especulativas, suportadas
em supostos direitos de acesso à atmosfera, legalmente justificados à luz das
emissões históricas.
Multiplicam-se
manifestações de interesse por projectos oriundos de países "desenvolvidos",
mais intensivos consumidores de energia, para investirem em projectos de MDL em
países "em desenvolvimento", a que progressivamente cabe acolher indústrias
básicas e transformadoras. A UNCCC com o Protocolo de Quioto surge assim como
um motor internacional na criação de infra-estruturas energéticas e como
facilitador de investimento directo estrangeiro (IDE) e de deslocalização de
actividades industriais para os mais ricos países "em desenvolvimento" ou em
"transição" (BRIC).
A União Europeia
desempenhou especial protagonismo nas negociações conducentes à efectivação do
UNCCC, com isso assumindo compromissos (e os seus estados membros) e colhendo
benefícios perante terceiros. O desenvolvimento do processo mostra que, para
além de objectivos de política externa, o Protocolo de Quioto vem alcançando
objectivos de política interna, contribuindo para impor políticas comuns de
sentido federalista. Para o efeito criou os seus próprios instrumentos e
instituições - Programa Europeu para as Alterações Climáticas (ECCP), Comércio
Europeu de Licenças de Emissão, Registo de Transacções Comunitárias (CTL), etc. e diversas directivas comunitárias. Vários bancos
entraram em acção e abriram novas linhas de negócio. E surgiram numerosas
empresas de consultadoria técnica e financeira através de continentes.
II
Existem vários mercados do
carbono, compreendendo quer licenças de emissão quer créditos baseados em
projectos, coexistentes e diferentes graus de conexão. Por isso, alguns
analistas comparam os mercados de carbono mais a mercados de divisas do que
mercados de commodities. O Protocolo
de Quioto é o maior desses mercados e o esquema Europeu de transacções - EU ETS
o principal dos seus subsidiários. Este esquema estimulou o comércio de
licenças e a importação de reduções baseadas em
projectos. Os
principais compradores são agentes governamentais comprometidos com Quioto,
agentes privados interessados no esquema Europeu, corporações japonesas
antecipando um esquema de comércio nacional, corporações norte-americanas
operando na Europa e no Japão ou antecipando a iniciativa regional de GEE (RGGI)
no Nordeste dos EUA, empresas do sector energético reguladas pelo mercado de
New South Wales na Austrália, empresas Norte-americanas empenhadas no Chicago
Climate Exchange (CCX). Por outro lado, emergiu um segmento em expansão que
explora a venda de reduções de emissões a empresas e a indivíduos que pretendem
compensar as emissões por que são responsáveis ("pegadas ecológicas").
Entretanto, em vista do
elevado potencial de captação ou multiplicação de capitais, foram constituídas
a Asia Climate Exchange (ACX-Climex), uma importante plataforma
de comércio de direitos e créditos que tem promovido leilões mais do que
organizado contractos, e o
Mercado Brasileiro do Carbono (MBRE), por iniciativa da Bolsa Brasileira de
Mercados e Futuros (BM&F) e do governo. No que respeita aos principais
"vendedores" do mercado do carbono, até meados de 2006, a Ásia através da China e da Índia
assegurou a maior fatia de contractos baseados na implementação de projectos,
seguida da América Latina através do Brasil e do México. A contribuição dos
países "em transição" (na forma implementações conjuntas) foi muito modesta. A África mantém-se muito sub-representada
no mercado do carbono. Existem
projectos "voluntários" nos EUA e na Austrália
com expressão.
No mercado Europeu existem
seis plataformas de transacção que dão conta de metade do comércio de licenças
(European Union Allowances - EUA); entre essas, a European
Climate Exchange (ECX) em Londres assegura cerca de três quartos do mercado de
transacções. Existe também um número crescente de correctores tradicionais e
emergentes para actuarem no novo EU ETS. Grandes bancos de investimento, fundos
e outras instituições tornaram-se nos principais actores nas plataformas de
transacção de carbono. Se alguns bancos representam grandes e pequenos
operadores industriais, outros actuam como correctores de fundos e
especuladores. Correctores negoceiam por grosso contractos com e entre empresas
do sector energético, e a retalho transacções à medida das necessidades de
empresas diversas. A ECX estabeleceu entretanto relação com os fundos Europeu e
Asiático de carbono e a ACE-Climex. Algumas plataformas do sector eléctrico,
nomeadamente European Energy Exchange (EEX) na Alemanha e NordPool na Noruega,
negoceiam agora também EUA.
Na sua primeira fase, de
Janeiro de 2005 a Dezembro de 2007, o EU ETS regula as
emissões de CO2 de grandes
instalações industriais (sobretudo produções eléctrica e térmica, e também produtos
minerais metálicos e não metálicos, e hidrocarbonetos) que representam cerca de
40% do total de emissões no espaço da EU. Essas emissões foram limitadas pelo
tecto de 6.600 milhões de toneladas. O volume do comércio de EUA cresceu
aceleradamente desde 2003, tendo atingido 322 milhões de toneladas em 2005,
embora a movimentação de activos e a liquidez fossem relativamente modestas
face ao volume de activos. Desde início, os principais protagonistas neste
mercado foram as companhias do sector energético, pela experiência que detêm na
transacção de electricidade e gás, e pelas oportunidades de negócio; mas, a
partir de meados de 2005, bancos e fundos de investimento tomaram a iniciativa
de procurar outras empresas interessadas e de actuar como gestores dos
respectivos activos em carbono. Por outro lado, o tempo de criação dos
instrumentos e instituições do novo mercado introduziu algum "atraso" na sua
implementação, desde o nível nacional até ao comunitário, aderindo ao Registo
de Transacções Comunitárias (CTL).
III
Segundo
declaração do secretário de estado português, em fins de Novembro de 2006,
Portugal criará um "fundo do carbono" no montante de € 354 milhões, um dos
maiores já anunciados, a pretexto de adquirir créditos de carbono para
satisfação das metas de Quioto, invocando ter sido antecipado um excesso de
3,73 milhões de toneladas anuais no período 2008-12 (segunda fase do EU CTS). À
luz da meta comprometida segundo Quioto, o nível de emissões naquele período
deveria estar limitado a 77 milhões de toneladas (CO2) por ano; o crescimento
de emissões entretanto verificado, ao nível actual de 85 milhões anuais,
conduziu a um conjunto de "medidas adicionais" de redução no PNAC e justificará
a aquisição externa de créditos de emissão. Esse fundo do carbono será
investido em projectos MDL em países "em desenvolvimento" e também em projectos
de florestação em solos florestais e marginais, enquanto supostos sumidouros de
carbono. O fundo de carbono será constituído por receitas tributárias e
financiará projectos de que a influente indústria da celulose será a mais
evidente executora como também beneficiária.
Em Portugal, o Plano
Nacional para as Alterações Climáticas foi adoptado pela RCM 119/2004 (PNAC
2004) e fixa políticas e medidas sobre todos os sectores de actividade, para o
controlo de emissões de GEE
O comércio europeu de
licenças de emissão (CELE), regulado pela Directiva 2003/87/CE, transposta pelo
Decreto-Lei 233/2004, foi o primeiro instrumento do mercado intracomunitário de
emissões de GEE. O CELE entrou em vigor em 1 de Janeiro de 2005, abrangendo
todas as instalações com potência térmica nominal superior a 20 MW. Por outro
lado, os mecanismos de desenvolvimento limpo (MDL) e de implementação conjunta
(IM) do Protocolo de Quioto são susceptíveis de gerar créditos convertíveis em
licenças de emissão, nos termos estabelecidos pela Directiva 2004/101/CE.
Para que empresas
instaladas em Portugal pudessem participar no CELE, seria necessário criar e
atribuir-lhes licenças de emissão. A RCM 53/2005 fixou o Plano Nacional de
Atribuição de Licenças de Emissão (PNALE), compreendendo métodos e critérios de
atribuição, pelo estado, de licenças de emissão às instalações, o teto de
atribuições, e o elenco de instalações a que seriam atribuídas gratuitamente
tais licenças. A mesma RCM criou o Fundo Português do Carbono (FPC) que
permitirá ao estado obter créditos de emissão mediante o financiamento de
projectos no âmbito dos "mecanismos de flexibilidade" previstos no Protocolo de
Quioto, e cria o instrumento "taxa de carbono", que teria como objectivo
reorientar as escolhas dos consumidores e produtores, promover o esforço e
equilíbrio entre os sectores abrangidos pelo PNALE, e obviamente contribuir
para financiar o referido FPC.
O Despacho conjunto
686-E/2005 aprovou a lista de instalações participantes no comércio de emissões
e procedeu à atribuição inicial de licenças de emissão (gratuitas) entre elas -
244 títulos de emissão alguns dos quais em montantes de vários milhões de
toneladas de CO2, num total da ordem de 35 milhões/ano no período 2005-2007.
A RCM 33/2006 veio reforçar
as competências da Comissão para as Alterações Climáticas (CAC), a qual é
designada autoridade nacional para os mecanismos de flexibilidade do Protocolo
de Quioto. Comete-lhe, em particular, promover acções em nome do estado
Português no âmbito dos respectivos mecanismos de flexibilidade, traduzidos no
comércio internacional de licenças de emissão, na implementação conjunta (IC) e
no mecanismo de desenvolvimento limpo (MDL), a nível nacional, comunitário e
internacional, tendo em vista o cumprimento dos compromissos decorrentes
daquele Protocolo. Esta Comissão será pois uma agência financeira com amplas
competências e que em princípio terá o FPC ao seu dispor.
O Decreto-Lei 71/2006 vem
criar formalmente e regular o Fundo Português de Carbono (FPC) e fixa-lhe as
seguintes linhas de acção: Obtenção de créditos de emissão de gases com efeito
de estufa, a preços competitivos, através do investimento directo em mecanismos
de flexibilidade do Protocolo de Quioto: Comércio de Licenças de Emissão,
projectos de implementação conjunta e projectos de mecanismos de
desenvolvimento limpo; Obtenção de créditos de emissão de gases com efeito de
estufa através do investimento em fundos geridos por terceiros ou outros
instrumentos do mercado de carbono; Apoio a projectos, em Portugal, que
conduzam a uma redução de emissões de gases com efeito de estufa, nomeadamente
nas áreas da eficiência energética, energias renováveis, sumidouros de carbono,
captação e sequestro de CO2;
Promoção da participação de entidades públicas e privadas nos mecanismos de
flexibilidade do Protocolo de Quioto. Do OE de 2006 recebera já uma dotação
inicial (simbólica) de M€ 6. O FPC será financiado: por meio da lei do
Orçamento do Estado; pelo produto das taxas, contribuições ou impostos que lhe
sejam afectos; por rendimentos provenientes de aplicações financeiras; pelo
produto de doações, legados, alienação ou cedência temporária de bens ou
direitos do seu património, e outras receitas que lhe sejam atribuídas por lei
ou negócio jurídico.
O Decreto-Lei 104/2006
historia o processo de implementação de políticas, medidas e instrumentos a que
o País se comprometeu com a adesão ao processo de Quioto, e vem actualizar o
PNAC 2004, por reconhecer as suas insuficiências bem como as do PNALE I, na
realização das metas de Quioto. O PNAC 2006 regista um alargamento do esforço
de cumprimento do Protocolo de Quioto através de medidas domésticas nos
sectores não abrangidos pelo CELE (grandes instalações), designadamente nos
transportes e no sector residencial, destacando-se: a revisão do regulamento de
gestão dos consumos de energia (melhorias de eficiência), uma revisão
tributária orientada para redução ou substituição de consumos (imposto
automóvel e carga fiscal sobre combustíveis em todos os sctores), um maior
destaque às autoridades metropolitanas de transportes de Lisboa e Porto, as
auto-estradas do mar (transferência de parte do tráfego rodoviário
internacional para a via marítima). Por outro lado, preconiza um aumento do
recurso aos mecanismos de flexibilização criados pelo Protocolo de Quioto.
Para este efeito, consagra
a inscrição de uma dotação nas propostas de lei do Orçamento do Estado
relativas aos anos de 2007 a 2012, para financiar o Fundo
Português de Carbono (criado através do Decreto-Lei n.º 71/2006), em montante adequado
para assegurar o investimento em mecanismos de flexibilidade do Protocolo de
Quioto, mas sem prejuízo dos objectivos definidos no Programa de Estabilidade e
Crescimento, num total superior a M€ 300. O balanço líquido de emissões
previstas para 2010 atinge 84 MtCO2, acima da "quantidade atribuída" de 77Mt. A
supressão deste défice é cometida em parte à redução de emissões atribuídas a
instalações abrangidas pelo CELE (que assim deverão recorrer ao mercado do
carbono ou introduzir medidas técnicas) e em parte ao recurso a mecanismos de
flexibilidade de Quioto, nomeadamente aquisição de unidades de
quantidade atribuídas a outras partes do Protocolo (comércio internacional de
emissões), ou de unidades de redução de emissão ou reduções certificadas de emissão
(disponibilizadas respectivamente através de projectos relativos aos mecanismos
de implementação conjunta e de desenvolvimento limpo).
No cumprimento das metas
de Quioto, o governo induz a substituição de combustíveis, quer por medidas de
racionalidade quer por medidas oportunistas, quer no interesse comum quer no
interesse de grandes operadores. O gás natural é favorecido face ao carvão na
produção termoeléctrica, porque o custo de investimento é mais abaixo e permite
uma amortização mais rápida, embora a utilização do gás seja aí menos nobre (em
termos de eficiência energética global) que a sua utilização directa em
instalações da industria transformadora ou no sector edificado e mesmo nos
transportes rodoviários.
Também a pretexto das
metas de Quioto, o governo acarinha a introdução de biocombustíveis, não em
contexto rural e para o auto-provisionamento, mas sim no âmbito do grande
negócio agro-industrial, assim ameaçando os melhores solos para culturas
extensivas e irrigadas, no país e em países em desenvolvimento, por aí se
candidatando a colher também os proveitos dos "mecanismos de desenvolvimento
limpo".
A vertente financeira do
PNAC vai acentuando-se progressivamente. Apoiando-se nas directivas Europeias,
através do PNALE o governo distribuiu às grandes indústrias activos financeiros
(sob a forma de licenças de emissão) em quantidades sobre-abundantes. A
captação de receitas tributárias para o FPC alarga-se e intensifica-se. É
conferida orientação prioritária para os mecanismos de flexibilização do
Protocolo de Quioto e à CAC são conferidos natureza e centralidade financeira.
O sector energético
adquire características essencialmente financeiras, centrando-se no controlo de
empresas operadoras, com forte migração e mistura de capital de várias
nacionalidades, e tecnologias subcontratadas quase inteiramente importadas. O
país não tem parte activa na política energética, não há incorporação
significativa de conhecimento e industrial nacionais, o povo é simplesmente
relegado para a condição de contribuinte e consumidor. O Plano Tecnológico - se
existe - certamente não passa por aqui.
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